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Quem faz a história?

Giovana Pozzi

Quem faz a história?

Giovana Pozzi

Esquete proposta como trabalho final para a cadeira de Introdução à História do curso de História da UFRGS.

Porto Alegre. Terça-feira, 29 de Agosto de 2023 às 14h25. Dois entregadores sentados na sarjeta da José do Patrocínio descansam à sombra de uma árvore.

A: Meu, tá foda hein…

B: Rapaz, nem me fala. Ontem foi 9 horas seguidas sem parar. Hoje 12h.

A: Tá doido. E pra gente o que é que fica disso, hein?

B: Suor e cansaço com combustível de café, pão e margarina. É o que dá.

A: Sabe muito.

B: Cara eu não sei como que tu ainda consegue estudar. Eu queria, viu. Sempre
quis. Mas sabe como é…

A: Mano, vai. É só o que eu te digo. Não é fácil, mas vai. Tem vontade de fazer o quê?

B: Sabe que eu tava pensando em ir pros mesmos lados que tu?

A: Ah é? Bah que massa, vai ser um prazer!

B: É história que tu tá cursando né?

A: Isso mesmo, historiador em formação. Se o trabalho deixar.

B: Mas me conta aí. Se tu pudesse me introduzir no assunto, que que se estuda em história? Desde guri eu sempre curti muito estudar sobre o passado e tentar entender como diabos a gente chegou aqui. É por aí?

A: Cara, é sim, mas não só. Quando eu entrei achei que ia ser bem por aí, mas depois o horizonte foi se expandindo. Porque na real a parada é que a história é uma maneira de se relacionar com o passado, tá ligado? Por exemplo, o que é o passado pra ti?

B: Tudo o que aconteceu há muito tempo?

A: Sim. Mas a medida de tempo não necessariamente é só o século passado ou coisas tão distantes assim. Daria pra dizer que tudo o que aconteceu antes do presente, de hoje, é passado. Ou seja, ontem já é passado, porque não dá mais pra mudar o que aconteceu. Mas aí a questão é: o que que se faz com esse passado? Aí entra o historiador.

B: Falando assim parece até simples! Já pensou? Conhecer e entender tudo o que aconteceu? Já imaginou o bicho daqui alguns anos tentando entender o que aconteceu no Brasil? Bah, tá doido!

A: Pois então, aí que me refiro. O lance ainda é que não é só conhecer os fatos em si. A questão é ainda mais louca, se liga. Pra entender os fatos, a gente tem que interpretar eles, conectar um nos outros pra fazer com que eles façam sentido e tentar desembaralhar um jogo de cartas confuso, esmiuçar pra ver quem foi o sujeito que fez tal ação e com qual objetivo, tendo como consequência um terceiro acontecimento e assim por diante tal qual um dominó muito específico, onde as peças se influenciam mutuamente e se entrecruzam, às vezes sem seguir uma única direção.

B: Bah, o louco começou a falar javanês! Tô ligado que a realidade é complexa meu irmão, mas peraí, coopera com meus neurônios cansados e explica melhor isso daí!

A: Vamo lá que eu vou tentar. Exemplo concreto. 1964. Uns dizem que foi revolução, não dizem?

B: A gadaiada sim!

A: Exato. E por que eles dizem isso?

B: Pra defender o exército que hoje tá aí fazendo a festa no nosso país enquanto a gente passa fome carregando comida pra lá e pra cá.

A: Corretíssimo. E tu não acha que isso é um uso político da história? Uma interpretação interessada?

B: Porra, se é! Interpretação interessada em manter a gente que nem burro de carga! Foi é golpe! Sabe que meu pai trabalhava no campo nesse período? Desde comecinho da década de 50. Eu cresci ouvindo ele contar as histórias das ligas camponesas, tá ligado? Antes de 64, existia tipo mais de 200 ligas espalhadas pelo país e em quase todos os estados do Brasil. Pergunta se a gente estuda isso na escola?

A: Bah, mano, não sabia que teu pai tinha feito parte das ligas camponesas. Que afudê!

B: Demais… Até hoje ele enche os olhos d’água pra contar.

A: Nossa, imagino! E aí é que tá, a história nos é contada de um jeito a depender do locutor. Tem uns que contam todo esse período da história do Brasil, rico em processos profundos de luta dos camponeses e dos trabalhadores, muito diferente do teu pai. Sabe o que eles fazem? Contam só do ponto de vista dos governos e das disputas políticas de gabinete, como se a luta de classes não existisse e não influenciasse diretamente em tudo. Mano, o golpe não foi contra uma suposta figura comunista do Jango, que sinceramente de comunista tinha é nada. Foi contra esses camponeses que se levantavam cheios de raiva; contra os trabalhadores que na década de 60 faziam greves aos milhões. E olha que eu sou ruim de matemática, mas esse número eu nunca erro. Na época, até a base da Marinha e dos sargentos se rebelaram.

B: Bah vocês estudam tudo isso na faculdade?

A: Mais ou menos. Tem professor que não concorda e não gosta muito dessa leitura. Diz que luta de classes tá ultrapassada, classe trabalhadora não existe mais…

B: Eita, mas me diz que que a gente é então? Eu hein!

A: Pois então, aí que eu me refiro irmão… Mas a parada toda é o que eu te falei no começo, a história não é neutra e nem um ente suspenso que paira no ar, tá ligado? Não é também uma coisa só uniforme. Ela é construída no presente. A interpretação que a gente dá pros fatos influencia em como a gente conta e entende a história hoje.

B: Saquei, mano, saquei… se liga, é tipo a distância da próxima entrega que eu vou fazer? Às 15h eu tenho que tá lá na Cavalhada, pegar uma parada e depois entregar ela lá no Moinhos às 15h30, de bike é foda né? Correr tudo isso em pouco tempo, bah!

A: De moto seria mais rápido…

B: É isso mano! O tempo muda dependendo de como a gente anda né? De bike é uma coisa, de moto é outra, se tivesse metrô nessa cidade seria ainda mais rápido! O tempo é relativo mano, depende de como tu age sobre ele! Com o passado é tipo a mesma coisa?

A: Mano, acho que essa comparação é complicada. Porque pensa só, se a gente relativizar tudo que tem na história, como a gente saberia o que aconteceu realmente e o que não? Tudo pode ser tudo? Porque se for isso, o trabalho do historiador fica fácil ou perde sentido. Ou pior, abre espaço pra negacionismo de todo tipo também.

B: Pô, daí tu tem um ponto! E esses negacionistas aí eu conheço bem. Família é foda. Os louco vão de terra plana até a negação do holocausto! Quando eu ouço isso, mano, a sensação é de que a história tá andando pra trás.

A: Não tem outra! Família é quase sempre um laboratório pra faculdade de história! E mano, não sei o que tu quer dizer com andar pra trás, mas de uma coisa eu sei: a história não é uma evolução contínua não, porque se fosse, vish…tava tudo resolvido!

B: E não é? Bah, mas curti muito esse papo hein?! Estudar o passado assim é tri afudê!

A: Com certeza! E não é só sobre o passado não, viu? É muito também sobre a gente entender que nós tamo fazendo história no aqui e agora. Faz tempo que tentam enfiar na nossa cabeça que “a história acabou” e essas baboseira de ideologia burguesa neoliberal. Eles querem que a gente aceite de cabeça baixa a miséria de vida que eles tem pra nos oferecer enquanto uns poucos tiram sarro e lucro da nossa pobreza e suor. Toda vez que alguém te falar que cê não vai mudar nada com tanta raiva e luta, que esse tempo já passou e que a história fica mal e porcamente pros livros didáticos, tu tem que olhar bem no fundo do olho do meliante e lembrar ele do breque que a gente fez em 2020, tá ligado? Aquilo ali é também fazer história! A greve geral em 2017 que a gente foi tudo lá pra Brasília, lembra?

B: Ô, se lembro!

A: A gente fez história naquela greve meu irmão. E de uma coisa eu me dei conta quando eu comecei a me aprofundar no que diabos é ser historiador hoje em dia e quando eu comecei a discutir criticamente sobre tudo a minha volta… Abri o olho pra nunca mais fechar e hoje eu tenho comigo que quem faz a história é nós. Não eu e tu individualmente, mas nós enquanto coletivo mesmo. Essa quantidade de trabalhador tudo aí pedalando e fazendo entrega pra cima e pra baixo, os garis que limpam as ruas, as terceirizadas, os professores e por aí vai uma gigante classe trabalhadora que só de pensar dá arrepio. E disso eu tiro uma conclusão, meu camarada: eu estudo o passado pra entender o presente e poder transformar o futuro. Tenho muito mais questões do que respostas.

B: Carai, a faculdade de história te fez poeta também hein irmão! É tudo nosso! E o que não for, nós vamo arrancar! Tamo junto! Vou lá fazer essa entrega e a gente se encontra mais tarde pra tu me explicar como que faz pra estudar essas parada aí na universidade.


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Giovana Pozzi

Estudante de história na UFRGS
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