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Luta negra | 20N: retomar a história dos insurretos de Campinas e o legado de Zumbi

É impossível dissociar a história da cidade de Campinas da escravidão negra. Ainda mais difícil é imaginar a luta de classes na cidade separada da luta racial. Repensar o passado campineiro implica perceber como a opressão contra negros e negras está no DNA do projeto burguês da cidade, assim como nossa luta precisa se inspirar na rebeldia dos escravizados insurretos que aqui viveram e sempre se rebelaram contra a escravidão e o colonialismo.

Guilherme ZanniProfessor da rede municipal de Campinas.

segunda-feira 20 de novembro de 2023 | Edição do dia

Campinas é reconhecida como uma das últimas cidades brasileiras a abolir a escravidão. São comuns referências históricas que indicam que ser vendido para um barão campineiro era um castigo já que estes aqui eram particularmente violentos. Essa violência se relaciona com a própria “dinamização” econômica da cidade, que após a abolição do tráfico de escravos se desenvolveu como um centro escravocrata, tanto para o tráfico interno quanto para a economia cafeeira nos anos de 1870 e 1880. O número de escravizados na cidade nesse período supera o ⅓ dos escravizados de todo o Estado.

As leis da cidade foram estabelecidas para controlar e restringir a circulação, as atividades econômicas e as manifestações culturais e religiosas dos negros na cidade. Essas leis atingiam não só os escravizados nas fazendas, como aqueles que viviam nas cidades e mesmo os alforriados.

As leis e os castigos buscavam reprimir a resistência que no final do século XIX já era também uma característica da cidade desde que era conhecida como Vila de Campinas. Em 1832, quando a cidade ainda se concentrava na produção açucareira, uma insurreição de escravizados com o objetivo de conquistar a alforria foi descoberta e reprimida. Em 1835, a decapitação de Elesbão, acusado de assassinar um senhor em Jundiaí, foi usada como exemplo, fazendo da praça Bento Quirino, onde ficava a cadeia da cidade, e atual praça XV de Novembro, em símbolos da repressão e assassinatos na cidade.

No entanto, a brutal violência não impediu a resistência dos escravizados. A prática de envenenamento dos senhores foi recorrente na história da cidade, assim como as fugas individuais ou em grupos. Em 1863, uma rebelião na fazenda Atibaia foi duramente reprimida, no entanto despertou um ciclo de fugas nas fazendas da região. Os jornais da década de 1870 e 1880 da cidade estão repletos de anúncios e prêmios de captura, evidenciando como o controle da população negra era a preocupação primordial da elite e que os escravizados não pararam por nenhum instante de resistir e conspirar. Em 1882, Felipe Santiago liderou 120 escravizados da Fazenda do Castelo, em Campinas, matando a família do “administrador”. Os jornais descreveram que a rebelião foi feita aos gritos de “Mata branco” e “Viva a Liberdade”.

Após a intensificação do trabalho migratório europeu, a burguesia paulista buscou embranquecer a história e apagar a presença negra no crescente proletariado. Em Campinas não foi diferente. Apesar do objetivo da burguesia em excluir os negros dos polos em formação mais dinâmicos do mercado de trabalho - e de colocá-los a margem da sociedade em situação de desemprego, em situação ilegais de escravização e/ou em trabalhos precários - a luta operária na cidade é marcada pela ação e resistência negra.

No início do século XX a maior parte da força de trabalho assalariada da cidade era composta por negros. Fato perceptível na formação das primeiras organizações associativas na cidade como a Liga Humanitária dos Homens de Cor e a Liga Operária de Campinas. Em 1917, a Liga Humanitária dos Homens de Cor foi protagonista na Greve Geral. Armando Gomes, uma das lideranças que exigiam a libertação de presos políticos no protesto que desencadeou o massacre da Porteira do Capivara, região do atual Viaduto Cury, era ferroviário e foi uma liderança negra operária da cidade de destaque também na greve de 1920.

Campinas também foi a cidade onde o movimento negro promoveu a resistência cultural fincando na história as mulheres negras que se organizaram e inauguraram em 1961, a Associação de empregadas domésticas, primeiro sindicato de domésticas na cidade, como podemos ver com a história de dona Laudelina de Campos Mello, mostrando que não estavam dispostas a aceitar o trabalho degradante que se escondia dentro das casas da classe média branca.

O que significa retomar essa tradição nos dias atuais?

Quando analisamos a história de luta dos negros, vemos que está completamente ligada com a história de luta da classe trabalhadora. Sejam os operários industriais que protagonizaram greves gerais, sejam as mulheres trabalhadoras domésticas, que se organizavam contra o racismo patriarcal, entre outros inúmeros exemplos. Lutar pelos direitos dos negros está intrinsecamente ligado à lutar pelos direitos dos trabalhadores (e o contrário definitivamente também é verdade).

No cenário atual, isso significa, em Campinas e todo o estado de São Paulo, lutar contra a extrema direita do governador bolsonarista Tarcísio de Freitas (Republicanos) e suas privatizações (que se fortalecem com a aprovação do arcabouço fiscal do governo Lula-Alckmin). Privatizações essas que vão precarizar ainda mais os serviços públicos e atingem com mais força a população negra.

Significa se organizar desde os locais de trabalho e estudo, contra a privatização das escolas, do metrô e da Sabesp que quer impor Tarcísio, mas também contra a privatização dos presídios que massacra nosso povo, anunciada pelo governo Lula-Alckmin.

Em Campinas, a política da prefeitura segue a mesma agenda neoliberal e de extrema-direita, do governo estadual. Dário Saadi, do mesmo partido de Tarcísio, já privatizou parte importante dos principais hospitais da cidade e quem mais sofre com isso é a população negra. Segundo publicação da própria prefeitura, apenas 8,2% da população negra tem 60 anos ou mais, enquanto o percentual é de 14,3% entre os brancos. São as negras também, a maioria das mães que morreram por Covid-19 na cidade, e apenas 40,6% dos nascidos vivos são negros.

Já nas escolas, avança a terceirização com empresas que frequentemente atrasam salários e benefícios das trabalhadoras, em sua maioria, mulheres negras. São essas mesmas mulheres negras, que seguem esperando vagas nas creches para os seus filhos, enquanto enfrentam trabalhos precários e informais para sustentar suas famílias.

Também prova das políticas racistas dos governantes, é a política de moradia que como falamos antes, relegaram a população negra dos grandes centros, e impuseram suas moradias em áreas de maior vulnerabilidade social. Não é preciso dizer, qual a cor da maioria da população que a prefeitura de Campinas queria que morasse em casas de apenas 15m², após anos de legítima luta. São os negros também, 67% da população que é obrigada pelo capitalismo a viver nas ruas da cidade.

Além disso, Campinas carrega uma das heranças mais fortes da escravidão. São diversos os casos de violência policial contra jovens negros na cidade. Jordy, de 15 anos, foi assassinado pelas costas pela guarda municipal. Eduardo e Railson, jovens de 17 e 19 anos, seguem desaparecidos. Gilberto, homem negro e gay, foi brutalmente assassinado nessa cidade. Neste 20 de novembro e todos os dias, temos que nos enfrentar com a violência policial que tira a vida da juventude negra seja em Campinas, ou nas chacinas na baixada santista, Rio de Janeiro e Bahia, que unificam governos da extrema-direita e a frente ampla contra o povo negro.

Essa mesma política de repressão estatal contra os negros, é que internacionalmente, levou ao Brasil estar a frente das operações da ONU no Haiti por anos durante os primeiros governos do PT. Agora, mais uma vez, Lula votou favorável à nova intervenção da ONU no Haiti e vai cooperar colocando a polícia federal, que matou Genivaldo, para treinar a polícia haitiana para reprimir a população desse país.

Também no âmbito internacional, mas jamais alheio à história dos negros, ocorre um massacre na Palestina com mais de 11 mil mortos com justificativas racistas como de Yoav Gallant, ministro da Defesa de Tel Aviv, que chamou os palestinos de “animais humanos”. O governo brasileiro, apenas depois de mais de um mês de massacre israelense, se dispôs a algo tão elementar quanto criticar nominalmente Israel, dizendo que “o comportamento de Israel é igual ao terrorismo”. Mas ao mesmo tempo mantém diversas relações com a burguesia sionista se recusando a romper relações diplomáticas, militares, econômicas com esse Estado assassino. Não suficiente, mantém todos os acordos firmados por Bolsonaro com Israel em 2019. Parte das armas e dos caveirões da polícia brasileira tem sua origem em Israel e servem para assassinar jovens e crianças negras no Rio de Janeiro. É preciso defender o fim dos bombardeios e o fim de todas essas relações com Israel.

Retomar o legado dos negros que lutaram fervorosamente contra o colonialismo e, também contra a burguesia “republicana” que se beneficiou com o trabalho escravo o máximo que pôde, por séculos, é defender a população haitiana de nova intervenção repressora no país e defender a palestina que luta incansavelmente contra a violência e opressão do estado assassino de Israel.

Recuperar o espírito insurreto dos escravizados campineiros e os ensinamentos do inconciliável Zumbi dos Palmares, que sempre se enfrentou com os que mantiveram a brutalidade de 400 anos de escravidão no Brasil, desde uma perspectiva marxista e internacionalista da classe trabalhadora, é levantar a bandeira por uma Palestina livre, operária e socialista e também dizer que não vamos aceitar a exploração e opressão dos nossos irmãos haitianos.

Com essas lições, com a história de luta do povo negro, de Zumbi, de Dandara, de Tereza de Benguela e tantos outros, sabendo que a luta contra o racismo é internacional e deve estar nas mãos da classe trabalhadora, é nossa tarefa lutar também contra cada expressão do racismo em Campinas, que segue governada pelos pupilos do bolsonarismo, que nos últimos quatro anos escancararam o pior do racismo todos os dias, construindo com a unidade da nossa classe, uma força social capaz de subverter a lógica de uma cidade que só funciona para os grandes empresários e seus representantes. Para isso, os ensinamentos negros são elucidativos: nenhuma conciliação que só fortalece a burguesia racista! É com a força negra dos operários da MRV, das terceirizadas da limpeza e do bandejão, das enfermeiras, protagonistas das greves mais recentes na cidade e com os ensinamentos da nossa história, que podemos lutar contra o racismo e seu casamento odioso com o capitalismo.




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