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OPINIÃO | Debate com Henry Kissinger: nova ordem mundial ou crises, guerras e revoluções?

A crise estrutural do capitalismo que começou em 2008 revitaliza uma série de debates que tinham sido apagados na etapa anterior. Como isso se reflete nas relações entre os países? ’Nova ordem mundial’ ou ’crises, guerras e revoluções’?

terça-feira 10 de novembro de 2015 | 23:30

Na introdução de seu livro ‘A Diplomacia’ o ex-secretário de estado dos EUA Henry Kissinger defende a necessidade da construção de uma nova ordem mundial.

Partindo do pressuposto do enfraquecimento da hegemonia estadunidense e do fortalecimento de novas potências como China, União Européia, Rússia, Índia, argumenta que frente a essa nova realidade onde não é mais possível aos EUA impor diretamente sua vontade é necessário o estabelecimento de novas relações de poder entre esses países com status análogos ou próximos, uma balança de poder efetiva entre essas principais potências, impedindo assim que suas disputas levem a conflitos cada vez mais agudos.

O modelo que busca seguir Kissinger para estabelecer essas novas relações internacionais, o ideal para onde apontam suas idéias, é a balança de poder que se estabeleceu entre os países europeus que se formavam durante o século XVII e que foi oficializada com o tratado de Westifália. O próprio ideal para onde apontam as idéias do diplomata estadunidense mostram os limites do programa que busca propor em sua obra.

O tratado que utiliza como modelo de uma relação relativamente orgânica entre diferentes potências, que apesar de não necessariamente evitar os conflitos entre elas permite que estabeleçam bases para uma cooperação e resolução dos conflitos, e que foi firmado como conclusão da guerra dos 30 anos, está longe de representar a idealização de Kissinger. A Europa que se construiu com o tratado em poucos momentos foi uma Europa da cooperação e resolução dos conflitos, mas antes o continente por excelência onde se deram os conflitos mais importantes e sangrentos da modernidade.

Como construir esse modelo de relações entre as novas potências, essa balança de poder entre os países, segundo o ex-secretário de estado dos EUA? Através de uma nova decisão e clareza política das elites desses países, do reconhecimento por parte de suas classes dominantes que frente a essa nova realidade não é possível o estabelecimento de relações baseadas nos conflitos, uma aberta disputa de hegemonias que se agudizando levaria, como conseqüência lógica, a disputas militares, guerras, que com o desenvolvimento da tecnologia militar hoje só poderiam ter resultados catastróficos.

Para Kissinger, portanto, o estabelecimento de uma balança de poder entre as principais potências, que em sua visão tendem a hegemonizar as relações internacionais daqui para frente, é expressão de uma estratégia a ser seguida de forma consciente por esses atores internacionais, na busca de estabelecer relações entre eles que sejam vantajosas mutuamente e assim evitando os conflitos mais agudos.

Mas existem bases reais para a utopia reacionária construída por Henry Kissinger? Os conflitos entre as potências imperialistas e países que buscam chegar a essa posição são expressão simplesmente da vontade subjetiva, de erros ou acertos de suas elites, ou têm bases mais profundas nas próprias relações capitalistas de produção, nos conflitos econômicos que se expressam necessariamente nesse modo de produção e que tem sua expressão superestrutural mais aguda nas guerras entre os países?

É na tentativa de dar uma pequena contribuição para um debate que se torna cada vez mais atual com o fim da etapa da restauração burguesa, que reatualiza a caracterização feita por Lênin no começo do século passado da época imperialista como época de crises, guerras e revoluções que é escrito esse artigo.

Época imperialista como expressão de um novo momento da estruturação do modo de produção capitalista

O capital é sempre síntese de múltiplos capitais em concorrência. O estado-nação, como forma moderna da superestrutura política através da qual a classe dominante da sociedade capitalista legitima sua dominação, é expressão, nesse sentido, da unidade de uma comunidade de capitalistas, de burgueses, reunidos por traços lingüísticos, étnicos, históricos, culturais, tanto para garantir sua dominação sobre as classes subalternas em determinado território quanto para de maneira unificada, em “sociedade”, assim digamos, enfrentar a concorrência de outros capitalistas em outros territórios.

Ou seja, o estado, como “balcão de negócios comuns da burguesia”, reflete em sua estruturação características análogas as das relações de produção do qual é expressão; assim como o capital só pode existir como síntese de múltiplos capitais em conflito o estado só pode existir como expressão da presença de múltiplos estados em conflito.

Já na época do capitalismo de livre-concorrência, portanto, o estado ocupava esse papel de ser o gestor dos negócios comuns da burguesia, tanto em conflito com a classe operária e demais setores oprimidos quanto em relação às burguesias de outros territórios.

Com a época imperialista esse papel do estado como gestor dos negócios comuns dos capitalistas, a defesa de seus interesses associados em conflito com os trabalhadores e as outras burguesias, se agudiza; a exportação de capitais, o termino da partilha do mundo entre as principais potências, a necessidade de garantir reservatórios de matérias primas e mão de obra barata, são as bases para que os diferentes estados cada vez mais entrem em conflito entre si, buscando resolver às contradições de seu desenvolvimento capitalista particular às expensas de seus concorrentes em outros países.

Assim, essa agudização dos conflitos entre os países imperialistas não é causada por um erro de estratégia política ou incapacidade de forjar uma balança de poder entre as potências que pudesse dirimir seus conflitos, como pensa Kissinger, mas sim pela necessidade objetiva da acumulação ampliada do capital, pela necessidade de os capitais associados em uma nação imperialista, para superarem a contradição cada vez mais profunda entre as forças produtivas concentradas em seu país e o modo de produção capitalista, subjugarem seus concorrentes, tomarem suas colônias e semi-colônias, transformar seus concorrentes mesmo em semi-colônias, conquistando assim novos espaços para a exportação de SEUS capitais, garantir o fluxo de matérias primas e mão de obra barata para SUAS necessidades de acumulação, ou seja, garantir uma nova partilha do mundo que seja expressão de seus interesses em contraposição a de seus concorrentes.

Essa necessidade objetiva do desenvolvimento capitalista não pode ser limitada por piedosos desejos de cooperação entre as potências, o estabelecimento por uma vontade subjetiva de uma balança de poder entre elas (e aqui Kissinger se aproxima por outros caminhos e premissas da teoria do super-imperialismo de Kautsky) posto que a forma de existência mesmo do capital impõe a busca desenfreada, não importando as conseqüências para sua própria sobrevivência, isso sem falar na sociedade de conjunto, de uma constante acumulação ampliada do capital, o que leva como necessidade objetiva a cada vez maiores contradições entre forças produtivas e modo de produção e tem como expressão superestrutural mais aguda a guerra entre os países que é a forma de continuar por outros meios os conflitos que surgem a partir das próprias relações capitalistas.

A crise econômica de 2008 e os novos conflitos

A etapa da restauração burguesa pareceu dar bases para utopias reacionárias como a construída por Henry Kissinger; a grande derrota dos trabalhadores com a queda do muro de Berlin, o fortalecimento do poderio estadunidense, que durante um lapso de tempo foi potência hegemônica inconteste, com a derrota de seu contendor durante a guerra fria (a URSS), o estabelecimento de um novo regime de acumulação onde os países do leste europeu, agora atraídos de forma subalterna às cadeias de desenvolvimento capitalistas, eram os fornecedores de matérias primas baratas, a China, também empurrada a essa espiral, a grande fornecedora de mão de obra, o desenvolvimento de novas tecnologias que permitiam o fortalecimento do capital financeiro a patamares muito superiores, e um passo adiante na unificação européia levada a frente pelas elites capitalistas com o fim da divisão na Alemanha, aparentavam permitir (pelo menos para os apologistas do capital, que chegaram a falar em fim da história) o surgimento de uma nova fase do capitalismo onde os conflitos entre os estados seriam afastados pela busca de uma relação mais harmoniosa e cooperativa entre as potências centrais.

A década de 90 do século passado e quase toda primeira década de nosso século pareceram corroborar essa perspectiva, com as grandes crises econômicas e conflitos atingindo principalmente os países periféricos do capitalismo, podendo, nesse sentido, ser atribuídas não a limites estruturais do sistema, mas as más políticas das elites desses países.

A grande crise estrutural do capitalismo que se inicia em 2008 com a quebra do Lehman Brothers e que atinge em cheio o coração do capitalismo, suas potências imperialistas centrais, joga um banho de água fria nessa perspectiva utópica (não levemos em conta aqui os limites e a mesquinhez de suas próprias utopias) construída por intelectuais reacionários.

Ela mostra que longe da possibilidade do estabelecimento de uma balança de poder entre as principais potências imperialistas e países com status particular nas relações internacionais (como China e Rússia) o que se aponta com a continuidade do desenvolvimento capitalista é a caracterização de Lênin da época imperialista como época de “crises, guerras e revoluções” e que cada vez mais a disjuntiva apontada por Rosa Luxemburgo se mostra atual: “socialismo ou barbárie”.

A crise, portanto, é crise de um determinado regime de acumulação capitalista, ruptura de um particular equilíbrio instável que permite a acumulação ampliada do capital; só pode ser resolvida, nesse sentido, com o estabelecimento de um novo regime de acumulação, um novo equilíbrio, sempre instável, que permita o desenvolvimento do capitalismo.

Na época imperialista, com suas maiores contradições e conflitos, o estabelecimento de um novo instável equilíbrio capitalista, de um novo regime de acumulação, só é possível, no caso de crises estruturais como a que estamos vivendo, com conflitos mais agudos e importantes, que reconfigurem as relações hierárquicas entre os países e estabeleçam para o país ou conjunto de países beneficiados por essas novas relações a possibilidade de um novo ciclo expansivo.

Aqui estão as bases para os novos conflitos que já acontecem e que tendem a se agudizar.

Rússia, conflitos na Ucrânia e Síria e novas relações entre o país e as potências imperialistas

Os conflitos mais importantes abertos hoje são entre Rússia e as potências imperialistas, ambos os setores buscando reconfigurar, a partir de seu poder e de possibilidades, as correlações de forças para que essas assumam aspectos mais favoráveis a seus interesses.

Com a queda do muro de Berlin e o fim dos ex-estados operários burocratizados os países do leste europeu e em uma menor medida a própria Rússia sofreram um processo de semi-colonização por parte do capital imperialista, tornando-se fornecedores de matéria-prima e mão de obra qualificada barata para esses países. A ascensão de Putin no final da década de 90 conseguiu, de forma semi-bonapartista e autoritária, ser um freio a esse processo de semi-colonização russa, ao buscar reorganizar o estado russo desmantelado sobre novas bases capitalistas.

A crise de 2008, no entanto, pressiona os países imperialistas a fortalecer o processo de semi-colonização do leste europeu e da Rússia, grandes fontes de matérias primas essenciais ao capitalismo como gás natural e petróleo (sem falar nas grandes áreas cultiváveis e com solo fértil na Ucrânia e própria Rússia) e mão de obra qualificada e barata, combustíveis fundamentais para a expansão capitalista.

É nesse contexto que se inscreve o conflito na Ucrânia entre Rússia e as potências ocidentais, que ali buscaram enfraquecer a influência russa no leste europeu. São parte desse contexto também os conflitos recentes entre Rússia e EUA sobre o futuro da Síria. Em solo sírio buscam os russos projetar influência para fora de uma zona de poder já relativamente reconhecida como sua (o leste europeu) e quem vem sendo atacada; projetando poder em novas áreas buscam os russos serem atores mais influentes nas relações internacionais, permitindo assim resistir melhor aos ataques das potências imperialistas a regiões que entendem como sua área de influência e onde querem fortalecer sua presença.

Relação entre China e EUA, cada vez mais atritos

Outro ponto de conflito importante que se desenha a partir da crise de 2008 é a relação cada vez mais tensa que vem se gestando entre China e EUA. Um dos elementos chave para o forte crescimento econômico nos primeiros anos do século XXI foi o estabelecimento de relações complementares, quase simbióticas, entre a economia chinesa, como grande produtora de mercadorias, como “fábrica do mundo”, e a economia estadunidense como economia rentista e consumidora em última instância, através dos mecanismos de financeirização da economia e da compra pelos chineses dos títulos da dívida pública dos EUA. Essa relação entre os dois países permitiu uma dilatação artificial no consumo da população estadunidense, cuja expressão mais visível foi a formação da bolha imobiliária da qual o estouro é uma das marcas do começo da presente crise, e permitia também o escoamento, uma demanda efetiva, para a produção industrial chinesa. Essa relação simbiótica, mas altamente artificial, entre a economia dos dois países não poderia se manter por muito tempo (por razões que discutiremos mais a fundo em outro artigo) e a crise de 2008 marcou seu fim.

De lá pra cá as tensões entre os dois países só tem feito aumentar, com rusgas diplomáticas e disputas comerciais cada vez mais freqüentes. Grande marco no aumento das disputas entre China e EUA foi o lançamento no início desse ano do Banco Asiático de Desenvolvimento, medida através da qual os asiáticos tentam criar mecanismos e estruturas financeiro/comerciais alternativas as estabelecidas pelos estadunidenses desde os tratados de Breton Woods que são o marco das relações financeiras e comerciais desde o fim da segunda guerra mundial.

A tentativa dos EUA de impedir que aliados seus e países imperialistas importantes como França, Reino Unido e Alemanha se juntassem a iniciativa chinesa fracassou, o que aumentou a tensão. A busca da China de estabelecer laços comerciais mais profundos com a América Latina durante esse ano só aprofundou os atritos. Buscando dar uma resposta a essas investidas chinesas no mês passado os EUA articularam o que é considerado um dos maiores acordos comerciais da história, o tratado de livre comércio trans-pacífico, que conscientemente exclui os chineses, como forma de aprofundar laços com economias dependentes dos EUA no pacífico (área de influência em disputa com os chineses) e assim tentar isolar a China e enfraquecer sua influência na região.

Também no mês passado os atritos entre os dois países ultrapassaram as disputas comerciais, com a manobra estadunidense de enviar um navio de guerra cruzar águas reivindicadas pelos chineses. Apesar de essas manobras terem hoje caráter meramente simbólico e não representarem nenhum perigo de guerra iminente entre os dois países mostram que o clima e os atritos entre China e EUA se tornam cada vez mais tensos e que o desenvolvimento da crise e as disputas comercias como forma de superá-la podem levar a confrontos cada vez maiores.

As contradições da União Européia e hegemonia alemã

A crise internacional foi também um profundo golpe para o projeto da União Européia; até aquele momento a UE tinha sido altamente funcional para o imperialismo alemão, agora unificado após a queda do muro de Berlin, para avançar na semi-colonização dos países do leste e do sul europeu. Não que a UE ainda não seja uma ferramenta interessante para os alemães, mas não mais da mesma maneira estável e com poucos conflitos como tinha sido até então.

A resistência do povo grego aos ditames da troika, desviados pelo Syriza, as mobilizações na Espanha, cuja tentativa de desvio é representada pelo grupo irmão do Syriza, Podemos, mesmo os conflitos na Ucrânia, mostram que cada vez mais haverá resistências a imposição e ditames imperiais da Alemanha.

Qual será a saída que buscará o capital financeiro alemão para contornar a crise? Certamente não mais poderá ser uma saída pacifica, com sua imposição se dando simplesmente através da extensão organizativa da União Européia. Isso pode ser um fator importante para o renascimento de um militarismo alemão, como forma de garantir seus interesses internacionalmente, o que dado o peso econômico, o tamanho da população e a posição geográfica da Alemanha na Europa, pode causar graves conflitos no continente que arrastem o restante do mundo, como já vimos com duas grandes guerras no século passado.

Conclusão

Nas linhas desse pequeno texto tentou-se mostrar como longe de qualquer utopia reacionária o desenvolvimento das relações capitalistas não aponta para uma ‘nova ordem mundial’, que os conflitos entre os países imperialistas não são fruto de falta de clarividência ou perspectiva estratégica da burguesia mundial, mas expressão das contradições próprias ao desenvolvimento do capital. A presente crise, jogando por terra de uma vez por todas o triunfalismo burguês de que a história teria acabado e que a “democracia” liberal seria a mais alta forma da organização humana, reatualiza a definição de Lênin da época imperialista como de ‘crises, guerras e revoluções’.

As possibilidades de confrontos bélicos entre os países centrais do capitalismo e potências emergentes voltam a se colocar no horizonte, isso porque a maneira de os capitalistas superarem a crise (pelo menos de forma estrutural, garantindo um novo momento de equilíbrio e de expansão capitalista, o que não exclui uma superação conjuntural da crise sem grandes conflitos), dentro de seu ponto de vista, é ou submeter e semi-colonizar de maneira mais aguda os países dependentes na busca de matérias primas e mão de obra baratas que permitissem a recomposição de sua taxa de lucro (seria uma saída para o imperialismo, por exemplo, semi-colonizar China e Rússia e garantir seus imensos reservatórios de matéria prima e mão de obra) no caso dos países imperialistas já estabelecidos, ou, no caso dessas potências emergentes (principalmente China, mas poderíamos adicionar aqui também Rússia), alterar a correlação de forças internacional e conseguir uma nova localização que lhes permitisse expandir suas áreas de influência. Evidente que ambos os objetivos só poderiam ser alcançados com grandes conflitos, efetivas guerras, entre esses países. Uma possível guerra dessas proporções necessariamente oporia uma coalizão dos países imperialistas contra China e Rússia? Não. Diversos tipos de coalizão e acordos poderiam se estabelecer que opusessem inclusive países imperialistas em aliança com China ou Rússia (ou ambos) a outro bando imperialista.
A única alternativa histórica, contudo, não é a pessimista, de um grande conflito que dado o desenvolvimento da técnica militar teria conseqüências catastróficas, mas cada vez mais vemos ressurgir no seio de nossa classe, entre os trabalhadores, a idéia de que é possível construir um novo mundo, sem opressão e exploração e que é nossa tarefa em luta construí-lo.

Cada vez mais nós trabalhadores devemos assumir a responsabilidade de tirar das mãos dos capitalistas o timão da história, posto que o rumo que eles apontam para a civilização é o precipício, e assumi-lo, mostrando a possibilidade e nossa capacidade de construir uma nova realidade.


Temas

Economia



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