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Duas estratégias: ir atrás do reformismo ou lutar pela hegemonia operária
Matías Maiello
Buenos Aires

Recentemente, a revista Jacobin América Latina publicou a tradução de um artigo de Antoine Artous [em espanhol] que aborda a análise e a política de Trotsky e os trotskistas na França da década de 1930, intitulado "1936: Trotsky e os trotskistas diante da Frente Popular". Embora não esteja claro na tradução, o texto foi originalmente publicado na revista Critique Communiste Nº 181 de novembro de 2006. Naquela época, Artous era membro da Liga Comunista Revolucionária Francesa (LCR), antecessora do NPA, agrupamento esse que ele mais tarde deixaria para se juntar à esquerda institucional de Jean-Luc Mélenchon.

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Ilustração: Marcos Kazuo/ @romptscomics

A renovada atualidade do debate é dupla. Em particular, pelos debates na esquerda francesa no marco da crise terminal do NPA. E, em geral, porque, como discutimos em um artigo recente escrito com Emilio Albamonte, as elaborações de Trotsky sobre a França na década de 30 contêm pontos nodais para a discussão estratégica sobre as vias de emergência da classe trabalhadora como sujeito hegemônico nas formações sociopolíticas “ocidentais” ou “ocidentalizadas”.

Artous começa destacando a originalidade das elaborações teórico-políticas de Trotsky para formações “ocidentais” como a francesa. No entanto, ele vê um empecilho no fato de que “seu marco de referência é sempre a defesa da política bolchevique. Compreende-se a função que pode cumprir este enfoque na disputa pelo ‘legado’ de Lenin. Mas a verdade é que esconde os seus próprios rastros e leva a pensar que as perspectivas de Trotsky se reduzem à mera reprodução do modelo de outubro de 1917”. Com base nisso, propõe-se a traçar em seus escritos sobre a França uma intenção de "combinar" formas de democracia burguesa com democracia operária, bem como uma abordagem da política da Frente Popular para além de seus limites de classe. Nesse caminho, Artous encontra uma série de "paradoxos" existentes nas elaborações de Trotsky, em grande medida inexplicáveis indo além da "disputa pelo legado de Lenin", que culminam em um "sovietismo" abstrato que, exacerbado pelos trotskistas franceses, acabaria por separá-los do movimento real.

Aqui tentaremos mostrar que por detrás daquilo que aparece a Artous como “paradoxos” se encontra, na realidade, a verdadeira originalidade do pensamento estratégico de Trotsky sobre os caminhos para a emergência da classe trabalhadora como sujeito político nas formações sócio-políticas ocidentais, onde o a influência da democracia burguesa como ideologia é majoritária entre as massas e há um profundo processo de estatização das organizações (políticas e sindicais) do movimento de massas.

Primeiro paradoxo: programa democrático radical e governo proletário

Um primeiro paradoxo é encontrado por Artous no uso que faz Trotsky de consignas democrático-radicais que, segundo ele interpreta, “misturariam” formas de democracia burguesa e formas soviéticas. Ou seja, que seria no sentido de um "Estado combinado", que o próprio Artous sustenta para o “Ocidente", mas que, no seu modo de ver, Trotsky vai depois ofuscando de forma infrutífera com diferentes formulações de “governo proletário”. Vejamos.

Em 1934, a situação francesa deu um giro muito importante. Em 6 de fevereiro, as ligas francesas de extrema direita mobilizaram 40.000 pessoas. No dia 12 desse mesmo mês houve uma resposta contundente com uma greve geral e uma mobilização de mais de 100.000 trabalhadores. Os chamados pela unidade das fileiras da classe trabalhadora ecoaram nas ruas. Isso questionou a política passiva e divisionista das direções burocráticas do Partido Socialista (SFIO) e do estalinista Partido Comunista (PCF), que havia sistematicamente recusado a unidade de ação com os social-democratas – e os classificava como social-fascistas. Em junho, o PCF dá um giro copernicano em sua política e convoca o PS pela unidade de ação contra o fascismo e a guerra. É neste contexto em que Trotsky, que então residia em território francês, escreveu em março de 1934 "Um programa de ação para a França" [1], que foi publicado em junho no La Verité,` o jornal da Liga Comunista. Tratava-se de uma disputa sobre qual seria o conteúdo daquela unidade de ação.

Como Artous aponta, naquele programa Trotsky fez inovações fundamentais. A principal delas é a articulação que faz entre consignas democrático-radicais dentro de um programa de transição.

Somos, portanto, firmes apoiadores - diz Trotsky - do Estado operário-camponês, que arrancará o poder dos exploradores. [...] Entretanto, e enquanto a maioria da classe trabalhadora continuar se apoiando nas bases da democracia burguesa, estamos dispostos a defender tal programa dos violentos ataques da burguesia fascista e bonapartista [2].

Contudo não para por aí, mas liga isto à luta por consignas como:

Abaixo o Senado, eleito por voto limitado, e que transforma o poder do sufrágio universal em mera ilusão! Abaixo a presidência da República, que serve como ponto oculto de concentração para as forças do militarismo e da reação! Uma assembleia única deve combinar os poderes legislativo e executivo. Seus membros seriam eleitos por dois anos, por sufrágio universal de todos os maiores de dezoito anos, sem discriminação de sexo ou nacionalidade. Os deputados seriam eleitos em assembleias locais, constantemente revogáveis pelos seus constituintes, e receberiam o salário de um trabalhador especializado [3].

Segundo Artous, a abordagem de Trotsky enfrenta uma dificuldade: “a Assembleia única que propõe misturar uma forma de poder ’democrático radical’ e certos elementos de ’poder proletário’: ’Os deputados seriam eleitos em assembleias locais, o seu mandato seria constantemente revogável por seus eleitores e receberiam o mesmo tratamento que um trabalhador qualificado.’ Agora, Trotsky tende a rejeitar enfaticamente esse tipo de mistura”.

Posteriormente Artous se surpreende novamente: “Desde outubro de 1934, em seu famoso artigo ’Para onde vai a França?’, Trotsky adota outra perspectiva sobre a luta pelo poder: ’O objetivo da frente única não pode ser senão um governo de frente única, isto é, um governo socialista-comunista, um ministério Blum-Cachin’. Não se trata mais da luta por uma Assembleia única, que desaparecerá das perspectivas trotskistas sem qualquer explicação. Em vez disso, a consigna do governo passa a ser central e inclui o PCF”.

O "segredo" desses paradoxos que Artous encontra talvez seja menos complexo do que parece. Antes de mais nada, é preciso esclarecer que, longe dessa mistura sugerida por nosso autor, Trotsky está propondo o programa democrático nos termos da tradição mais radical da revolução burguesa, a do jacobinismo. Isto é exposto explicitamente: “Pedimos aos nossos irmãos de classe que aderem ao socialismo ’democrático’, que sejam fiéis às suas ideias: que não se inspirem nas ideias e métodos da III República, mas sim nos da Convenção de 1793”. Ou seja, não na decadente democracia da França dos anos 30, mas na grande Revolução Francesa. E, por outro lado, que longe de descartar essas formulações poucos meses depois, nesse mesmo artigo referido por Artous, Trotsky explicitamente aponta que “não vamos nos deter aqui no conteúdo do programa propriamente dito, e referimos ao leitor o programa de ação editado pela Liga Comunista em 1934” [4]

Mas voltando à pergunta do nosso autor, por que Trotsky em março/junho fala de assembleia única e em outubro fala de um governo socialista-comunista? O ponto de partida é que nem a "assembleia única" nem o "governo de frente única" eram para ele propostas estratégicas, equivalentes "ocidentais" da "ditadura do proletariado", como Artous parece interpretar, mas sim táticas. Mas táticas para qual estratégia? A da classe trabalhadora se transformar em sujeito hegemônico e conquistar efetivamente um “Estado operário-camponês, que arrancará o poder dos exploradores” - como o próprio Trotsky aponta em “Um programa de ação para a França” -. Um estado baseado no poder dos sovietes (conselhos), que não se refere a uma questão de nomes, mas a um poder democrático (e armado) dos trabalhadores e camponeses, capaz de substituir por meio da revolução o Estado capitalista.

E que relação havia então entre aquelas táticas e esta estratégia? Os soviets (ou qualquer que seja o nome que adotem) são organismos de frente única das massas, e qual era a condição para poder constituir a frente única? Unidade de ação com a maioria dos trabalhadores que confiavam na democracia burguesa e queriam defendê-la contra o avanço do fascismo. Por isso, em seu programa de março/junho de 1934, Trotsky propõe a eles defender a democracia burguesa contra os ataques da própria burguesia, mas não com os métodos parlamentares, se não com os da luta de classes. Não sob as bandeiras do regime decadente da Terceira República, mas sob os da democracia radical; daí a importância de propostas como "assembleia única".

Uma vez, selado o pacto de ação entre o PCF e os socialistas no final de julho de 1934, com esta mesma lógica Trotsky acrescenta a proposta de um "governo socialista-comunista" contra a ideia de que a unidade de ação dos partidos operários devia limitar-se às demandas parciais e excluir a luta pelo poder. Tal como a "assembleia única", diante da pergunta sobre os métodos, Trotsky levanta "a utilização de todas as possibilidades oferecidas pelo regime bonapartista semiparlamentar para derrubá-lo por meio de uma investida revolucionária" [5].

Por fora da relação entre programa, estratégia e tática, dificilmente pode se entender qualquer palavra dessas elaborações de Trotsky. E, sobretudo, de sua luta contra a política da "frente popular" que está no centro do debate levantado por Artous.

Segundo paradoxo: frente única e frente popular

Em maio de 1935 se firma o “pacto Stalin-Laval" apoiando a política de "defesa nacional" do governo francês. Meses depois vai se conformando a aliança do PS e do PC com o Partido Radical, um partido ligado à opressão colonial francesa, que dará finalmente lugar à Frente Popular.

Como assinala Artous, Trotsky se opõe radicalmente ao enfoque que defendia o grupo de François Pivert, e que existia também nas fileiras trotskistas, de uma “Frente Popular de combate”, quer dizer, que não era necessário lutar contra a Frente Popular, mas desenvolver a luta e o movimento para impulsioná-lo adiante para que chegue ao poder depois que as massas "façam a experiência". Artous cita, por um lado, a afirmação de Trotsky de que: “A experiência governamental dos reformistas e stalinistas ainda está para ser feita. A experiência radical foi feita. Identificar e até relacionar as duas consignas: ‘governo socialista-comunista’ (governo de frente única), governo operário-camponês, etc. e o governo da Frente Popular, incluindo os radicais, seria absolutamente fatal”. E, por outro lado, destaca a oposição do fundador da Quarta Internacional à consigna "Abaixo a Frente Popular!" e como, em vez disso, sustenta que tem de atacá-la "pelos flancos", não "frontalmente", personalizando os ataques às suas figuras burguesas, com propostas como "vamos chutar os políticos burgueses da Frente Popular" e fazendo exigências como forma de combatê-la melhor, sendo que contava com o apoio das massas trabalhadoras.

No entanto, a ideia que Artous tira de tudo isso é que “deve-se destacar que Trotsky não argumenta em função de em uma posição de princípio que estaria ligada a uma diferença de ’natureza’ entre os partidos (partidos operários e partidos burgueses), mas simplesmente em função da experiência das massas”. Este ponto é o mais forçado de todo o artigo. De fato, Trotsky se cansa de repetir afirmações como: “A Frente Popular justifica sua política pela necessidade da união do proletariado com a ’pequena burguesia’. Não pode conceber-se uma mentira maior! O partido radical representa os interesses da grande burguesia e não da pequena burguesia. Basicamente, é o aparato político da exploração da pequena burguesia pelo imperialismo” [6].

Mas por que tanta necessidade de Artous relativizar o problema de classe? É que se trata da única via para diluir em uma genérica "experiência de massas" o que na realidade são duas estratégias opostas e conflitantes. Uma aponta para uma divisão político-social horizontal, onde a classe trabalhadora se constitui como sujeito hegemônico de uma aliança com os setores populares, ligada ao desenvolvimento de instituições próprias, cujo ápice são os sovietes/conselhos e cujo objetivo é a conquista revolucionária do "Estado operário-camponês, que arrancará o poder dos exploradores". A outra aposta na divisão vertical dos “campos” em que a burguesia se fragmenta - incluindo o aparato do Estado - em momentos de crise (entre seus setores mais bonapartistas e mais frente populistas) onde as massas (divididas) acabam servindo de "base de manobra” de um projeto contra outro [7]

Em seus escritos sobre a França, Trotsky contrapôs a tática da frente única com a frente popular da seguinte maneira: a regra da primeira era "Marchar separados, golpear juntos!", a da segunda era "marchar juntos para ser golpeados separadamente". Quer dizer, a frente única consistia em unificar as fileiras da classe trabalhadora na luta de classes ("golpear juntos") para além das divisões sociais (empregado-desempregado, efetivo-precário, etc.) e das divisões organizativas sobre as quais se monta a burocracia para dividir e, assim, enfrentar a burguesia com toda sua força; e "marchar separados" porque é essencial construir um partido revolucionário com os setores mais decididos e determinados da classe que lutam consistentemente pelo poder. Enquanto que com a política da "frente popular" as burocracias do Partido Socialista e do Partido Comunista pretendiam fazer o proletariado "marchar junto" com a burguesia através do Partido Radical e apoio à "defesa nacional"; e golpear "separado" porque seu correlato era deixar os diferentes conflitos e levantes parciais isolados e que a burguesia poderia derrotar local por local a vanguarda e os setores das massas que saíam para lutar, evitando que as lutas se tornassem cada vez mais revolucionárias.

Terceiro paradoxo: Comitês de ação e “frente popular de combate”

Pois bem, Artous sustenta que há uma contradição entre essa interpretação e a abordagem de Trotsky sobre os “comitês de ação”, que ele sugere que estariam mais próximos à ideia de “frente popular de combate”. Como desenvolvemos em um artigo anterior, a proposta de Trotsky sobre os comitês de ação começa por “tomar a palavra” à resolução do VII Congresso da Internacional Comunista (1935) sobre o chamado à formação de “comitês de ação da Frente Popular”, que ele define como a única coisa acertada em toda a declaração. Mas com esta proposta, que parte de constatar a influência entre as massas do PC e do PS, não busca "esquerdizar” a Frente Popular de colaboração de classes, mas, como em todo o período, articular as forças para impor a frente única operária para que a classe trabalhadora se postule como classe hegemônica. Ou seja, romper a subordinação à burguesia, potencializando o peso da vanguarda através do desenvolvimento de instituições próprias diretamente ligadas à luta de classes, o que facilitaria enormemente a expulsão dos partidários do Partido Radical e a derrota política de conciliação de classes das burocracias do PC e do PS.

Encontramos aqui uma das elaborações mais inéditas de Trotsky relacionada às vias de constituição da classe trabalhadora como sujeito em um cenário “saturado” de aparatos burocráticos típicos das estruturas sociopolíticas ocidentais. Aquela proposta inicial dos comitês de ação Trotsky o irá desenvolver até que se transforme em uma concepção mais geral sobre a articulação da vanguarda e setores de massas a partir da geração de instituições de unificação e coordenação das lutas "como o único meio de quebrar a resistência antirrevolucionária dos aparatos dos partidos e sindicatos” [8]. Seu ponto de partida é unir essa necessidade de “quebrar a resistência” das burocracias com o enorme perigo de que os conflitos parciais fiquem isolados e que a energia das massas se esgote em explosões isoladas e termine por gerar apatia. Por isso, ele destaca que diante de greves, manifestações, escaramuças de rua ou levantes diretos, que são inevitáveis em uma situação que vai se tornando revolucionária, a tarefa chave dos revolucionários consiste em "unificá-los e dar-lhes uma força maior" [9] .

Na concepção de Trotsky, os comitês de ação não eram já a “frente única” como tática de massas (tampouco eram os “sovietes”, que, propriamente ditos, são organismos de uma frente única de massas), embora sob certas condições de radicalização geral pudessem se converter neles, mas sim instituições de articulação de força para poder impor efetivamente aquela frente única - unificar a classe trabalhadora contra os capitalistas - à qual a burocracia sistematicamente se negou em busca de colaboração com o Partido Radical e a burguesia. Tratava-se de "unificar a luta defensiva das massas trabalhadoras na França e também dar a essas massas a consciência de sua própria força para a ofensiva futura" [10]. Ao mesmo tempo, essa mesma perspectiva a associa às possibilidades de fortalecimento dos revolucionários - naquela época as forças dos trotskistas na França não ultrapassavam algumas centenas - como organizadores dos setores mais avançados do movimento operário e de massas em luta. Ao contrário do que sugere Artous, era o oposto da perspectiva de “frente de combate popular” sustentada pelo grupo de Pivert que entendia a “frente única” como a convivência pacífica com aparatos burocráticos.

Quarto paradoxo: os soviets e o movimento real

Em seu artigo Artous marca a distância que separa as propostas de Trotsky da política que os trotskistas franceses efetivamente fizeram naqueles anos. Jean-Paul Joubert, em sua obra "Trotsky e a Frente Popular", é ainda mais categórico: "A maioria desses conselhos, em grande medida, permaneceram letra morta". Agora, para além deste debate específico, o que nos interessa é a raiz dos problemas que o nosso autor encontra nas características "soviéticas" e "outubristas" das propostas de Trotsky. “Desde cedo - argumenta Artous - os revolucionários deviam pressionar na direção da auto-organização e, além disso, em direção a uma dinâmica de duplo poder. Mas propor o eixo dos sovietes como perspectiva imediata e central estava muito distante do movimento real. Foi, no melhor dos casos, uma forma de propagandismo abstrato que não permite distinguir as diferentes fases de um processo revolucionário”. Vejamos.

Em seu artigo de 9 de junho de 1936, "A revolução francesa começou", Trotsky propõe o chamado pela construção de sovietes. É importante notar que ao longo de todo o período anterior a direção stalinista do PCF, como o obstáculo do "Terceiro Período" [11], havia levantado a consigna "Soviets por

todas as partes!", proposta que Trotsky critica sistematicamente como uma postulação fora do tempo e uma vulgarização da consigna, uma máscara de "esquerda" de uma política de conciliação com a burguesia. A partir deste fato, Trotsky dialoga diretamente com o trabalhador comunista:

Um Estado Maior revolucionário não pode nascer através de acordo de cúpulas. A organização de combate não coincidirá com o partido ainda que existisse na França um partido revolucionário de massas, porque o movimento é incomparavelmente maior do que o partido. A organização de combate tampouco pode coincidir com os sindicatos, porque os sindicatos não abarcam mais que parte insignificante da classe e estão submetidos a uma burocracia arquirreacionária. A nova organização deve responder à natureza do próprio movimento, refletir as massas em luta, expressar sua vontade mais forte. […] Mais de uma vez têm gritado no passado: "Soviets em toda parte!" Mas hoje, a situação mudou radicalmente. O poderoso conflito de classes caminha para um terrível desfecho. […] "Soviets em toda parte?" De acordo. Mas agora é a hora de passar das palavras à ação! [12]

No que consistia a "mudança radical" a que Trotsky faz referência e que o leva a erguer a consigna enquanto o de sovietes enquanto o PCF a apagava de sua agitação? [13] Após a vitória da Frente Popular nas eleições parlamentares de abril/maio de 1936, iniciou-se um grande movimento de greve com ocupações de fábricas onde participaram mais de 2 milhões de trabalhadores. Um processo que continuará durante os meses seguintes. No início de junho, a Frente Popular chega ao governo com a posse de León Blum como primeiro-ministro. No dia 7 de junho, foram assinados os primeiros “acordos de Matignon”, estipulando uma série de concessões como aumentos salariais, e dias depois será legislada a semana de trabalho de 40 horas, férias remuneradas, etc. Mas o movimento não apenas continua como se expande. Este é o momento preciso em que Trotsky faz o apelo à constituição dos sovietes, quase paralelamente ao chamado de Thorez, o principal dirigente do PCF, dizendo "devemos saber terminar uma greve", que continuará com chamados à “unidade nacional” e a impugnação da Frente Popular às ocupações de fábricas. Apesar disso, o movimento dura até agosto.

Qual é a alternativa apresentada por Artous? Suas críticas se concentram no fato de que na política dos trotskistas, "a denúncia não vem acompanhada de nenhuma ’interpelação’ aos partidos [refere-se ao PC e ao PS] em relação às tarefas necessárias", que se propõe o “desenvolvimento de um duplo poder sem qualquer tipo de relação com as organizações tradicionais”. Entretanto, opor essas críticas à proposta de "comitês de fábrica" e "sovietes" não parece responder a uma superação do "propagandismo" como sustenta nosso autor (pelo menos do ponto de vista de quebrar o muro antirrevolucionário daquelas direções burocráticas), mas sim ao objetivo de permanecer na órbita das “organizações tradicionais”, apesar de que naquele preciso momento elas traíam a luta. Por outro lado, ao contrário do que sugere Artous, Trotsky dá grande importância ao "interpelar" os trabalhadores comunistas, socialistas e sindicais como parte dessa política [14].

O verdadeiro paradoxo que Artous parece enfrentar é fundamentalmente tentar “misturar” duas estratégias completamente diferentes e confrontantes: a de recuar sobre as burocracias reformistas com a de lutar pela emergência da classe trabalhadora como sujeito hegemônico.

A originalidade de Trotsky

“Sabemos que em junho de 1936 - diz Artous - não se desenvolveu nada semelhante aos soviets. Com raras exceções, não havia nem mesmo formas significativas de auto-organização. Naturalmente, não podemos nos contentar em explicar que os soviets não apareceram por causa das políticas do SFIO e do PCF, pois, justamente, essa política é um dos dados da análise da situação”. Pois bem, como dissemos, tampouco podemos nos contentar em dizer que se tratava de um problema de "diálogo" e de "exigência" à Frente Popular como sugere Artous. Trotsky levanta uma explicação:

A Frente Popular na França tem assumido a mesma tarefa da chamada “coalizão” dos kadetes, mencheviques e socialistas revolucionários na Rússia em março de 1917: conter a revolução em sua primeira etapa. A diferença é que a burocracia reformista na França (socialistas, comunistas, sindicalistas) é infinitamente mais poderosa que a da Rússia em 1917. Além disso, o Kremlin apoiou a Frente Popular francesa em nome da Revolução de Outubro, que havia triunfado contra a Frente Popular. Finalmente, o partido revolucionário na França é muito mais débil do que o da Rússia [15].

Evidentemente, tanto a força da burocracia reformista quanto o uso pela Frente Popular do prestígio da Revolução de Outubro são dados da situação objetiva do período, mas a fragilidade dos revolucionários era apenas em termos relativos, tendo em conta a evolução da situação e a radicalização progressiva dos setores de vanguarda e do movimento de massas. E é precisamente aqui que podemos encontrar uma das maiores inovações de Trotsky em seus desenvolvimentos sobre a França. Não em uma suposta tentativa de “misturar” instituições da democracia burguesa (assembleia única) com instituições da democracia operária (sovietes) nem em uma suposta relativização do caráter de classe do Partido Radical - e da Frente Popular como conciliação de classes -. Mas nos elementos que levanta para uma teoria sobre as vias de constituição da classe trabalhadora como sujeito hegemônico em um cenário "saturado" de aparatos burocráticos e com tradições democrático-burguesas, próprias das estruturas sociopolíticas ocidentais.

Em particular, a ideia de que somente através do desenvolvimento de instituições próprias de coordenação da vanguarda e setores das massas em luta, a classe trabalhadora poderia concentrar forças para quebrar o freio das direções burocráticas e sua colaboração com a burguesia. Era desde esta perspectiva que Trotsky sustentou que um grupo revolucionário - mesmo um pequeno - poderia ser capaz de influenciar uma porção suficiente da classe trabalhadora para que a tática da frente única operária, aquele "golpear juntos e marchar separados", não fosse simplesmente uma exigência impotente para a burocracia, mas para ter a força para impô-la efetivamente e abrir o caminho para o desenvolvimento de sovietes/conselhos como organizações da frente única de massas.

Ao contrário do que sugere Artous, longe de se referir a um “propagandismo abstrato” “muito distante do movimento real”, justamente a perspectiva de Trotsky passava por ligar cada um dos processos de luta, levantes, etc. que se desenvolveram na França ao longo do período, para evitar que as forças do movimento real se dissipassem e para poder transformá-las em instituições permanentes, e para vincular o desenvolvimento do partido revolucionário estritamente a esse processo. O problema passava principalmente aí. Como assinala Daniel Guérin - membro do grupo de Pivert na época - apontou em seu balanço dos acontecimentos: “O admirável artigo de Trotsky: ’A Revolução Francesa começou’, que apareceu no número apreendido de La Lutte Ouvriere, foi lido apenas por uns poucos iniciados. Se realmente tivéssemos cumprido nossa missão dentro do movimento popular, haveríamos tido outros meios efetivos para nos fazer escutar” [16]. No mesmo sentido, Joubert assinala que: "Na derrota, a análise de Trotsky será comprovada, definitivamente, como uma derrota que era inevitável na hipótese em que os trotskistas não conseguiram desempenhar um papel decisivo".

Adendo com conclusões para o presente

No artigo que debatemos - e que faz parte de todo o percurso político e teórico do autor [17] -, Artous destacou que "há algo muito profundo em tudo isso que resistirá ao passar do tempo". E, de fato, há algo de tudo isso em muitos dos debates que perpassam a esquerda trotskista ou advindos dessa tradição, a nível internacional. Um exemplo atual, como apontamos no início, é a crise terminal do NPA francês, embora certamente não seja a única; temos o caso do PSOL do Brasil em relação ao Lula, a esquerda espanhola que se diluiu no Podemos, etc. Como refletimos nas páginas do Ideias de Esquerda, a divisão que se desenvolveu no NPA corresponde a dois projetos estratégicos antagônicos. Um, representado pela velha maioria, que se comprometeu a levar o partido a um acordo político eleitoral com o reformismo da França Insubmissa de Jean-Luc Mélenchon - uma figura vinda do PS que converge com uma “soberania de esquerda” e aliada do PCF - e transformá-lo em uma espécie de satélite do mesmo. Um passo que o próprio Artous já havia dado há muito tempo junto com todo um setor de dirigentes da antiga LCR (Liga Comunista Revolucionária, fundada pelo falecido Ernest Mandel). A outra, representada pela Corrente Comunista Revolucionária (CCR) ou “Revolução Permanente” - como é conhecida pelo nome de seu popular jornal digital - com uma política de independência de classe e intervenção decisiva nas lutas da classe trabalhadora e da juventude, para a construção de um partido revolucionário.

Nessa linha, o próprio desenvolvimento da CCR esteve vinculado à vanguarda operária que emergiu dos processos de luta de classes. Trabalhadores e trabalhadoras próximas do trotskismo, que estiveram na vanguarda de grandes greves como a da ferroviária em 2018 (que levou à coordenação de Intergares), a revolta dos Coletes Amarelos (onde se encontra o chamado "polo de São Lázaro" impulsionou a unidade dos Coletes com ferroviários, grupos anti-racistas, etc., contra a orientação da CGT), a grande greve dos transportes públicos que paralisou Paris durante semanas contra a reforma previdenciária (onde se desenvolveu a coordenadoria que chegou a reunir representantes da até 14 terminais de ônibus, três linhas de metrô e duas linhas de trens urbanos, além de algumas estações e centros técnicos), e, mais recentemente, a greve da refinaria de Grandpuits da petroleira Total contra demissões em massa (encabeçada pelo comitê de greve formado por delegados eleitos dentro das diferentes equipes de produção que forjaram uma aliança sem precedentes com organizações ambientais). Também dos processos de luta contra a brutalidade policial e o racismo, em torno dos quais se ergueu de pé o Comitê pela verdade e Justiça para Adama Traoré.

Hoje a direção histórica do NPA defende a necessidade de se curvar perante o reformismo de Mélenchon [18] com base em sua própria fraqueza, produto do retrocesso dos últimos anos em que se manteve preferencialmente à margem desses processos, cedendo a burocracias sindicais de diferentes tipos, inimigas do desenvolvimento da auto-organização e da luta de classes (que é a contra cara do eleitoralismo). Ao mesmo tempo, expulsa de forma sumária os militantes da CCR do NPA, quase 300 militantes que representam cerca de um terço dos militantes do partido e entre os quais estão os principais dirigentes operários da organização que são referências das lutas emblemáticas do último período. Podemos ver aqui uma amostra prática dessas duas estratégias a que nos referimos. Assim como o CCR, em cada uma das organizações que conformamos a FT-CI buscamos nos orientar pela segunda. Artous não se enganou ao salientar que "há algo muito profundo em tudo isto que resistirá ao passar do tempo", mas sobretudo o que se refere à possibilidade de uma esquerda que não aposta em ser um vagão de diversos reformismos, mas sim à emergência da classe trabalhadora como sujeito hegemônico no século XXI.

 
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