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Crônica | Tem vida na rua, o mundo tem que saber!

Homenagem a luta das terceirizadas da Faculdade de Medicina da USP, que lutaram pelos seus direitos nos corredores e na avenida, e que mostram o caminho para os estudantes e trabalhadores.

sexta-feira 21 de abril de 2023 | Edição do dia

O dia amanhece frio e cinza, duas latinhas de spray, uma caixa de som, café, cigarro e um mundo de gente que sai a cada cinco minutos pela escada rolante do metrô. Panfleta, panfleta, panfleta, o mundo tem que saber! A moça de vermelho, o homem de bengala, a criança de colo, o mundo tem que saber que tem terceirizada em luta!

Quanta angústia me ver passar cinco, seis, dez pessoas sem um panfleto na mão, sem saber que tem trabalhadora que não recebe há dois meses, sem saber que tem trabalhadora que não consegue segurar o choro às vezes, sem saber que tem trabalhadora que não aguenta um segundo mais de exploração.

USP: não somos escravas! Não somos e não seremos nunca mais! Como pode uma máquina passar tão rápido debaixo da terra ao mesmo tempo em que em cima dela tem gente pagando pra trabalhar? Como pode, ali onde se salva vidas todos os dias, tanta vida se perder pelos corredores, pelos chãos, pelos laboratórios?

Mas tem vida na rua! Panfleta, panfleta, panfleta, o mundo tem que saber! As pessoas nem lêem mais o que foi escrito, estão vidrados na via da avenida parada. Vidrados na caixinha que bate, nas mulheres que dançam, que pulam, que cantam em meio a um milhão de dores, que riem em meio a um milhão de preocupações. Cartazes levantados, “não vou varrer, não vou varrer, não vou varrer”! Será que elas sabem que cada grito delas varrem muito mais que o chão, varrem toda falta de fé na humanidade e tentativas de opressão? Será que elas sabem que plantaram uma, duas, quinze sementinhas, em um, dois, quinze estudantes e passantes da avenida?

Dança, dança, dança! Luta, luta, luta! A vida que escorre pelas mãos lá dentro dos prédios pomposos do reitor, que se perde um pouco a cada dia que se passa em um trabalho dolorido e esvaziado de sentido, toda essa vida se encontra na rua, nas vias fechadas da avenida Dr. Arnaldo, na boca do metrô!

Entra, entra, entra, que tem estudante sem saber. Tem aluno lá dentro que não conhece os rostos de quem faz a universidade funcionar, que não sabe os nomes de quem limpa com atenção e singelo as mesas dos laboratórios. É um choque entrar lá dentro, ver as árvores bem podadas, o chão tinindo, as pilastras e o pé alto daquele prédio bem cuidado. É um choque ver todas elas sentadas no chão daqueles corredores, que elas mesmas mantêm vivos todos os dias, e saber que se sentam lá hoje por um descaso tão desumano. Tec, tec, tec, será que os saltos da diretora que pisam naquele chão sabem que essas trabalhadoras deixam imaculados o piso que têm séculos de tradição? Será que o reitor sabe que sem elas aquele prédio não é nada além de ar, concreto e vergalhão?

A sala de aula é outro mundo. As cadeiras não rangem, o teto não pinga. As trabalhadoras sentam nas mesas, escrevem na lousa: escravidão na USP? Mas como pode! Como pode aquelas trabalhadoras sentarem nas mesas daquela grande universidade para exigir salário digno e o fim da escravidão? Como podem estar lá dentro pra isso e não pra encher de conhecimento as mentes e o coração? Que universidade é essa, que não foi feita pra todo mundo estudar, mas pra explorar? Por que elas não podem se sentar nessas cadeiras pra aprender sobre os átomos e a vida elementar?

Quanta angústia é estar nessa universidade e ver tanta contradição. Não pode ser, o mundo tem que saber! O mundo tem que saber que tem gente questionando, gente incomodando, gente indignada. Os estudantes têm que saber que tem gente disposta a lutar, e que a luta de um é a luta de todos!

O sol ainda não nasceu, mas o dia seguinte já amanheceu! Heroínas! Gritam, lutam, heroínas! Será que elas sabem que o grito delas acordou algo que não dorme nunca mais? Será que elas sabem que tem um estudante que viu nelas a esperança de um dia fazer aquela universidade delas também? Algo nasceu naquela manhã cinzenta, algo cresce naquela via da avenida, será que elas sabem?




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