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Educação | A “reforma da reforma” do Ensino Médio

A reforma do Ensino Médio ou o Novo Ensino Médio é odiada por estudantes e professores. Mas porque o governo Lula ainda a mantém de pé?

Danilo ParisEditor de política nacional e professor de Sociologia

quarta-feira 30 de agosto de 2023 | Edição do dia

“Não é questão de revogar”. Essa foi uma das primeiras declarações do atual Ministro da Educação, Camilo Santana, sobre a Reforma do Ensino Médio. Nunca foi um segredo a predileção do governo pela manutenção do Novo Ensino Médio (NEM). Quadro que começou a mudar quando os secundaristas começaram a se manifestar, gerando um risco de criar um efeito contágio nas professoras e professores país afora. Só então a luz de alerta no governo acendeu.

Para dar alguma resposta ao descontentamento generalizado e evidente, o MEC propôs uma “consulta” sobre o NEM. Uma consulta por whatsapp, com um questionário de questões objetivas. Como se pode imaginar, a pergunta sobre a revogação da Reforma não constava entre as alternativas.

As grandes centrais sindicais, com suas entidades ligadas à educação, estão comprometidas com o governo e suas medidas. Como estavam sendo pressionadas por suas bases sindicais, que notoriamente eram contra a manutenção do NEM, acharam essa solução o melhor dos mundos, chamando o engodo de vitória.

Uma consulta “para inglês ver”. Um mise-en-scène de quem queria se mostrar preocupado e “ouvindo” as professoras e estudantes. Além disso, com a consulta o governo buscava mensurar o desencantamento e identificar quais os pontos mais criticados do novo Ensino Médio. Assim, a “reforma da reforma” começou a ser articulada.

Como assim, reforma da reforma? O MEC afirmou que irá propor reformulações em alguns pontos da lei que estabeleceu o Novo Ensino Médio. Segundo o ministério, um projeto de lei será encaminhado ao Congresso em setembro. No entanto, ao que tudo indica, é pouco provável, para não dizer impossível, que o governo contrarie o interesse de grandes grupos privados da educação, principais interessados na manutenção do Novo Ensino Médio.

Para entender esse jogo, voltemos a 2016, ano do fatídico golpe institucional.

De lá para cá grandes ataques foram aprovados. Reforma da previdência, reforma trabalhista, a expansão das terceirizações, o famigerado teto de gastos, privatizações e por aí vaí. Ataques que marcaram uma mudança estrutural da sociedade brasileira, com a vertiginosa perda de direitos. Nesse contexto, poucos se lembram qual foi a “reforma inaugural”, aquela escolhida pela grande burguesia para mostrar que os tempos haviam mudado.

Essa reforma foi a do Ensino Médio. Aprovada por Temer em 2017, com direito à aprovação em tempo recorde via Medida Provisória. Não queriam deixar dúvidas. Estavam vindo para arrancar até a última gota dos poucos direitos que ainda restavam no país.

E a escolha do cartão de visitas não foi sem motivo. Todo projeto de sociedade precisa de um projeto de educação que lhe corresponda. Na história, os exemplos são inúmeros. As antigas escolas jesuítas, para a expansão do cristianismo e dos ideais europeus, são pedra fundadora da educação formal no Brasil.

Mas também podemos buscar um paralelo histórico mais próximo. Tão logo os militares se apoderam do país em 1964, iniciaram-se as tratativas para o famoso acordo MEC-USAID [1], agência dos Estados Unidos para adequar sistemas de ensino de acordo com os seus propósitos. Em suma, o acordo previa uma série de diretrizes de viés tecnicista, que visavam adequar o sistema de ensino brasileiro aos interesses da economia dos Estados Unidos da América.

Voltando ao país do golpe, agora o institucional de 2016, aprovar a Reforma do Ensino Médio tinha como objetivo fortalecer e disseminar as concepções que iriam fundamentar as outras reformas que lhe sucederam.

É por isso que hoje se proliferam conteúdos relacionados ao empreendedorismo, ao ideário de que planejando sua vida tudo pode melhorar (até matéria esse conteúdo virou, o chamado “projeto de vida”), entre inúmeros outros exemplos das concepções de mundo neoliberais e privatizantes. Talvez o mais grotesco deles tenha sido o itinerário “Como se tornar um milionário?”, oferecido em Brasília.

Em outras palavras. Se vamos ter uma sociedade onde os trabalhadores não vão poder se aposentar, vão trabalhar até morrer, onde nossos jovens o máximo de emprego que vão conseguir é em cima de uma bicicleta pedalando 12 ou 14 horas por dia, podendo ser assassinados pela polícia enquanto trabalham porque são negros, se é essa sociedade sem direitos: o que você precisa incutir na cabeça dos adolescentes? Que eles precisam ser empreendedores. Isso é a Reforma do Ensino Médio.

Chegamos às primeiras conclusões das reais motivações na preservação do Novo Ensino Médio. Não é segredo, ao contrário, é declarado às intenções do governo de Frente Ampla de preservação da Reforma Trabalhista e da Reforma da Previdência. Não é possível dissociar essas dimensões.

Mas não é só isso. O próprio PT possui relações orgânicas com os grandes empresários da educação.

No livro “Todos Pela Educação? - Como os empresários estão determinando a política educacional brasileira”, Erika Moreira Martins apresenta uma interessante análise sobre como cresceu e prosperou um movimento de forte aspiração empresarial cujo objetivo é influenciar políticas educacionais privatizantes e neoliberais. O Movimento Todos pela Educação (TDE) tem como alvo promover uma agenda específica dos grandes capitalistas para a educação.

Sob a máscara da “responsabilidade social empresarial”, grupos como o TDE têm sido parte fundamental para promover alterações estruturais na educação de países de todo o mundo. Foram e são os grandes entusiastas da Reforma do Ensino Médio e da Base Nacional Comum Curricular.

Entre seus fundadores encontramos as Organizações Globo, o Itaú/Unibanco, o Bradesco, o Banco Interamericano de Desenvolvimento, o Grupo Votorantim, a Odebrecht, a Telefônica e a FIESP, só para ficarmos entre os mais notáveis.

Somam-se a essas poderosas instituições empresariais, intelectuais e personalidades políticas, entre eles o próprio Fernando Haddad que impulsionou a criação do TDE, ainda quando era Ministro da Educação. Relações muito bem explicadas pela professora livre docente da Faculdade de Educação da Unicamp, Carolina Catini [2].

Haddad, o agora todo poderoso Ministro da Fazenda, sempre foi orgulhoso de se autodeclarar como o propositor da maior PPP (Parceria-Público-Privada) da história, se referindo ao Prouni e ao FIES. Através desse programa, o PT dialogou com o anseio de milhões de jovens trabalhadores que sonhavam em ter um ensino superior, ao mesmo tempo que agradou o interesse de grandes monopólios do ensino.

Graças a ele, formou-se no Brasil nada menos que o maior monopólio de educação privada do mundo, o grupo Kroton-Anhanguera. Após saturar o mercado relacionado a matrículas no ensino superior privado, esse monopólio está sedento por estender seus tentáculos no ensino básico. Para esse objetivo o NEM foi uma grande conquista.

Um pequeno exemplo para ilustrar essa importância. O NEM instituiu que uma parte da formação do aluno pudesse ser feita através do Ensino à Distância. Basta pensar no nicho de mercado para as empresas que podem oferecer esse tipo de serviço, e os convênios firmados com prefeituras e municípios, para se ter uma ideia do montante de recursos que esses monopólios podem abocanhar.

É por isso que diante da simples menção a mudar alguns pontos da Reforma do Ensino Médio, o TDE saiu em defesa da manutenção dos pilares do NEM [3].

Ainda estamos por ver o projeto de lei (PL) que será encaminhado ao Congresso pelo MEC. Antes de tudo é importante considerar que ele precisará ser aprovado pelo legislativo, que está repleto de parlamentares oriundos do chamado Centrão, partidos que nada mais são do que representantes diretos de grandes monopólios econômicos. E não menos importante, partidos que estão se integrando à Frente Ampla, sendo agraciados com ministérios.

A Folha de São Paulo afirma que recebeu um rascunho (PL), assim como o parecer do TDE faz referência a esse rascunho. Nele dizem que o MEC pretende voltar a carga horária de disciplinas obrigatórias anteriores à reforma, além da diminuição dos chamados itinerários formativos.

Isso está longe de significar a revogação da reforma. Ao que tudo indica o governo está articulando uma “reforma da reforma”. Ou seja, ajustes para aparar arestas e manter tudo como está. Dizer que está mudando tudo, para manter tudo como está.

O próprio parecer do TDE, ou seja, dos maiores interessados na manutenção da Reforma do Ensino Médio afirma de maneira taxativa que “é positivo que as medidas divulgadas busquem preservar os fundamentos essenciais da reforma.”

Apenas um exemplo disso. Nas análises que perpassam o rascunho do PL do MEC, está sendo dito que os cursos técnicos terão “exceção” de carga horária e podem ter 800, 1000 e 1200 horas dedicadas à formação profissional. E o que isso significa? Que sua carga horária para a parte obrigatória pode ter bem menos do que as 2400 horas.

Para piorar, foi aprovado na surdina um projeto da deputada Tábata Amaral (PSB) que permite que os jovens em estágio utilizem as horas no trabalho para completar sua formação no ensino médio. Segundo ela, há meio milhão de vagas ociosas no país que poderiam ser preenchidas com essa mudança de legislação.

Vejam a mágica. Basta as redes expandirem as escolas chamadas de técnicas - sem que isso signifique um ensino técnico integrado e qualificado, como os “cursos profissionalizantes” que Tarcísio de Freitas e Renato Feder já começaram a oferecer - que elas poderiam seguir a carga horária da grade curricular do atual NEM e ainda por cima prover mão de obra barata e ultra precária para diversas empresas.

E nunca é demais lembrar que Tabata é fruto da Fundação Lemann. Teve toda sua carreira e expressão pública articulada pela Fundação que… apoia a Reforma do Ensino Médio.

Só não vê quem não quer. Todas as movimentações apontam para que a “essência” do NEM seja mantida.

Não há meio termo. A única bandeira possível é sua revogação integral. E a pergunta final que resta é: o que pôr no lugar?

Bom, para isso deixemos que os professores, estudantes, trabalhadores da educação, comunidades escolares e universidades decidam. Que sejam eleitos representantes em cada escola, com cada um desses setores. Que essas representações elejam seus correspondentes municipais, estaduais e federais. Que possam decidir de maneira livre e autônoma do MEC e dos empresários da educação.

Afinal, porque ter medo que a política pública para a educação pública seja decidida por quem vive dela todos os dias?






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