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Uma vez mais sobre os debates ao redor da guerra na Ucrânia

Matías Maiello

Uma vez mais sobre os debates ao redor da guerra na Ucrânia

Matías Maiello

Em breve fará um mês desde o início da invasão da Ucrânia por Putin. As tropas russas continuam seus ataques em diferentes partes do país com intensidade variável, ataques parciais ao redor da capital, Kiev, também no leste em Kharkov, mas especialmente no sul do país na cidade de Mariupol, chave para estabelecer o corredor que Atravessa o Mar de Azov da península da Criméia sob controle russo até a região de Donbass. Continuam também as sanções à Rússia – que atravessaram esta semana devido à sua incapacidade de obter dólares para o pagamento de dívidas – e o envio de armas e recursos pela OTAN. Enquanto isso, as negociações entre os governos ucraniano e russo parecem estar avançando, embora seu resultado ainda seja incerto.

Nesse cenário complexo, vários debates estão sendo desenvolvidos na esquerda sobre as posições em torno da guerra. Em um artigo anterior abordamos alguns deles sobre a possibilidade de uma luta efetiva contra a guerra, pela retirada das tropas russas da Ucrânia, bem como da OTAN do Leste Europeu e contra o rearmamento imperialista. Dissemos que o ponto de partida para uma política independente é integrar a questão nacional que surge na Ucrânia com a invasão russa e a luta contra a OTAN e o imperialismo, apelando à mobilização internacional. A necessária independência política de um movimento antiguerra depende dessa articulação.

Em um artigo posterior, Mercedes Petit da Izquierda Socialista e da UIT, criticou esta posição do PTS e da organização internacional a que pertence, a FT-CI. Ela sustenta que, apesar de partir de "uma consigna inicial correta (’Fora tropas russas da Ucrânia!’)", não se junta abertamente ao "campo militar do povo ucraniano" e exige mais armas para a Ucrânia. Esta não é uma posição isolada. Diversas organizações de esquerda a nível internacional, como o agrupamento internacional da LIT-CI, cuja principal organização é o PSTU do Brasil ou, com diferentes ênfases e formulações, o MST argentino, vêm se posicionando em sentido semelhante. Nestas abordagens, o papel da OTAN no conflito – apesar de denunciado – é colocado em segundo plano sem grandes implicações na definição de uma política independente. Ao final deste arco político, o chamado Secretariado Unificado da Quarta Internacional – embora tenha várias posições dentro dele – em sua declaração propõe entusiasticamente tanto o envio de armas quanto o apoio a sanções contra a Rússia, com a única ressalva de que condenam aqueles que "atacam mais o povo russo do que o governo e seus oligarcas".

Que implicações esses debates têm do ponto de vista de uma política contra a guerra na Ucrânia? Que problemas estão contidos no conflito concreto? Em que consiste uma política independente dos socialistas revolucionários internacionalistas? Nestas linhas, aproveitaremos as críticas da Izquierda Socialista para desenvolver alguns elementos que consideramos essenciais para responder a estas questões.

A continuação da política por outros meios

A definição do tipo de guerra que estamos enfrentando é, sem dúvida, um ponto de partida fundamental. Não é o mesmo que uma guerra entre dois bandos imperialistas, ou seja, em que há a disputa pela distribuição do mundo ou parte dele, oprimindo outras nações, onde uma política independente implica no derrotismo de ambos os lados, nem uma "guerra justa" de libertação nacional, onde um país oprimido luta pela sua independência, caso em que, para os socialistas revolucionários, a localização política é no campo militar do país oprimido. No referido artigo, Mercedes Petit critica o PTS e a FT-CI porque "propõem ’enfrentar a ocupação russa e a dominação imperialista’". Para ela, isso leva a "definir mal os campos militares em luta", caindo, assim, numa "contradição insolúvel". A saber:

Seu primeiro slogan (correto) é: ’Fora tropas russas da Ucrânia’, mas eles negam que o campo militar de luta por esta justa causa realmente exista, que os ucranianos já estão lutando com armas na mão para alcançá-la e que devemos apoiá-los para que expulsem as tropas de Putin, para que triunfem. Nesse campo existem apenas homens e mulheres ucranianos, com o governo burguês e reacionário de Zelensky, o exército burguês e o povo ucraniano. A FT-QI reconhece isso quando diz que não há tropas dos países da OTAN “em confronto militar direto com as forças russas”. Mas nega que homens e mulheres ucranianos, o exército, milicianos e civis protagonizam uma luta nacional e militar para tirar as tropas russas de seu país. E nós revolucionários temos a obrigação, a partir de uma total independência política, de apoiar incondicionalmente este campo militar.

Nesse quadro, as alternativas que Petit enxerga são: ou dizer que as forças ucranianas "atiram contra os russos e também contra o governo reacionário de Zelensky e da OTAN", posição na qual supostamente poderia cair a FT-QI; ou o que propõe a UIT-QI: “lutemos juntos para expulsar os russos, sem confiar em Zelensky ou na OTAN”. Duas considerações emergem desse esquema, cujas implicações nos interessam. A primeira, que a política do socialismo revolucionário pareceria se limitar a uma espécie de teste de tiro ao alvo onde a pergunta seria: em quem devemos atirar? A segunda é que em ambas as formulações – tanto a “correta” quanto a “incorreta” – “os russos”, o governo Zelensky e a OTAN aparecem como lados, o que parece contradizer a afirmação inicial de que a OTAN não está intervindo. Esse “lutemos juntos” da UIT-QI – apenas militarmente e sem qualquer confiança – deixaria indeterminado o lugar da OTAN no “campo militar”.

Ambas as questões têm um denominador comum, um reducionismo militarista do fenômeno da guerra em geral e da guerra na Ucrânia em particular. Pode parecer comum dizer que a apropriação de Lênin da ideia clausewitziana de guerra como continuação da política por outros meios é fundamental para o marxismo. Mas, assim como o senso comum, às vezes é menos comum do que parece. O que essa famosa fórmula implica? Que para analisar uma guerra (ainda mais se dela se pretende tirar uma política independente) é necessário esmiuçar todas as políticas anteriores dos diversos atores que nela se “continuam” “por outros meios”. Vamos ver.

Muito sinteticamente: a política que Putin “continua” com a invasão da Ucrânia consiste em recriar um status de potência militar para a Rússia – através da reformulação do seu exército e desenvolvimento de armamentos – sustentando a opressão nacional dos povos vizinhos, em consonância com o que o czarismo ou o stalinismo sabiam fazer. Um nacionalismo russo reacionário que teve marcos como a guerra com a Geórgia pelo controle da Ossétia do Sul, o esmagamento do povo checheno ou, mais recentemente, as intervenções para apoiar governos reacionários na Bielorrússia ou no Cazaquistão.

A política que a OTAN continua, questionada por teóricos "realistas" como John Mearsheimer, foi a de se expandir para a Europa Oriental para "cercar" a Rússia após a queda da URSS. Em 1999 seriam a Polônia, Hungria e República Checa, durante a primeira década de 2000, Estónia, Letónia, Lituânia, Roménia, Bulgária, Eslováquia, Eslovênia, Albânia e Croácia, em 2017 Montenegro e em 2020 Macedônia do Norte. Junto a isso, a interferência nas chamadas “revoluções coloridas”, buscando capitalizar revoltas contra regimes autoritários baseados na expansão de sua influência imperialista. Estes incluíram a “revolução laranja” na Ucrânia em 2004 e sua continuação em Maidan em 2014.

A política do governo Zelensky, assim como o processo político que a Ucrânia atravessa há décadas, são incompreensíveis fora desse cenário. A Ucrânia descreveu uma trajetória pendular marcada pelo confronto entre as oligarquias capitalistas locais “pró-russas” e “pró-ocidentais”. A história da configuração atual remonta a 2004 e a disputa eleitoral entre Viktor Yushchenko (pró-ocidental) e Viktor Yanukovych (pró-russo) que levou a acusações de fraude, deu origem à já mencionada "revolução laranja" e que acabou trazendo Yushchenko para o governo. Então, em 2010, Yanukovych vence as eleições e em 2013-14 há uma revolta contra seu governo que acabaria sendo conhecido como Euromaidan (por causa de seu centro na Praça da Independência –a transliteração de “quadrado” é Maidan– e devido ao seu principal lema de adesão à União Europeia). Brutalmente reprimida, a revolta será cada vez mais tomada por forças reacionárias e pró-ocidentais de extrema direita. Após a queda de Yanukovych, grupos armados pró-Rússia assumirão os governos de Donetsk e Lugansk, e o parlamento da Crimeia, uma região que a Rússia eventualmente anexará.

Em torno desses confrontos, aprofundou-se a rachadura na sociedade ucraniana, uma divisão alimentada pelos interesses divergentes das diferentes frações da oligarquia local e seus negócios com a Rússia ou o Ocidente. Tudo isso é agravado pelo fato de o país ter uma minoria significativa de língua russa que compreende cerca de 30% da população localizada no leste e no sul. A ascensão de grupos nacionalistas de extrema direita fez parte desse processo, assim como a exaltação de figuras históricas como Stepán Bandera, líder ultranacionalista e colaborador dos nazistas. Desde 2014 ocorre uma guerra civil de baixa intensidade. A minoria de língua russa foi alvo de medidas opressivas, chegando a restrições do uso de sua língua e ataques de grupos de extrema-direita administrados pelo Estado. O governo Zelensky é um produto genuíno dessa configuração. Sua política de direita é dedicada a subordinar a Ucrânia às potências ocidentais. Na sua base estão grupos de extrema direita. Toda essa política é a que continua durante a guerra.

Em suma, temos uma política de Putin caracterizada por um nacionalismo reacionário que oprime outros povos, temos uma política da OTAN de expansão para o Leste e "revoluções coloridas", temos uma guerra civil de baixa intensidade, também atravessada pela existência de um minoria de língua russa de um terço da população e a ascensão de grupos de extrema direita, e Zelensky como um governo pró-imperialista até a medula. Nesse quadro, parece infrutífero reduzir o problema de uma política independente à questão de para qual lado atirar. Trata-se de estar no “campo militar do povo ucraniano”, mas de que parte deste “campo”, dividido por uma guerra civil anterior? Exigir "armas para o povo" para que milícias? Para as milícias separatistas de Donbass, para as milícias de extrema direita como o Batalhão Azov? O primeiro já foi feito por Putin, o segundo pela OTAN, ambos como “continuidade” de suas respectivas políticas “por outros meios”. A realidade é um pouco mais complexa do que parece caber nas propostas da UIT-QI e de outras organizações de esquerda que defendem uma política semelhante.

A política frente à guerra

Neste quadro, temos não só um, mas dois problemas centrais aos quais uma política independente deve responder: o da invasão russa em termos de autodeterminação e independência de um país semicolonial como a Ucrânia e o da interferência da OTAN como continuação de sua política imperialista sobre aquele país e o Leste Europeu como um todo, que até agora se expressou por meio de sanções econômicas contra a Rússia e o envio de armas, embora não como envolvimento direto de suas forças militares na guerra. A combinação de ambos os problemas aumenta a complexidade da guerra na Ucrânia.

Há várias décadas, especialmente desde a Primeira Guerra do Golfo (1990-91), vimos prevalecer guerras imperialistas de agressão sob a hegemonia dos EUA. Tanto que alguns - sendo um dos mais populares Tony Negri - confundiram isso com o fim do imperialismo e sua substituição por um império cujas ações militares respondiam a um poder de polícia global. Na primeira guerra contra o Iraque, sob o argumento de “proteger” o Kuwait da invasão, os EUA alistaram os países imperialistas e muitos outros por trás de sua ação militar, incluindo o apoio da Rússia. O mesmo aconteceu com a coalizão para invadir o Afeganistão em 2001, que contou com o apoio da Rússia e foi ocasião de sua reaproximação com a OTAN. A Segunda Guerra do Golfo de 2003 já começou a mostrar as primeiras fissuras no bloco de guerra liderado pelos EUA com o distanciamento da França e da Alemanha. A Rússia estava com este último, mas tomando cuidado para não atrapalhar a ofensiva dos EUA.

Estes são três exemplos claros, certamente não os únicos, onde a luta para derrotar o ataque do imperialismo e a vitória do país oprimido foram os lemas de qualquer posição independente e anti-imperialista. Daí veio a posição dos povos afegão e iraquiano no campo militar, rechaçando ao mesmo tempo qualquer apoio político a seus governos reacionários. Podemos dizer algo semelhante sobre a Guerra das Malvinas, em que a ditadura genocida embarcou de forma aventureira para contrabalançar sua crise, mas que opôs um país semicolonial como a Argentina a uma potência imperialista como a Grã-Bretanha, apoiada – além das ilusões alimentadas por Galtieri e Cía – pelos EUA e outras grandes potências. A derrota da Argentina implicou o reforço das correntes imperialistas, selou o caráter acordado da transição até as eleições de 1983, e foi um evento chave no fortalecimento de Margaret Thatcher para derrotar a classe trabalhadora britânica e iniciar a ofensiva neoliberal em nível nacional e global.

Trótski explicou esse tipo de posicionamento em entrevista a Mateo Fossa com o seguinte exemplo:

No Brasil, existe atualmente um regime semifascista que qualquer revolucionário só pode encarar com ódio. Suponhamos, porém, que amanhã a Inglaterra entre em conflito militar com o Brasil. De que lado estará a classe trabalhadora neste conflito? Neste caso, eu pessoalmente estaria com o Brasil "fascista" contra a "democrática!" Grã Bretanha. Por quê? Porque não seria um conflito entre democracia e fascismo. Se a Inglaterra ganhasse, colocariam outro fascista no Rio de Janeiro e prenderiam o Brasil em cadeias duplas. Se, por outro lado, o Brasil saísse triunfante, a consciência nacional e democrática desse país ganharia um poderoso impulso que levaria à derrubada da ditadura Vargas. Ao mesmo tempo, a derrota da Inglaterra seria um duro golpe para o imperialismo britânico e daria um impulso ao movimento revolucionário do proletariado inglês. [1]

Desde então, o imperialismo sofisticou sua política, não mais necessariamente trocando um fascista por outro, mas dando origem a "transições democráticas" moldadas para garantir os interesses imperialistas e aprofundando as cadeias da opressão nacional; Voltaremos a isso mais tarde.

Em um caso muito diferente daquele que vimos com Trótski em termos da relação entre uma nação oprimida e um ataque imperialista, Lênin formulou acerca da independência polonesa durante a Primeira Guerra Mundial. Essa abordagem foi apoiada de modo oportunista pelo czarismo depois que a Polônia foi tomada pela Alemanha. Lênin se perguntava “como ajudar a Polônia a se libertar da Alemanha? Não é nosso dever fazê-lo?”, e ele respondeu:

Claro que sim; mas não apoiando a guerra imperialista travada pela Rússia, seja ela czarista ou burguesa, ou mesmo republicana burguesa, mas apoiando o proletariado revolucionário da Alemanha [...] Todos aqueles que desejam reconhecer a liberdade dos povos, o direito das nações à autodeterminação, mas reconhecê-la sem hipocrisia [...] devem se opor à guerra pela opressão da Polônia [...] Todos aqueles que não querem realmente ser social-chauvinistas devem apoiar apenas aqueles elementos dos partidos socialistas de todos os países que trabalham abertamente, diretamente, neste momento, pela revolução proletária em seu próprio país [2]

Desta forma, Lênin rejeitou a demagogia do czarismo, que oprimia povos como os ucranianos, os finlandeses, etc. sobre a independência da Polônia. Ele, que era um acérrimo defensor da autodeterminação polonesa, se opunha a este slogan nas mãos do czarismo. E, diante da questão de como ajudar a Polônia a se libertar, pediu apoio aos revolucionários alemães, enquanto na Rússia pediu a independência de todas as nações oprimidas pelo czarismo. Sem dúvida, tratava-se de uma proposta mais complexa do que a simples definição “de onde fotografar”.

Agora, a atual guerra na Ucrânia não se encaixa totalmente em nenhum desses dois casos “típicos” e querer reduzi-la a eles, do nosso ponto de vista, seria um erro. Não é uma guerra onde todo o imperialismo está de um lado e a nação oprimida do outro (como nos exemplos que vimos da primeira e – com suas diferenças – da segunda Guerra do Golfo, Afeganistão ou Malvinas). Por um lado, há a invasão reacionária de Putin, com a Rússia atuando como uma espécie de “imperialismo militar” (embora não se qualifique como um país imperialista no sentido preciso do termo: não tem uma projeção internacional significativa de seus monopólios e exportações de capital; exporta essencialmente gás, petróleo e commodities, etc.). Do outro lado, há uma nação semicolonial como a Ucrânia, na qual as principais potências imperialistas do Ocidente estão montadas contra a Rússia. Mas também não é uma guerra interimperialista aberta como foi o caso na Polônia que vimos com Lênin. Até agora, as potências ocidentais intervêm por meio de sanções econômicas e fornecimento de armas, essencialmente tentando evitar o envolvimento total. A tudo isso devemos acrescentar que esse confronto busca se traduzir em uma divisão interna do próprio povo ucraniano, que tem um terço da população ligada linguística e culturalmente à Rússia.

Assim, uma política independente, em nossa opinião, deve também buscar uma combinação coerente entre os elementos que vimos respectivamente nos exemplos de Trótski e Lênin. Confrontar a invasão russa com tal política, não é apenas uma questão de “denunciar” a OTAN, mas incluí-la como fator ativo no próprio conflito contra a autodeterminação do povo ucraniano. E neste sentido, assim como Lênin, chamar a mobilização internacional como “ajuda” chave na luta pela independência da Ucrânia, tanto no “Ocidente” quanto na Rússia. O desenvolvimento de um movimento antiguerra que não sucumba ao militarismo da OTAN é essencial. Uma política consistente em relação ao problema nacional na Ucrânia implica também aumentar o direito à autodeterminação de Donetsk e Lugansk e da população de língua russa. Ao mesmo tempo, lutar contra a ocupação das regiões pró-Rússia, nas quais sua população tem a capacidade de tornar infundada toda a demagogia de Putin. Não importa quantas armas circulem, somente a unidade do povo trabalhador ucraniano, superando as divisões incentivadas pelas oligarquias dos dois lados da fenda, poderá derrotar a invasão de Putin sem trocar uma corrente por outra e persistir no pêndulo (entre a Rússia e OTAN) que caracterizou a política do país nas últimas décadas.

Os objetivos de uma política independente

É claro que a maior ou menor necessidade de uma política independente depende dos objetivos estabelecidos por quem a formula. Por exemplo, o Secretariado Unificado conclui sua declaração apelando que “a classe trabalhadora internacional, lutando junto com todos os povos oprimidos e explorados, pela paz e contra o imperialismo, o capitalismo e a guerra, pode criar um mundo melhor”. Deste ponto de vista, sua defesa de sanções contra a Rússia e a entrega de armas em geral pode ser mais ou menos contraditória, dependendo do que se entende por "um mundo melhor". De uma perspectiva socialista e internacionalista revolucionária, as coisas obviamente mudam. E isso também é importante quando se trata do debate sobre o problema da autodeterminação nacional e da luta anti-imperialista com aqueles que, como a UIT, a LIT ou a ISL, apontam para um tipo particular de revolução, chamada de "revolução democrática”.

Afirmou Mercedes Petit em relação a uma perspectiva como a que viemos propondo nestas linhas:

Esta abordagem [a do PTS e da FT] é diretamente derrotista e, se aplicada, favoreceria simples e imediatamente a invasão de Putin. Não é coincidência que a declaração do FT-CI se refira à luta na Síria contra Al Assad em 2011/16. Nisso eles também tiveram uma posição nefasta: eles disseram, como eles mesmos agora se lembram, que na Síria havia "uma guerra reacionária sem campos progressistas" e rejeitaram o apoio militar à mobilização massiva e à luta militar que enfrentou Al Assad. Juntaram-se, assim, à cumplicidade da maioria da esquerda mundial com o ditador Al Assad e o massacrador Putin, que esmagou a mobilização com sangue e fogo.

Embora não seja comparável com a atual guerra na Ucrânia, o caso sírio tem alguns pontos de contato se tomarmos todo o processo desde a “revolução laranja” de 2004, passando pelo Maidan em 2014 e os confrontos subsequentes. As origens da guerra na Síria remontam à revolta de 2011 que foi a expressão da eclosão da revolta popular contra o regime bonapartista de Bashar al-Assad e parte da chamada Primavera Árabe. O governo recorreu à repressão feroz e incentivou o confronto inter-religioso. A princípio, o exército era dividido horizontalmente – entre setores da tropa e os oficiais –, mas logo se tornaria uma divisão vertical que deixavam em segundo plano os elementos de autodefesa “cidadãos” ou “populares” (não de classe) e arregimenta-los e subordiná-los à estrutura do Exército Livre Sírio patrocinado desde o início pela Turquia e depois apoiado pelo imperialismo norte-americano, inglês e francês, embora com alguma desconfiança devido às suas ligações com a Irmandade Muçulmana e grupos salafistas. Assim, o conflito passou por diferentes momentos, levando a uma guerra civil reacionária, e tendo como fenômeno progressivo o desenvolvimento da luta do povo curdo, cuja independência, no entanto, estava se liquefazendo no âmbito das alianças militares com os EUA e logo depois com Assad contra os ataques turcos.

Boa parte da esquerda, inspirada na teoria da revolução democrática, via a guerra civil síria como uma guerra revolucionária, deixando mais ou menos de lado toda a complexidade do processo, com interferências imperialistas e divisões inter-religiosas. Ela assim o fez, seguindo à sua maneira as proposições de Nahuel Moreno que defendia que diante do "fascismo e dos regimes contra-revolucionários" era preciso ter como objetivo "uma revolução no regime político: destruir o fascismo para conquistar as liberdades da democracia burguesa, embora fora do terreno dos regimes políticos da burguesia, do estado burguês” [3]. Na mesma linha, eles também viram a revolta de Maidan de 2013-14 como uma “revolução democrática vitoriosa”. Nas palavras da Izquierda Socialista da época: “Uma revolução relacionada com os levantes revolucionários no norte da África e no Oriente Médio que fizeram imensas revoluções para expulsar seus governos opressores triunfa. Na Ucrânia, também triunfa uma revolução democrática que consegue a queda do reacionário e pró-russo Yanukovych”.

Embora a revolta tenha como pano de fundo as dificuldades da população e a revolta contra o governo repressivo e corrupto de Yanukovych, essa caracterização abstraiu-se do próprio desenvolvimento do processo. Foi proposto independentemente de seu programa (que tinha como lema central a entrada na União Europeia imperialista), de suas lideranças compostas por uma frente que ia desde os partidos de oposição liberal pró-ocidente até a extrema direita, incluindo grupos neonazistas e que, por isso, tomaram como uma de suas primeiras medidas a abolição da lei que protegia as línguas minoritárias não ucranianas. Desta forma, levaram ao extremo a teoria da “revolução democrática” segundo a qual “não é obrigatório que seja a classe trabalhadora e um partido marxista revolucionário que dirija o processo da revolução democrática para a revolução socialista." [4], sendo que, segundo Moreno, toda revolução (produto do estado catastrófico do capitalismo) era em si mesma “inconscientemente socialista”.

É difícil desenvolver uma política independente a partir de tal teoria. A verdade é que desde que foi originalmente formulada, inspirada nos processos que se desenvolveram em resposta à ascensão das massas na década de 1970, conhecidos como as "transições para a democracia" (Portugal, Estado espanhol e Grécia, que mais tarde se espalharam para o mundo semicolonial), nenhum desses processos de supostas “revoluções de regime” seguiu um curso como o previsto por Moreno. Ao contrário, produziram uma reconfiguração a partir da qual a burguesia conseguiu reconquistar a hegemonia. Assim, sob as bandeiras de uma idílica democracia burguesa, da suposta defesa dos direitos humanos e da “liberdade”, a ofensiva neoliberal se espalhou pelo globo. Hoje o que resta são os resquícios desse produto político do próprio declínio da hegemonia dos EUA. A "revolução laranja" na Ucrânia e o curso de Maidan em 2014 que levou à presidência do oligarca pró-ocidental Piotr Poroshenko foi a prova disso. A deriva da Síria para uma guerra civil reacionária também.

O que se mostra cada vez mais nesses processos é a profunda imbricação entre a concretização das demandas democráticas e a consequente luta anti-imperialista. Desde suas primeiras formulações da teoria da revolução permanente, Trotsky sustentou que mesmo em um país onde o proletariado constituía uma minoria como a Rússia, sua hegemonia era condição para “a resolução completa e efetiva” de objetivos democráticos, necessariamente ligados a transformações estruturais (em muitos casos diretamente anticapitalista). As últimas décadas ampliaram o significado dessa tese, a opressão imperialista deu um salto espetacular durante a ofensiva neoliberal que torna impensável qualquer conquista democrática fundamental e duradoura nas semi-colônias sem a emancipação perante o imperialismo.

Na Ucrânia, com toda a complexidade da guerra, essa questão também é fundamental. Os interesses dos trabalhadores e setores populares ucranianos se opõem de cima aos da oligarquia local ligada a Putin e ao imperialismo ocidental. Na luta contra a invasão russa, nenhuma verdadeira independência pode ser conquistada sob a influência da OTAN, razão pela qual é inseparável da luta anti-imperialista mais determinada. Como Trótski apontou na época, a perspectiva da independência da Ucrânia está indissoluvelmente ligada à luta pelo poder dos trabalhadores. Uma conclusão que se atualiza nas difíceis condições impostas pela ocupação russa e que se entrelaça com a luta por uma Ucrânia operária e socialista. Quando, no nosso caso, falamos em levantar uma política independente, o fazemos a partir desses objetivos.

Tradução: Gabriel Ulbricht


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FOOTNOTES

[1Trotsky, León, “La lucha antimperialista es la clave de la liberación. Una entrevista con Mateo Fossa”, 23 de setembro de 1938.

[2Lenin, V. I., “Paz sin anexiones y la independencia de Polonia”, 29 de fevereiro de 1916.

[3Moreno, Nahuel, Las revoluciones del siglo XX, Bs. As., Ediciones Antídoto, 1986.

[4Moreno, Nahuel, “Escuela de cuadros” - Argentina, 1984. Crítica a las Tesis de la Revolución Permanente.
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Matías Maiello

Buenos Aires
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