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“Socialismo ou barbárie” não é um diagnóstico, mas uma consigna para a ação

Andrea D’Atri

“Socialismo ou barbárie” não é um diagnóstico, mas uma consigna para a ação

Andrea D’Atri

Nestes angustiantes dias, enquanto a hiperinformação embota o pensamento e os anúncios governamentais transbordam de cifras meteóricas que ainda estamos analisando, muitos são os diagnósticos – não somente médicos – sobre este corpo mundial atacado por um vírus. Mas qual é o tratamento receitado?

Há poucos dias – que em tempos pandêmicos são uma eternidade – o jornalista e fundador do Podemos, Juan Carlos Monedero, intitulou sua coluna no jornal Público mencionando o famoso lema da revolucionária Rosa Luxemburgo: “Coronavírus: socialismo ou barbárie”. Nunca melhor citado que nestes tempos de agora. Mais de 10 mil mortos e 240 mil contagiados (comprovados) no mundo são cifras opacas que fundamentam medidas excepcionais dos Estados, enquanto a população é privada do direito a discernir e é ordenada a obedecer sem questionamentos, sob pena de ser virtualmente linchada por seus congêneres aterrorizados, obrigada a pagar uma multa ou ser presa.

Com o aperfeiçoamento inaudito que as novas tecnologias do século XXI permitem, toma-se medidas medievais como o confinamento massivo e indiscriminado, consensuado sem fissuras, depois de se ter disseminado massivamente a propaganda do terror. O mesmo método do século XIV se faz mais suportável com as videoconferências em streaming. Mas é inconcebível que os avanços científicos e tecnológicos não sejam aplicados, com a mesma celeridade, para testar copiosamente a população e –como parte de um plano integral coerente – tomar medidas racionais de isolamento, que evitariam gerar um caos maior do que já foi provocado.

Nos dizem que, nas condições atuais, não se pode fazer isso. O caos sanitário, social e econômico que foi gerado começa por aí. Fica demonstrado que o paciente zero desta pandemia não é um turista irresponsável de tal ou qual nacionalidade, senão o desmantelamento dos sistemas de saúde pública que, como tantas outras coisas, foram afetados pelos cortes depois da crise de 2008, tanto na Espanha como em outros países do mundo.

O paciente zero é o capitalismo

Mas escrevo confinada em um apartamento de Barcelona, então me permito começar assinalando que, em uma década de cortes desde aquela crise em que o Estado capitalista salvou os bancos e as grandes empresas às custas de milhões de pessoas, o investimento em saúde diminuiu em 21 bilhões de euros e o número de médicos em 9 mil profissionais; foram retirados 5 mil leitos e 80 mil trabalhadoras e trabalhadores da saúde foram jogados no desemprego.

A saúde privada move 30 bilhões de euros ao ano. Só para mencionar o grupo Quirón Salud, consta que tem 43 hospitais, 39 casas de tratamento de idosos e 35 mil trabalhadores, e está construindo um centro oncológico de protonterapia de vanguarda tecnológica, com um investimento de mais de 40 milhões de euros. Imaginem isso à escala internacional.

Na Espanha, a intervenção imediata de todo o setor privado para atuar coordenadamente com o setor público já foi ordenada pelo governo de coalizão do PSOE e Unidas-Podemos. Mas isso não é suficiente, porque os trabalhadores da saúde estão esgotados; denunciam a falta de elementos básicos para prevenir o contágio e atender os pacientes; o estoque e a produção de jalecos, máscaras, lençóis e luvas não são suficientes.

Projetem isso que acontece aqui pela quantidade de países mais ricos do mundo, onde se vive algo similar. Somem a isso que o vírus ameaça se propagar nos países pobres nas próximas semanas e meses.

São eles ou nós

Por essa razão, em alguns países, as grandes empresas automotrizes começam a transformar sua produção, como aconteceu na Segunda Guerra Mundial. Alguns governos solicitam e outros impõem. No Estado espanhol, o multimilionário Amancio Ortega – o dono da Zara e de outras marcas – ameaça os trabalhadores de suas empresas com demissões e suspensões enquanto oferece modificar suas linhas de produção de indumentária para fabricar material sanitário, que espera vender ao Estado em meio ao desespero generalizado.

Mas também necessita-se respiradores artificiais e outros instrumentos médicos complexos, remédios, mobiliário, comida hospitalar e muitas coisas mais que hoje estão escassas, enquanto algumas fábricas seguem produzindo bens desnecessários para a emergência e sem cuidar das condições de segurança de suas fábricas, e outras fecham, enviando as trabalhadoras e trabalhadores para suas casas com suspensões e demissões, mas todos igualmente confinados em quarentena.

Somente para mencionar as principais empresas do Estado espanhol, que conformam o Ibex350, consta que reportaram 47 bilhões de lucros no ano passado. Além da Telefônica, do Banco Santander e outras, entre elas se encontra a marca de Amancio Ortega. Monedero, em seu artigo, depois de descrever a barbárie que é preciso combater, diz que “as empresas não são o inimigo”. Somente com a lembrança de 2008, milhões de personas afirmariam que se não são o inimigo, se parecem bastante com ele. Por acaso é irracional sugerir que abram mão de uma parte de seus lucros, ainda que somente uma parte, quando a população tem que passar por penúrias inauditas?

Multipliquem esta mínima medida de emergência por todas as grandes corporações do mercado mundial. Se estamos indo para uma guerra, melhor estarmos equipados. Ninguém ganhou nenhuma batalha ficando em casa de braços cruzados.

Os leitos tampouco são suficientes, nem os espaços adequados para o isolamento dos pacientes. Mas as grandes e milionárias redes hoteleiras espanholas viram minguar suas reservas e despediram seus funcionários ou os enviaram para casa, aproveitando a quarentena, com um pagamento de 70% de seu salário, pelo qual o Estado é responsável.

No entanto, ainda que agora chorem as perdas que o coronavírus lhes causou e exijam que o Estado as resgate, segundo um informe de setembro de 2019, as 6 mil empresas hoteleiras espanholas somaram vendas de quase 20 bilhões de euros apenas em 2017. É hora de devolverem ao povo espanhol uma parte do que ganharam durante a última década de esplendor da exploração turística, usufruindo das belas paisagens, do clima agradável e da cultura do país.

Não é hora de que estas habitações sejam disponibilizadas – sem pagamento – para organizar as pessoas afetadas, atendendo a suas necessidades segundo os níveis de risco que apresentem? Não é urgente transformá-los em moradias transitórias para as 40 mil pessoas sem teto que há em todo o Estado espanhol?

Podem fazer isso aqui e no resto do mundo. Mas o governo espanhol prometeu desembolsar 117 bilhões de euros para fazer frente a esta crise e a maior parte deste dinheiro irá para os bolsos dos empresários por via direta ou indireta, com subsídios às fábricas que tiveram a produção interrompida pelas patronais, enquanto os de sempre voltam a enriquecer. E a mesma coisa acontece no resto dos países golpeados pela pandemia.

Ou tocamos os interesses deles agora ou sairemos desta crise, como das anteriores, com ricos mais ricos, pobres mais pobres, e, quiçá, milhões de mortos.

O vírus não tem passaporte

Diante de todo este desastre que nos transmitem pela televisão e compartilhamos pelas redes sociais, desde nossos confinamentos, as fronteiras demonstram mais do que nunca que, menos que a solução, são parte do problema. A pandemia se propaga com as fronteiras fechadas e os voos cancelados, não conhece impostos aduaneiros nem taxas de importação. O coronavírus não tem passaporte. Cada estado nacional resolvendo seus assuntos domésticos introduz mais caos ao caos e é um obstáculo à planificação.

Como em um loop de pesadelo, na União Europeia vemos os mesmos acontecimentos em cada país, com apenas dias de diferença. E agora, vemos como os países da América Latina entram nesta espiral macabra. O que acontecerá neste continente, com milhões de pessoas submersas na pobreza mais extrema, com seu sistema imune deprimido pela desnutrição e pelas condições precárias de vida?

Quanto falta para que se repita este sonho ruim na África, onde mais de 25 milhões de pessoas vivem com HIV, o que as torna parte da população de risco? O coronavírus afetará estes grupos da população sem lhes perguntar idade e as taxas de mortalidade poderiam disparar brutalmente.

Para milhões de latino-americanos e africanos, ficar em casa poderia piorar a situação ou, no melhor dos casos, não ter nenhuma relevância frente às extremas condições de risco em que vivem cotidianamente.

A classe trabalhadora pode resolver o caos criado pelos capitalistas

Como se vê, são muitas e diferentes as tarefas para fazer frente à pandemia. Mas têm algo em comum: para fabricar testes de coronavírus, máscaras, leitos hospitalares, respiradores artificiais ou novos hospitais, precisa-se de trabalhadoras e trabalhadores que não estejam confinados em suas casas, como hoje mesmo é o caso dos trabalhadores da saúde ou dos outros setores essenciais.

A esta altura da crise, todos os setores são essenciais se se reorganizam, sob o controle de seus trabalhadores que saberão estabelecer, democraticamente, um regime de licenças pagas para 100% dos que necessitem, jornadas reduzidas, rotatividade e medidas de segurança e higiene para cuidarem de si mesmos. Os capitalistas, pelo contrário, só dão mostras de pôr sua sede de lucro acima das necessidades coletivas. Os governos, por sua vez, defendem os interesses dos capitalistas, salvando empresas da quebra com fundos públicos ou exigindo que produzam o que se precisa mas para comprarem com dinheiro que depois será tirado da população com corte de benefícios e ajustes.

O que vemos nestes dias demonstra que, frente a uma crise como a que estamos atravessando, o confinamento indiscriminado da população contribui com mais caos para a situação. Muitos milhões de trabalhadoras e trabalhadores seguem sustentando o funcionamento precário do mundo durante esta pandemia na indústria alimentar, farmacêutica, nos serviços sanitários, coleta de lixo, limpeza, transporte, etc. muitos outros milhões, capazes de por em movimento esta extraordinária e enorme maquinaria da indústria química, automotriz, metalúrgica, têxtil e tantas outras que, transformadas poderiam colaborar na luta contra a pandemia, estão presos em suas casas.

Adestram seus cães armados para enfrentar rebeliões

O confinamento generalizado, imposto de forma repentina e sem estar integrado a um plano que contemple outras medidas e sem ter em conta a situação social de milhões, não resolve por si mesmo o problema. Para muitos trabalhadores significou que sua única saída neste caos seja demandar que o enviem para casa, ainda que para isso tenha que se resignar a ganhar uma ajuda estatal inferior a seu salário.

Contraditoriamente, agora que começa a ficar evidente que é necessário que milhões trabalhem para diminuir a propagação da pandemia e avançar aceleradamente na atenção e cura dos doentes, o Estado (que já conseguiu fortalecer suficientemente o consenso social para que as forças repressivas atuem contra os que se rebelam contra o confinamento, ainda que seja para passear com seu cão) poderá recorrer a toda a força de seu aparato punitivo e repressivo, se é necessário, para nos mandar trabalhar com a ponta da pistola.

Por isso, são eles ou nós e é agora. Se fica nas mãos deles, não poderemos esperar nenhuma solução para nossos padecimentos, senão que todo o contrário. E nem sequer estamos falando do que nos esperaria no futuro se não conseguimos tirar o mando desta guerra dos generais canalhas que preferem seus lucros de hoje sobre a vida de milhões que se arriscam a se infectarem com coronavírus. Os mesmos sobre os quais amanhã vão querer descarregar as consequências de suas empresas quebradas, com milhões de desempregados, sem teto e condenados à fome e à miséria.

O reforçamento atual dos aspectos punitivos do Estado é o preparativo indispensável dos capitalistas para as possíveis rebeliões geradas pela guerra que declararam contra nós. Porque o capitalismo é barbárie mais ou menos dissimulada em tempos saudáveis, mas abertamente escancarada quando as crises econômicas, sociais e políticas se aceleram pela quebra de uma companhia global de serviços financeiros, como em 2008, ou pela aparição de um coronavírus como em 2020.

Tomar o destino em nossas mãos

Que os progressismos e as esquerdas reformistas aceitem com resignação esta realidade, propondo paliativos como kits de higiene para distribuir aos sem teto, suspensão dos despejos enquanto dure a crise ou rendas universais de sobrevivência mínima, é pura demagogia miserável. Se a escolha frente à qual nos encontramos, como diz Monedero em seu artigo, é “socialismo ou barbárie”, as prescrições parecem bastante distantes do diagnóstico. Como se nos anunciassem uma doença terminal em fase aguda e nos receitassem um analgésico.

A concatenação dos acontecimentos conduz aceleradamente a uma encruzilhada de escala internacional: os governos seguirão priorizando o salvamento dos capitalistas às custas de nossas vidas ou as massas trabalhadoras vão impôr seu programa que, necessariamente, ataca os lucros e privilégios empresariais para salvar a humanidade destes estragos. Os utópicos reformadores do capital que sigam marcando seu passo com altissonantes discursos e ações impotentes, terminarão varridos da História, pelas massas fartas de padecerem tantos sofrimentos inauditos. Nossas vidas valem mais que os lucros deles.

Socialismo ou barbárie não é tão somente um diagnóstico. Hoje, mais do que nunca, é uma consigna para a ação.

Tradução: Francisco Marques.


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