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Caso Sônia | Desembargador mantém trabalhadora em condição análoga à escravidão e o voto do judiciário

Dos mesmos criadores do “voto a favor do Marco Temporal “, veio aí o “voto a favor do trabalho análogo à escravidão”. Iniciando a segunda semana de setembro (8), o Ministro do Supremo Tribunal Federal, André Mendonça, permitiu que o desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina especialista em Direito do Trabalho, Jorge Luiz de Borba, retornasse para casa com a trabalhadora, Sônia Maria de Jesus, após ser acusado de mantê-la em condições análogas à escravidão por quase 40 anos.

domingo 15 de outubro de 2023 | Edição do dia

Na foto: Sônia e o desembargador Luiz Borba

Dos mesmos criadores do “voto a favor do Marco Temporal “, veio aí o “voto a favor do trabalho análogo a escravidão”. Iniciando a segunda semana de setembro (8), o Ministro do Supremo Tribunal Federal, André Mendonça, permitiu que o desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina especialista em Direito do Trabalho, Jorge Luiz de Borba, retornasse para casa com a trabalhadora, Sônia Maria de Jesus, após ser acusado de mantê-la em condições análogas à escravidão por quase 40 anos.

Sônia tem 50 anos, é surda e vivia em um abrigo de crianças em São Paulo quando foi retirada do local pela sogra do desembargador aos 9 anos de idade. No início da adolescência, época em que a primeira filha dos investigados nasceu, Sônia foi entregue ao casal e passou a conviver com a família.

Luiz Borba e sua esposa, Ana Cristina Gayotto de Borba, alegam que por este fato, a trabalhadora era “da família”, e disseram que a mulher foi mantida na casa como um “ato de amor”, tendo recebido o tratamento igual ao de seus 4 filhos (uma médica ginecológica, outra bailarina profissional, a terceira é advogada e o filho é engenheiro de produção civil). Intimadas para prestar testemunho, as três funcionárias que trabalham atualmente na casa do desembargador (2023), confirmam a versão dos patrões, em contraposição a versão apontada pelas exs- funcionárias que trabalharam na casa antes da denúncia.

"Escravinha" e "trabalho forçado" foram palavras presentes nos testemunhos das ex-funcionárias. Uma delas, relatou aos auditores do trabalho que precisou dar banho em Sônia pois a mesma sofria de assaduras embaixo dos seios porque não tinha sutiã. Uma outra trabalhadora confirmou a denúncia e disse que via Sônia como uma trabalhadora, e que não era da família, já que as filhas do casal “têm de tudo e Sônia nada”.

A trabalhadora não recebia salário, plano de saúde, não foi alfabetizada na Língua de Sinais Brasileira (libras) e se comunicava através de gestos simples que estabeleciam a comunicação necessária para servir às ordens dos patrões. Não possuía convívio social com o ambiente externo, dormia nas dependências de empregada, e passou a ter CPF, RG e Título de Eleitor somente em 2021, já que Borba afirma que não achava necessário ser feito antes. O desembargador também afirma que Sônia tem “dificuldades cognitivas” (sem apresentar nenhum laudo que comprove tal condição - fato que também é exposto paradoxalmente por André Mendonça em sua decisão ao aduzir: “Não consta do processo e tampouco há notícia da existência de manifestações técnicas especializadas a respeito da capacidade intelectual da paciente”; e que a culpa não é dele se ela não conseguiu aprender Libras. Isso tudo sem apresentar nenhum documento formal de matrícula da trabalhadora em qualquer instituição de ensino básico.

Mendonça e Borba têm um histórico acadêmico em comum: atuam em processos trabalhistas, e não é preciso de muito para captar quais vertentes baseiam o trabalho de ambos. De um lado, um Ministro que afirma que trabalho escravo na verdade é uma questão depaternidade socioafetiva; do outro, um magistrado que mantém uma trabalhadora nesse cenário por mais de 30 anos.

Além disso, os dois também são bem parecidos em outro aspecto: concordam que o caso não se trata de uma questão de trabalho análogo à escravidão, e sim de uma questão de “regularizar a situação familiar”, já que “de fato, já existe há muito tempo um reconhecimento não-oficial de filiação afetiva” da trabalhadora. Em sua decisão, Mendonça aduz que: malgrado esse vínculo ainda não tenha sido estabelecido, o caso será solucionado com o reconhecimento de paternidade socioafetiva “oficial” – Por mais que Borba já tenha alegado que não o fez ainda por “dificuldades do processo”

A herança desse discurso tem uma forte influência do período pós-abolição, com a promulgação da Lei Áurea. No dia 19 de maio de 1888, o ordenamento jurídico brasileiro se aprofunda numa contradição crescente entre o reconhecimento jurídico da igualdade de escravizados e homens, e os distintos mecanismos cotidianos utilizados para perpetuar e aprofundar a desigualdade real que pauta a vida dos negros e mantém a dominação da burguesia sob a classe trabalhadora através da opressão de raça e gênero.

O trabalho doméstico marca a localização da mulher negra em uma condição de viver para servir outras pessoas, caracterizando isso como um “ato de amor”, e não um dos emblemas mais fortes da herança escravocrata do Brasil. O lugar dos negros na sociedade vem acompanhado da naturalização de vidas completamente precárias, associadas às mais variadas formas de violência, humilhações e “atos de amor”, reconhecidas socialmente e interpretadas ao bel prazer da legalidade (como afirma Borba e reitera Mendonça).

É extremamente preocupante (mas não surpreendente) que uma decisão dessa tenha sido levada adiante pelo Superior Tribunal Federal, competente em proferir jurisprudência: decisão em comum sobre a mesma matéria/ sentido. O que pauta a decisão desse caso em específico de Sônia, pois é o embrião para a fórmula comum de se legislar não só sobre casos análogos à escravidão, como em matéria de direito trabalhista num geral.

Essas contradições jurídicas revelam um ordenamento composto por regras impostas pela burguesia misógina e racista. O poder judiciário hoje, se intitula como garantidor da legalidade ao mesmo tempo em que a viola para chegar aos seus fins. Os “Guardiões da Constituição” (ministros do STF), tal qual os monarcas, e sua liderança individual advinda da “iluminação divina”, se dão poderes de controle da vida social e política muito além daqueles que a própria Constituição prevê. E isso não é à toa, posto que como bem desenvolvido por Matías Maiello, vivemos em uma época do“Bonapartismo de Toga”.

Nesse sentido, a burguesia se vê obrigada a aceitar algum salvador, que sob a aparência de se colocar como árbitro acima das classes em disputa, se apoia para salvaguardar os interesses da elite. Traço aqui um paralelo entre o bonapartismo judiciário brasileiro e as eleições argentinas. Para isso, detenho-me sobre um ponto em comum de ambas: a alçada de um “salvador” (individual) para tentar conter a crise e controlar possíveis processos de luta da classe trabalhadora e seu potencial de revolucionar a sociedade.

As eleições presidenciais da Argentina se aproximam, e nos últimos debates fica nítido o internacionalismo e a conexão do deságue dessa fórmula burguesa, vista na disputa entre Sergio Massa, Patricia Bullrich, Javier Milei, Juan Schiaretti, que dada as diferenças entre eles, competem de forma animalesca para ver quem salvará a economia capitalista; para ver quais mecanismos e táticas são mais eficientes para descarregar a conta da crise nas costas dos trabalhadores e juventude. Myriam Bregman, por outro lado, propõe a única fórmula científica e material capaz não só de destruir esse modelo econômico decadente como concretizar um novo, com a tomada consciente das decisões pela maioria da população, aduzindo: “A saída não é pisar na cabeça do próximo, é através da unidade, de baixo para cima, e que governem aqueles que nunca governaram. Sempre disseram à classe trabalhadora que ela era a espinha dorsal do movimento, nós queremos que ela seja a cabeça de uma nova sociedade.”

Esse é o caminho rumo ao fim de uma sociedade pautada em casos como o de Sônia, como o de Bernadete (BA), Thiago e Eloá (RJ), e para isso, não podemos ter nenhuma confiança nessas Entidades e no Estado, que a cada dia aprimoram os mecanismos de dominação da maioria da população. É preciso se descolar dessa base jurídica que sustenta todos esses atos criminosos que colocam em cheque todas e quaisquer promessas da universalização dos direitos democráticos e sociais, e nesse sentido, como parte dessa luta, impulsionamos o Manifesto contra a Terceirização e a Precarização do Trabalho (conheça mais e assine também).




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