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Debate na esquerda | O que mostra a esquerda brasileira apoiando a “variante do ajuste” que fortaleceu Milei na Argentina?

Há muito em aberto para definirmos como será o novo governo Milei na Argentina. É certo que, desde já, anuncia um forte plano de guerra contra a classe trabalhadora, com demissões e privatizações (“tudo o que pudermos privatizar, vamos privatizar”, disse ele), e que deve ser enfrentado o quanto antes. Mas seu governo também encontra importantes debilidades institucionais, como não ter governadores seus, de La Liberdade Avanza, e ser franca minoria no Congresso, além do fato inegável de que terá de passar pelo teste da luta de classes argentina. Essas não são questões desprezíveis para pensar a correlação de forças no país vizinho, tanto diante de uma vitória acachapante do candidato "libertário", que capitalizou o descontentamento com as coalizões governantes dos últimos anos, quanto do fato de que isso não significa uma “adesão ideológica” completa a seu programa, ou seja, de que Milei não tem um cheque em branco. Mas o que sim é (e sempre foi) possível afirmar é que mais uma vez a conciliação de classes abriu espaço para a extrema direita, revelando todos os limites da chamada nova “maré rosa” latino-americana. É essa constatação que assombra a esquerda brasileira apoiadora de Massa.

sexta-feira 1º de dezembro de 2023 | 19:03

Em uma Argentina assolada pela crise, com inflação galopante de 140%, Sérgio Massa era o candidato peronista representante do ajuste e da subordinação ao FMI. Não poupou esforços em campanha para demonstrar seu alinhamento ao sionismo, assim como Milei, ambos cúmplices da política da extrema direita de Netanyahu que aprofunda o genocídio do povo palestino em uma nova “Nakba”. Mas parte da esquerda brasileira, recusando-se a admitir que, portanto, Massa e a coalizão peronista eram os principais responsáveis pelo fortalecimento de Milei, optou por apoiar e fazer campanha por Massa até o fim. Como explicar isso agora?

Apoio aberto a variantes do ajuste?

Nas palavras do MES de Sâmia e Melchionna, Massa representava no pleito eleitoral “um projeto de acordos com o FMI e de mais ajuste”. Após as eleições, agregam: “sua natureza de submissão aos planos do FMI o tornou odiado por milhões. Milei surgiu dessa experiência e da insuficiência da esquerda para se apresentar como alternativa”. Mesmo assim, reivindicam: “defendemos o voto crítico em Sergio Massa contra Milei, ainda sabendo que seu governo representará ajuste ao povo argentino”. A CST, republicando as posições de sua organização-irmã (Izquierda Socialista) na Argentina, diz que “votaram em Massa de nariz tapado”, já que se tratava de uma disputa entre “candidatos patronais que, com seus distintos projetos e especificidades, representam os grandes empresários, os bancos, as multinacionais e o FMI”, depois de demonstrar que essa posição encontrou resistência até mesmo em sua própria corrente e que ao longo do segundo turno decidiram “democraticamente autorizar companheiras e companheiros que não concordam com a posição amplamente majoritária a expressarem seu próprio critério de voto no segundo turno”. Já a Resistência de Arcary insiste: “votando em Massa, não seguíamos o peronismo”, que “cometeu um erro de estratégia política fatal ao descartar Cristina” e “aceitou as condições usurpadoras impostas pelo FMI nas negociações dos empréstimos feitos durante a gestão de Macri”.

Afinal, por que é tão difícil explicar, com algum critério marxista, o apoio que boa parte da esquerda brasileira prestou à “variante do ajuste”, dos acordos com FMI, responsável por abrir caminho a Milei em uma enorme crise do peronismo, como afirmam eles mesmos? Na realidade, apesar dos vigorosos esforços despendidos por parte desses setores para tentar culpar a posição da maioria da FIT-U (esquerda argentina), com protagonismo do PTS, pela vitória de Milei, quando esta majoritariamente chamou a enfrentar Milei, mas sem prestar apoio político ou eleitoral a Massa, é justamente o apoio a Massa o que carece de explicações. Isso, evidentemente, se quisermos ser sérios com a análise elementar de que o voto em Milei expressou, entre outros fatores, a raiva com a degradação das condições de vida e trabalho na Argentina, fruto do ajuste dos últimos anos, e portanto fruto da política de Massa.

Assim, faz sentido que, para justificar tamanha subordinação à ala direita do peronismo, alguns setores, como a Resistência, busquem por todas as vias “suavizar” o compromisso da última coalizão governante com o ajuste. A serviço disso chegam ao ponto de sustentar que o “erro fatal” do peronismo não teria sido pactuar com o FMI e descarregar a crise sobre os trabalhadores, e sim teria sido não promover a figura de Cristina como candidata (!), que segundo Arcary teria condições de “mobilizar a base social popular, justamente porque se diferenciou do caminho escolhido pela presidência de Alberto Fernandez, representado por Massa”. Que a Resistência há muito tenha abandonado qualquer perspectiva de construção internacional, é evidente para todos. Mas nos questionamos se perderam acesso a qualquer noticiário internacional, já que Cristina Kirchner não só foi vice-presidente durante todo o mandato de Alberto Fernández, como foi a fiadora máxima da posse de Sérgio Massa como Ministro da Economia, avalizando todos os seus ajustes antipopulares. De qual caminho se diferenciou de Fernández, portanto, não se sabe.

Cristina inclusive discursou à militância kirchnerista às vésperas das eleições reivindicando Massa por “dizer a verdade” aos argentinos. Essa “verdade” se tratava de que o FMI o “obrigava” a ajustar, logo após as Primárias. Soa parecido com a realidade que Arcary tenta pintar: o ajuste teria sido negociado na gestão Macri e “imposto” ao governo de Cristina, quase como se este fosse vítima de uma herança maldita. Isso enquanto Massa foi também responsável por aprovar acordos com o FMI como deputado e sobretudo esperou oportunamente as Primárias argentinas terminarem para levar adiante uma desvalorização histórica contra o bolso do povo trabalhador, sinalizando ao imperialismo e às classes dominantes que buscava ser o melhor candidato para dar continuidade ao pacto de fome - o que certamente foi um impulso a mais a Milei.

Além do mais, se existisse no pensamento de Arcary qualquer reflexão sobre a luta de classes, veria que Massa, apoiado por Cristina, teve no kirchnerismo um fiel escudeiro da garantia da “paz social”, pacificando a luta contra o ajuste na Argentina a partir de sua localização na direção de movimentos sociais e sindicatos, mas inclusive com repressão, como fez o governo kirchnerista de Axel Kicillof contra a luta por terra em Guernica. O peronismo contribuiu, afinal, para impedir a mobilização de sua “base social popular” não na eleição, mas em todos os 4 anos de seu governo de ajuste. De todo modo, mesmo que Arcary tivesse razão ao afirmar que Cristina representou um caminho alternativo a Fernandez, terminaram todos (Fernandez, Cristina e a Resistência) unificados no “caminho representando por Massa”, literalmente lado a lado em seu comitê de campanha, com o PSOL marcando presença a convite de um órgão da Presidência argentina, com Deborah Cavalcante da Resistência, Secretária de Relações Internacionais, saudando o discurso desse ajustador no domingo da vitória de Milei.

Justamente por isso, temos de dizer que Arcary está correto: não foi somente o voto em Massa o que explicita que a Resistência “seguiu o peronismo”. Foram todas as justificativas que encontrou para sustentá-lo, buscando apagar de toda forma que foi o ajuste peronista o que fortaleceu Milei, contra o qual resistir seria não uma premissa básica da qual deve partir qualquer marxista, mas uma “resposta corajosa” possível, nas palavras de Arcary. Isso não surpreende quando vemos que a principal tarefa hoje no país para a Resistência não é impulsionar a luta, e sim a candidatura de Boulos em São Paulo, nesse caso cada vez menos “corajosa”, sinalizando para a FIESP, silenciando sobre a luta palestina e sobre as demissões no metrô e se orgulhando de seu bom diálogo com ninguém menos do que João Doria.

“Democracia” versus “(Neo)fascismo” somente até a eleição

Mas, se Resistência, MES e CST apoiaram todos a candidatura de Massa, é verdade que o MES e a CST reconhecem (em notas de rodapé) que Massa era o candidato do ajuste e da aliança com o FMI, e mais, fazem algum balanço de que o ajuste de Massa fortaleceu Milei. Isso não os livra. Pelo contrário: o que, então, os teria levado a apoiar o candidato do ajuste que abriu caminho à extrema direita? Nas palavras do MES, a Argentina “não merece o fascismo” e “o triunfo do peronismo é um triunfo da democracia”. Nas palavras traduzidas pela CST, onde fazem questão de explicitar que não existem “princípios” quando se trata de “tática eleitoral” (como bem comprovaram), tudo se resumia a “evitar que o fascista Milei chegasse ao governo”. Estamos diante da conhecida fórmula de que contra a extrema direita (o assim chamado “(neo)fascismo”) está justificado o alinhamento a qualquer força opositora burguesa, mesmo que apoiada pelo imperialismo norte-americano, pelo FMI e tendo atacado ofensivamente as condições de vida das massas (produzindo as condições para a ascensão da extrema direita). No caso do MES, é tamanha sua lealdade a essa premissa que já prestaram apoio direto, chamando voto, a candidaturas imperialistas, como Luciana Genro inclusive definiu quando da vitória de Biden contra Trump, “as luzes venceram as trevas” - e agora talvez valesse perguntar ao povo palestino como se sentem bombardeados com o apoio e financiamento “das luzes”, em parceria com a extrema direita de Israel. Por isso, é de se estranhar que nenhuma dessas correntes tenha se pronunciado quando Massa prometeu em campanha um governo de unidade nacional com o “fascismo”, com o próprio partido de Milei…

Mas os dias posteriores ao resultado eleitoral dizem por si mesmos. Mal encerrada a eleição, o “neofascismo” de Milei foi recebido de bom grado por Fernández no Palácio do Governo, enquanto sua vice, Villarruel, negacionista dos mortos da ditadura argentina e a ala “dura” do suposto “fascismo”, reuniu-se com Cristina no Senado, relatando em seguida que foi “uma reunião muito cordial”. Lula desejou prontamente sua “boa sorte e êxito” ao novo governo “fascista” argentino. Não suficiente, Scioli, candidato peronista em 2015 e hoje embaixador no Brasil pelo governo, será o provável novo Ministro do Turismo do referido governo “fascista” de Milei. E a CGT, central dirigida pelo peronismo, chama a “esperar o dia 10”, dia da posse de Milei, sem preparar qualquer enfrentamento ao “fascismo”. Isto é, o peronismo, o suposto último baluarte da defesa da democracia na Argentina, apoiado por essas correntes, rapidamente tratou de estabelecer acordos de governo e pode até desembarcar com ministros no governo Milei. Esta é certamente uma inovação histórica quanto a táticas e estratégia sobre como combater o fascismo.

Mas, afinal, sob o mesmo argumento, esses setores da esquerda brasileira não somente fizeram campanha pela frente ampla contra Bolsonaro, com Alckmin na chapa, como são parte do PSOL, no caso do MES e da Resistência, partido que compõe o atual governo. Como já tratamos, as semelhanças entre Milei e Bolsonaro são muitas, uma vez que são parte de um fenômeno de extrema direita internacional, produto do esgotamento do ciclo neoliberal em meio à crise capitalista. Mas as diferenças são ainda mais significativas. A principal delas talvez seja que Bolsonaro se fortaleceu diante de uma série de degradações bonapartistas do regime político brasileiro, fruto de um golpe institucional, da prisão arbitrária de Lula e de um crescente autoritarismo judiciário e militar. E não é à toa que essa diferença não seja sequer mencionada por essas correntes: o MES foi um entusiasta da Lava Jato e de Sérgio Moro, que depois assumiu como Ministro de Bolsonaro; a CST sustenta até hoje que não houve golpe no Brasil e defendeu a prisão de Lula, junto à direita golpista.

A CST inclusive insiste em reivindicar a posição que nós do MRT, como organização-irmã do PTS argentino, tivemos em 2018, ao acompanhar os trabalhadores em um voto crítico na chapa Haddad-Manuela D’Ávila. Chegam ao ponto de dizer que se trata da mesma posição que agora assumiu sua organização-irmã, a Izquierda Socialista (IS), na Argentina, felizmente posição bastante minoritária na FIT-U. Tal comparação somente se explica pela posição golpista da qual se orgulham no Brasil. Como comparar o voto crítico em um partido que, naquele momento, estava sendo atacado pelas forças do regime do golpe institucional, com Lula preso arbitrariamente pelo Judiciário, tirando das massas o direito de decidir em quem votar com apoio dos militares e do imperialismo, sem ele poder nem mesmo se pronunciar, ao voto em Massa, representante da burguesia e do ajuste na Argentina? Não deixa de ser irônico que aqueles que buscaram acusar a esquerda argentina de “subestimar a extrema direita” para justificar seu apoio ao ajustador Massa em nome de “defender a democracia” sejam justamente algumas das correntes que legitimaram o sequestro do voto de milhões no Brasil, que abriu caminho a Bolsonaro.

Ainda assim, nem Milei nem Bolsonaro são ainda variantes fascistas. Se o fossem, certamente o enfrentamento real se daria na luta de classes, e não nas urnas, muito menos com o voto na burguesia que se beneficia dos ajustes e menos ainda compondo governo que se alia a partidos de extrema direita. Mas a possibilidade de ascensão do fascismo não pode ser descartada do horizonte e depende do acirramento da luta de classes. Nesse cenário, qual é o exemplo de “unidade contra a extrema direita” que o PSOL e a esquerda brasileira têm tanto a oferecer ao povo argentino?

“Espera passiva” ou enfrentamento real?

Felizmente, o PTS, força majoritária da esquerda argentina que é parte da Frente de Esquerda junto a outras organizações, foi não somente a única força política em todo o período eleitoral a denunciar e desmascarar a extrema direita - enquanto o peronismo via em Milei uma possibilidade de desidratar a coalizão de Macri e Bullrich, ajudando a organizar suas listas -, mas fez isso desde a independência de classe, desmascarando o ajuste do governo, com um programa anticapitalista. Myriam Bregman, candidata presidencial pelo PTS na FIT-U neste ano, na chapa com Nicolás del Caño, já havia se destacado anos antes desmascarando o caráter ultra direitista de Milei, e nos debates presidenciais de outubro viralizou nas redes sociais contra o “libertário”. E, por isso, sem ter prestado qualquer apoio político ou eleitoral a Massa, longe de uma “espera passiva”, que deseja “sorte” aos argentinos, chama desde a “hora zero” a um enfrentamento com a única força social que pode de fato derrotar o plano de choque de Milei: a classe trabalhadora, em aliança com o povo pobre e oprimido, nas ruas da Argentina. Já começamos a ver assembleias ocorrerem em várias categorias estatais na Cidade de Buenos Aires, um “estado de alerta”, que demonstra que há disposição por baixo para enfrentá-lo.

Por sua vez, um breve olhar para o Brasil encontrará o PSOL compondo o governo Lula-Alckmin, ao mesmo tempo em que este concedeu Ministério ao Republicanos do privatista Tarcísio de Freitas, de Damares Alves e Mourão, além de ter somado esse partido bolsonarista à sua base aliada. Essa configuração com a extrema direita bolsonarista não deixa de ser simbólica. Afinal, qual é o “exemplo”, então, de unidade contra a extrema direita que o PSOL tanto reivindica ao povo argentino? O que vimos nos 4 anos de governo Bolsonaro, às custas de enorme sofrimento da classe trabalhadora, de milhares de mortes na pandemia e do aprofundamento da precarização do trabalho, foi que a estratégia adotada pelo PT e seguida pelo PSOL combinou a confiança nas instituições que outrora articularam o golpe e as reformas, como no STF, que buscava disciplinar Bolsonaro, e a campanha eleitoral de Lula, subordinando todas as lutas à sua eleição, que por sua vez contou com peso histórico de burgueses de todo tipo e da própria direita (e com apoio da esquerda).

A “tática eleitoral” adotada no Brasil não somente se mostrou muito mais do que uma mera “tática eleitoral”, dado que significou a adesão do PSOL ao governo de frente ampla, com Ministério e com o vice-líder do governo na Câmara. Mas sobretudo o que se manteve de fora dessa “unidade” contra a extrema direita foram justamente os interesses dos trabalhadores e do povo pobre e oprimido: estão preservadas as reformas anti-operárias aprovadas nos últimos anos que agora são “página virada” sobre as quais essas correntes se recusam a falar, está preservada a terceirização irrestrita que abre espaço para o trabalho escravo, está preservada a subordinação ao imperialismo auxiliando na repressão do povo peruano e sem romper relações com Israel, assim como os interesses do agronegócio e das grandes mineradoras que devastam o meio ambiente, das polícias que promovem suas chacinas, e claro, com novos ajustes como o Arcabouço Fiscal que dá respaldo às privatizações da extrema direita.

De fundo, está tão difícil dar fundamentos ao apoio a Massa, que fortaleceu Milei na Argentina, porque é difícil esconder que esses fundamentos já foram rifados muito antes, em um curso desenfreado de subordinação à conciliação de classes no Brasil e internacionalmente. Mas também porque a pergunta de se, no espelho argentino, miramos o futuro brasileiro, em uma América Latina profundamente instável, encontra essas correntes no campo da cumplicidade com os ataques que seguem significando precarização da classe trabalhadora brasileira e são a base para possíveis novos fenômenos de extrema direita. Nesse debate com o PSOL, estão os descaminhos de uma esquerda institucional, subordinada ao governo de frente ampla e à burocracia sindical. Aonde chegará?

Confiamos que a esquerda revolucionária e a classe trabalhadora argentinas possam inspirar no Brasil o único caminho que pode varrer a extrema direita, suas raízes e todos os ataques: a luta de classes.




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