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Descobrir a Comuna de Paris vai muito além do seu aspecto histórico
Lina Hamdan
Mestranda em Artes Visuais na UFMG

Descobrir a Comuna de Paris vai muito além do seu aspecto histórico. Seu impacto como primeiro governo operário da história chega até hoje no movimento de trabalhadores e de mulheres em escala internacional, e devemos apreendê-la para tirar lições para toda uma nova camada de militantes homens e mulheres que vão se formando, numa situação tão penosa como a que estamos vivendo hoje, sobretudo para os jovens, em particular para as mulheres que são quem tem o futuro cada vez mais incerto, são as mais afetadas pelo desemprego, pelos trabalhos precários mundo afora, pela pandemia em geral e em particular no Brasil pela maneira como o governo negacionista do Bolsonaro e os governadores e prefeitos vêm gerindo essa situação calamitosa.

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Mulheres defendendo a barricada na praça Blanche, Moloch.

E eu escolhi falar um pouco hoje sobre as mulheres na Comuna, que tiveram um papel bastante destacado nesse processo, assim como em todos os processos revolucionários da história. As mulheres sempre cumpriram um papel de vanguarda.

Não é uma particularidade da Comuna o papel pioneiro das mulheres na luta de classes, papel que vemos destacado também depois na Revolução Russa em 1917, sobretudo pelo sofrimento mais exacerbado destas em situações de crises profundas já que historicamente foram e são as mulheres as mais responsáveis pelo trabalho de cuidado de filhos e idosos, pela comida que chega nos lares, portanto são mais drasticamente atingidas quanto à responsabilidade frente à fome. Isso leva as mulheres das classes trabalhadora e populares a se localizarem à frente como sujeito fundamental nas situações revolucionárias.

A Comuna representa o espírito de uma revolução em que as mulheres não só conquistaram, em seus densos e intensos 72 dias de existência, o direito à educação, ao divórcio e de trabalhar em funções das quais não eram permitidas às mulheres, mas também o direito de lutar fisicamente, com armas à mão, diretamente nas ruas e barricadas, lado a lado com os homens por um governo de trabalhadores.

A atuação das mulheres como revolucionárias em 1871 não surge do nada. Todo o processo de amadurecimento da classe trabalhadora na França no século XIX se dá no “campo de batalha” de todas as revoluções burguesas que tiveram na França, que tinham um caráter de “frente única” contra a antiga ordem feudal e clerical, ou seja, tiveram grande participação popular e de trabalhadores, ainda que não organizados enquanto classe e sem independência política da burguesia. Em 1789, durante a Grande Revolução Francesa, as mulheres burguesas vão assumir reivindicações políticas paralelamente às mulheres de classes subalternas que vão se destacar nas mobilizações de rua contra a fome e a carestia de vida.

Em 1848, já serão vistas mais especificamente mulheres trabalhadoras que, inspiradas teoricamente pelo socialismo e pelo comunismo, vão defender a igualdade de gênero em seu sentido amplo, associando-a à necessidade de uma superação da ordem existente e à emancipação do conjunto da classe trabalhadora. Retomo isso para localizar como essas profundas experiências na luta de classes dessa França que está se modernizando, se urbanizando e fazendo surgir um antagonismo de classe muito profundo (é bastante visível nas charges da época, na França do segundo Império, sobretudo em Paris, centro ultra concentrado da política, da economia e da urbanização francesa, após as reformas urbanas antipopulares de Haussmann, o profundo abismo entre os burgueses e os trabalhadores), vão ser a bagagem revolucionária que vai influenciar a que as mulheres parisienses em 1871 se dediquem com toda força e alma à Comuna, vendo nesta a possibilidade de conquistar a tão desejada República Social, em que a igualdade de direitos e a liberdade sejam uma realidade consagrada em lei forjando o caminho para, em suas próprias mãos, fazerem-nas de fato acontecerem.

Após a queda de Napoleão III, o processo que constituiu uma nova República em setembro de 1870 vinha carregado de expectativa, mas também de desconfiança popular. Mas, pela própria tensão da guerra, com Paris sitiada pelo exército prussiano, a população acaba permitindo a conformação de uma câmara bastante reacionária, bastante monarquista, ao mesmo tempo em que já vai se fortalecendo os aspectos de tensão entre os setores trabalhadores e os representantes da burguesia. O ponto que mais fortalece essa tensão, visto do ponto de vista da classe dominante, é o fato deles próprios terem armado a classe trabalhadora francesa para lutar contra o exército prussiano, tendo forjado batalhões auto-organizados, que em conjunto conformavam a Guarda Nacional, com comandantes eleitos por distrito de Paris, que eram verdadeiras milícias populares de composição majoritariamente operária. Isso leva a que a burguesia, sob direção do governo de Thiers, decrete o armistício e permita que os prussianos entrem em Paris, deixando os parisienses se sentindo bastante humilhados e traídos, porém ainda armados. Esse momento de clivagem se agudiza no 18 de março de 1871, há exatos 150 anos, quando o governo determina que o exército tome as armas e canhões da Guarda Nacional já que o armamento dos trabalhadores é muito mais ameaçador à burguesia industrial e financeira francesa do que o exército prussiano.

As mulheres foram as primeiras a defenderem os canhões. Eram trabalhadoras, suburbanas, pequenas comerciantes, professoras, prostitutas, que, além de cumprir um papel que inclusive elas já haviam cumprido nas revoluções anteriores, de assistência aos combatentes, puderam estar, se assim quisessem, diretamente nas barricadas. Os proletários parisienses não negaram seu direito de carregarem em suas mãos as armas em defesa da revolução, como haviam negado os revolucionários burgueses.

As mulheres de fato desempenharam nessa revolução um papel sem precedentes, inclusive pelo caráter quase exclusivamente operário da comuna, que mesmo que não tenha expulso ativamente patrões e burgueses, estes fugiram da cidade assim que a Comuna foi declarada. Eram milhares de mulheres que entraram diretamente nas fábricas para produção de armas e munições e outros bens necessários para a guerra civil. Isso numa França que até então reservava às mulheres as maiores taxas de desemprego e a dificuldade extrema de se sustentarem por elas mesmas, na medida em que pelo código napoleônico que regia na França até a revolução as mulheres sequer eram consideradas como maiores de idade, restringindo totalmente seus direitos e sua independência. O processo da Comuna vai colocar as mulheres em outro local, tendo inclusive formado um batalhão totalmente feminino da Guarda Nacional, com 120 mulheres, tendo a Louise Michel chegado a falar de 10.000 mulheres combatentes na última semana sangrenta de resistência da Comuna.

Há uma questão que é importante não deixar de comentar, que apesar das mulheres terem aberto o processo insurrecional da Comuna de Paris, delas terem passado a trabalhar nas fábricas e oficinas, delas intervirem nos debates nos clubes, nos comitês dos distritos nos quais elas vão poder ser eleitas, nas comissões de vigilância auto-organizadas em defesa da cidade, elas seguiram excluídas do direito de votar e de serem eleitas para o Conselho da Comuna, a câmara central do novo governo operário.

Esse aspecto mostra bastante como a revolução é essencial para a conquista do poder operário; como a destruição do Estado burguês é essencial, ou seja, o desmantelação de todas aquelas estruturas corruptas que permitem uma dominação de classe e a construção do zero de todo aparelho administrativo, um novo estado operário, com delegados eleitos que recebem salário médio de um operário e que são obrigados a votar e agir segundo as escolhas de seus eleitores que podem revogá-los a qualquer momento. Mas evidencia também como a tomada do poder político pela classe trabalhadora coloca as bases materiais para atacar na raiz os problemas da opressão na sociedade (no caso estou dando destaque para a questão de gênero, mas inclui todas as opressões de raça, sexual, etc.), mantendo a sobrevivência, inclusive no seio da classe trabalhadora, aspectos de uma sociedade patriarcal que não vão acabar de um dia pro outro. Então dentro do processo revolucionário vai seguir se desenvolvendo toda a luta das mulheres. Na Comuna vão emergir umas das primeiras organizações de mulheres de massas, como a União das mulheres, que vão cumprir um papel determinante, inclusive com participação de mulheres da Associação Internacional de Trabalhadores, como através dos chamados feitos a todas as mulheres de Paris para eleger delegadas e formar comitês de vigilância por distrito, batendo de frente com o machismo o conservadorismo de uma parte do movimento operário da época.

Foi a organização de mulheres da Comuna que levantaram reivindicações e conquistaram medidas concretas que lhes permitissem entrar maciçamente no trabalho produtivo como igualdade de salários, direito ao divórcio, educação para as mulheres e separação da Igreja e do Estado. Eles também exigiram o fim da divisão entre filhos “legítimos” e “ilegítimos” e propuseram uma pensão para as viúvas dos soldados da Guarda Nacional, mesmo que não fossem legalmente casadas.

Uma dessas organizações, o Comitê de Vigilância das Cidadãs, publica no jornal oficial da Comuna um chamado dizendo: “Paris está bloqueada, Paris é bombardeada. […] É o estrangeiro que volta para invadir a França? Não, esses inimigos, esses assassinos do povo e da liberdade são franceses! Eles viram o povo se levantar gritando: ‘Nada de deveres sem direitos, nada de direitos sem deveres! Nós queremos trabalho, mas também o produto do trabalho… Chega de exploradores, chega de senhores! O trabalho e o bem-estar para todos, o governo do povo por ele mesmo, a Comuna, viver livre e trabalhando ou morrer lutando.’”

Nesta citação é perceptível como ainda não há um nível de organização enquanto classe trabalhadora. Fala-se de povo. Mas ao mesmo tempo já localiza os aspectos profundos de contradição de classes, evidenciando que não existe unidade possível entre “os Franceses”. As mulheres burguesas estiveram o tempo todo contra a Comuna, seguindo seus interesses e privilégios de classe que estavam ameaçados pelo poder operário que se erguia, tendo colaborado como agentes e informantes do governo oficial, fugido em Versailles.

No dia 21 de maio, as tropas de Versailles, entram em Paris dando início à esmagadora semana sangrenta, em que a burguesia demonstra sua impiedosa brutalidade, matando entre 10.000 e 20.000 communards, sendo 40.000 presos ou deportados – com relatos de que as tropas oficiais não mataram mais porque a quantidade de cadáveres estava ameaçando a conformação de uma profunda crise sanitária.

Esse foi o preço que a população trabalhadora teve que pagar por ter querido viver diferentemente, sem intermediações desde cima, gerindo eles mesmos todos os aspectos da sociedade de maneira democrática para acabar com a sociedade de exploração do trabalho, a sociedade do dinheiro, do capital, a sociedade dos padres, dos pastores, da igreja, de uma moral esmagadora. Para consagrar a liberdade e fazê-la de fato acontecer.

Os trabalhadores que só conheciam seus locais de trabalho, as mulheres que tinham como horizonte apenas seus lares ou seus próprios bairros, se colocaram na posição de reinventar a organização da sociedade em todos seus âmbitos.

Testemunhas da época relatam que mulheres enfurecidas, ao fim da Comuna, golpeavam os oficiais do exército e se lançavam contra as paredes esperando para ser fuziladas. Uma foi julgada por ter roubado um comércio de estátuas de igrejas, para usá-las para montar uma barricada. Quando o juiz a pergunta “Você usou as estátuas de santos para levantar uma barricada?”, a communarde responde: “Sim, mas as estátuas eram de pedra e aqueles que morriam eram de carne”.

Esse relato é para reforçar o aspecto de que as mulheres, assim como na Comuna, sempre ocuparam e seguirão ocupando a linha de frente de cada um dos processos de luta de classes em todos os locais do mundo, em todas as vezes que aqueles que são massacrados cotidianamente pela exploração e pela opressão se erguem contra ela, seja nos pequenos e isolados rebentos de luta por melhores condições de trabalho e de vida, seja nas ações organizadas e auto-coordenadas pelos trabalhadores rumo a um questionamento profundo à ordem dominante. Como dizia a communarde Louise Michel: “Cuidado com as mulheres quando se sentem enojadas de tudo o que as rodeia e se levantam contra o velho mundo. Nesse dia nascerá o novo mundo”.

 
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