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76ª Assembleia Geral das Nações Unidas | Lula na ONU: multipolaridade, agenda verde, a parceria com Biden e o espectro da luta de classes

A 76ª Assembleia Geral da ONU contou com a abertura de Lula dando continuidade ao discurso de multipolaridade, reforma das instituições internacionais, cooperação com o “sul global” e apostando posicionar o Brasil de melhor forma dentro da rivalidade entre EUA e China, enquanto busca margens próprias para algum protagonismo através da agenda do capitalismo verde. Atravessaram a Assembleia os temas da crise climática, as guerras e o espectro da luta de classes.

quinta-feira 21 de setembro de 2023 | Edição do dia

Imagem: Agência Reuters

Nessa terça, 19, Lula abriu a 76ª Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU). Encerrando uma extensa agenda internacional dos últimos meses, o discurso e os encontros com Biden e Zelensky são a continuidade da tentativa de posicionar o Brasil de melhor forma dentro da rivalidade entre EUA e China, enquanto busca margens próprias aderindo ao discurso de multipolaridade, reforma das instituições internacionais, cooperação com o “sul global” e buscando um lugar de destaque para o Brasil na agenda de transição energética capitalista - uma tentativa fadada ao fracasso frente ao aprofundamento das contradições geopolíticas, econômicas e da luta de classes que vêm delineando os traços do cenário mundial.

Logo antes de Lula discursar, António Guterres, Secretário-Geral da ONU, abriu a assembleia colocando os desafios externos e internos da geopolítica mundial. O ex primeiro-ministro de Portugal iniciou seu discurso pela crise climática mundial, comparando a desigualdade dos milhares de mortos e desabrigados pela tragédia na Líbia com os mega-ricos que ostentam seus navios pelo Mediterrâneo. Essa tônica de comparação esteve presente em todo seu discurso, denunciando a extrema desigualdade econômica e social presente hoje no mundo.

O secretário-geral também destacou a desigualdade no âmbito da relação entre as nações, comparando o papel da ONU na Guerra Fria e agora, sua definição foi categórica, “reforma ou ruptura”. Frente a Guerra na Ucrânia, conflitos comerciais e crise climática, a sombra da I Guerra Mundial foi lembrada para todos os líderes mundiais ali presentes e para os ausentes, num momento ímpar de esvaziamento do espaço pelas principais potências: só os Estados Unidos, país-sede da ONU, enviou seu representante máximo. Índia, China, França, Inglaterra e Rússia enviaram emissários de segundo ou terceiro escalão para representá-los na reunião.

O que o “socialista” Guterres colocou nas entrelinhas era na verdade o medo do retorno da luta de classes, das instabilidades internas e geopolíticas que dão novo conteúdo ao que Lênin colocou em 1916 de uma época de “Crises, Guerras e Revoluções”. Como bem destacado pelo Secretário-Geral, a crise econômica e climática já está presente em todo o globo e as tendências a conflitos armados não diminuem. Também acompanhamos uma onda de greves nos países imperialistas centrais, levantando trabalhadores de diversas categorias estratégicas na Europa e nos Estados Unidos. Caberia para Guterres, portanto, que a ONU desse conta de estabilizar um mundo que pode explodir.

Em sua aplaudida abertura, Lula deu continuidade à linha que marcou sua agenda internacional nos últimos meses, com a cúpula dos BRICS, a viagem aos países africanos, o G20 na Índia e o G77 em Cuba, onde declarou uma perda de credibilidade de organismos como a ONU e a necessidade que haveria de retomar políticas de cooperação terceiro-mundista. Tecendo críticas aos “países ricos” e apostando no discurso de “multipolaridade”, agenda verde, mediação de conflitos e cooperação sul-sul como via de garantir um espaço de protagonismo internacional - uma marca da diplomacia brasileira - Lula se inclina ao “multilateralismo benigno” propagandeado pelo capitalismo chinês como forma de jogar com a “dupla dependência” do Brasil no campo mundial, espremido entre Estados Unidos e China, sem romper com ninguém e buscando extrair o possível nas negociações com ambos.

Assim, a necessidade de reforma das instituições internacionais e da governança econômica do mundo são elementos que tomaram peso na ONU, também como objeto de barganha desde onde a única potência presente, os Estados Unidos de Biden, em plena campanha eleitoral, também buscou dialogar. Se Lula aderir ao falso projeto de multipolaridade capitalista com peso no BRICS foi a barganha pela declaração de China e Rússia em apoio a uma reforma no Conselho de Segurança da ONU, a positiva de Biden para uma reforma assim é mais um signo de movimentações em meio à aberta crise de hegemonia internacional. Biden aproveita a ausência dos líderes de todos os outros membros do Conselho de Segurança na Assembléia Geral deste ano para se colocar favorável à reforma, possivelmente diluindo o peso de seus rivais e abrindo espaço para uma inclusão do aliado Japão - ainda que a possibilidade dessa reforma se concretizar venha sendo vista como folclórica.

Biden buscou aproximar Lula também por meio da iniciativa conjunta de “Coalizão Global pelo Trabalho", no qual se propõem a defender liberdade sindical, garantias aos trabalhadores por aplicativo, entre outras medidas. Uma iniciativa inserida no contexto da forte onda de greves que atravessa os Estados Unidos e da disputa eleitoral dos Democratas contra o trumpismo. Uma busca por passivizar e alinhar, através de concessões relativas e da ação das direções sindicais, uma massa maior de trabalhadores sob influência dessa ala antitrumpista da burguesia internacional, o que pode elevar a importância relativa das burocracias sindicais nos regimes ocidentais, buscando sair do desprestígio das últimas décadas para atuarem ainda mais como freios de contenção da luta de classes e de aparelhamento das organizações operárias segundo políticas burguesas.

Essa busca dos Estados por reconstituir a hegemonia burguesa no interior dos sindicatos é uma questão central para o movimento operário nos EUA, na medida em que novas gerações de trabalhadores passam por uma gradual recomposição da subjetividade em empresas como Starbucks e Amazon, no setor cultural e do entretenimento de Hollywood, mas também setores mais tradicionais como na malha logística ferroviária e na rodoviária com os caminhoneiros da UPS, além da atual greve das 3 grandes automotrizes. Assim, o acordo parece não só se delinear no cenário imediato das promessas eleitorais do Partido Democrata, mas também como uma tentativa de organizar a cooptação do movimento operário para que não se levantem alternativas de independência de classe no seu interior, que queiram ir além das estreitas margens a concessões permitidas pela ordem capitalista ou que passem de demandas sindicais à políticas.

Enquanto Lula sela essa parceria ainda em elaboração com o imperialismo norte-americano e em seu discurso na ONU critica o neoliberalismo que “agravou a desigualdade econômica e política que hoje assola as democracias”, afirmando que dos seus escombros emerge a extrema direita global, no Brasil o cenário é de preservação e continuidade da ofensiva capitalista agravada desde o governo golpista de Temer e seu herdeiro Bolsonaro. A Frente Ampla de Lula e Alckmin não só preserva as privatizações e reformas trabalhista, previdenciária e do ensino médio, como elaborou o próprio teto de gastos neoliberal com o Arcabouço Fiscal e incorpora progressivamente a direita base de Bolsonaro em seu governo. Diante disso, a importância de um movimento operário independente dos governos e que levante claramente que é a conciliação de classes que abre espaço para a extrema direita, batalhando pela frente única operária contra a burocracia sindical.

A expectativa dada pela Casa Branca também é de que Biden teria pedido a Lula que aproveitasse a proximidade com a China para que esta deixasse de vetar, no Conselho de Segurança, o envio de uma nova força internacional ao Haiti, como foi a sangrenta MINUSTAH encabeçada pelo Brasil. A nova intervenção teria liderança do Quênia e o Brasil participaria com treinamento de policiais, compartilhando sua experiência com o assassinato e repressão da juventude negra. Lula estaria disposto a abrir conversa com Pequim para aprovar a operação, ao passo que para a China é interessante manter uma situação de instabilidade no quintal dos EUA.

Sobre o encontro com Zelenski (após o fracasso do encontro no G7), basta dizer que claramente foi apenas um encontro para marcarem as diferenças: Lula não vai condenar a Rússia e desaprova categoricamente o plano de paz da Ucrânia, que significa a rendição total da Rússia.

Enquanto usa do discurso multilateralista e terceiro-mundista para arrancar comprometimentos dos países centrais, com cobranças não nominais para que Estados Unidos e Europa financiem fundos ambientais como o Fundo Amazônia, a
pauta climática combinada ao não alinhamento automático vem sendo os carros-chefes de uma política externa que busca se colocar como uma referência entre os países do sul global. Fazendo pressão com as pautas ambientais, o governo brasileiro quer mais margens de negociação pelos nichos de exploração neo-extrativista, da Amazônia e o projeto de extração de petróleo em sua foz, a outros projetos como o Vale do Lítio de Minas Gerais. Novamente: é inquestionável que os imperialismo da UE e EUA devastam o planeta com suas multinacionais e fazem ecodemagogia nas cúpulas climáticas, fóruns internacionais, acordos comerciais e através do crescente greenwashing. Entretanto, não se pode combater o ecocídio imperialista explorando petróleo na foz do Amazonas, apostando em uma transição energética marcada pela preservação da lógica destrutiva da produção capitalista e por fora de medidas como uma reforma agrária radical que desaproprie o grande latifúndio a favor dos pequenos camponeses, trabalhadores rurais e povos indígenas. O capitalismo destrói o planeta e é preciso um programa comunista para enfrentar a crise climática, uma saída que só pode surgir em enfrentamento com os governos.

A suposta multipolaridade não tem nada de progressista e não combate o imperialismo

No documento internacional de preparação para o V Congresso do MRT abordamos a tendência à fragmentação econômica mundial e de um um projeto burguês encabeçado principalmente pela China sob o discurso da multipolaridade. Para nós, a tentativa de mudança de ordem geopolítica que Lula expressa está em contradição com as tendências de instabilidade econômica e climática, convulsões geopolíticas e de demonstrações de forças importantes na luta de classes. No contexto internacional, nenhuma ajuda à luta dos povos oprimidos e da classe trabalhadora virá do apoio a um ou outro bloco ou Estado capitalista, quer esteja no Oriente, quer no Ocidente. Entre aqueles que reivindicam a luta dos trabalhadores, do povo pobre e dos oprimidos, não é possível defender visões "campistas" das relações internacionais. A luta de classes segue sendo o motor central do desenvolvimento histórico, e subordina as relações geopolíticas aos conflitos entre as classes antagônicas. Os BRICS serão motivo de discussão e contenda, mas de nenhuma maneira aliados para a emancipação dos povos. A começar pelas questões democráticas, como é possível pensar que Estados como Irã, Arábia Saudita ou Rússia poderão contribuir para o combate ao racismo, à lgbtfobia, à desigualdade e na defesa dos direitos das mulheres?

A mais irrestrita independência política diante dos modelos capitalistas rivais, entre China e Estados Unidos, é a condição primordial para um combate decidido contra o imperialismo e suas tendências destrutivas, incapazes de serem modificadas pela acomodada tese da multipolaridade dentro dos limites da exploração capitalista. Como escrevemos em nosso documento: É desse ponto de vista que buscamos intervir em um cenário mais convulsivo internacionalmente. Aprofundam-se as tendências que indicam que entramos num período de fim da ilusão de um “mundo globalizado harmonicista”, em que haveria disputas de interesses que poderiam contornar os marcos principais de época (crises, guerras e grandes processos de luta que podem dar origem a processos revolucionários). É preciso levantar uma política de internacionalismo proletário que una as classes trabalhadoras e os povos oprimidos do mundo, levantando um programa de independência de classe contra os imperialismos, as burguesias nacionais, suas guerras e sua exploração desenfreada das grandes massas e dos ecossistemas do planeta.




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