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“Sobre a questão das raças”: trotskismo e questão negra em Cuba

Marcello Pablito

“Sobre a questão das raças”: trotskismo e questão negra em Cuba

Marcello Pablito

Passados 60 anos da revolução cubana e 79 anos do assassinato de Leon Trotski, publicamos em português um dos capítulos do programa do Partido Bolchevique Leninista (organização trotskista) sobre a questão negra em Cuba. Originalmente organizados desde 1931 como Oposição Comunista de Cuba, uma fração interna no Partido Comunista Cubano, os simpatizantes das ideias da Oposição de Esquerda se opunham à orientação ultraesquerdista conhecida como “classe contra classe” ou “terceiro período” adotada pela Internacional Comunista stalinizada em seu VI Congresso de 1928. Entre outras consequências desastrosas para a classe trabalhadora internacional, essa orientação aventureira vai permitir o avanço do fascismo através da figura de Hitler em 1933 na Alemanha.

Para além desses combates programáticos e estratégicos, os primeiros trotskistas cubanos tiveram um papel muito importante no processo revolucionário que se abre em 1933 (silenciado pelo stalinismo e o castrismo) e que culminará com a queda da ditadura de Gerardo Machado em agosto do mesmo ano. Como um dos fundadores e dirigentes da Oposição Comunista de Cuba (OCC), Sandalio Junco, padeiro e um dos poucos dirigentes negros do PC, tornou-se um de seus dirigentes mais destacados, sendo, posteriormente, assassinado em 1942 por agentes stalinistas.

Sandalio Junco

De acordo com Cláudia Ferri em “Breve história do trotskismo cubano” [1]:

“A OCC teve influência em organizações-chaves: em nível sindical, na Federação Operária de La Habana (FOH), onde Junco e outros trotskistas chegaram a ter peso na Mesa Executiva; em nível estudantil na Ala Izquierda Estudiantil (AIE) e, no campo democrático, na defesa dos presos políticos influenciando a organização de Defesa Obrera Internacional (DOI). Através dessa última, conseguiram se inserir, além de Havana, em outras regiões importantes, como Matanzas, Santiago de Cuba, Guantánamo e no norte da província de Oriente. Ao final de 1932, os membros da OCC foram expulsos do PC”.

Com poucas centenas de militantes, a partir de sua localização no FOH, os trotskistas cubanos fizeram um chamado à greve geral (logo após a greve iniciada em julho pelos trabalhadores dos transportes), que se iniciou com demandas sindicais e depois se converteu em uma greve política se opondo diretamente à ditadura de Machado.

“A OCC também dirigiu o Comitê de Greve de Guantánamo, zona localizada na região oriental e conhecida pelos altos níveis de exploração e pobreza no qual padeciam os trabalhadores. Segundo o historiador Rafael Soler, os trotskistas chegaram a ter centenas de militantes que dirigiram quarenta mil trabalhadores açucareiros armados com paus e machados (em sua esmagadora maioria, negros – grifos nossos).

Em setembro de 33 ocorreu a queda do governo de Machado, porém o descontentamento social continuava. Os trotskistas formaram o Partido Bolchevique Leninista (também em setembro) que interveio na realidade política cubana durante o governo nacionalista de Grau e Guiteras. Apesar de ter uma posição correta definindo Cuba como um país semicolonial, de ter uma política para os trabalhadores negros chamando-os a se incorporar na luta, de opor-se à política do stalinismo de “Socialismo em um só país” e de chamar uma Frente Única para enfrentar a burguesia e o imperialismo norte-americano (denunciando inclusive a negativa do PC); a forte repressão sofrida após o golpe de Batista fez com que a organização entrasse em uma profunda crise agravada pela ausência de uma direção homogênea que demonstrava sua debilidade estrutural. É preciso levar em conta que, nesse mesmo momento, o ciclo revolucionário se fechou devido ao fracasso da greve de 1935, na qual as forças do movimento operário atuaram divididas. Segundo Daniel Gaido e Constanza Valera, o PBL chegou a ter em 1934 entre seiscentos e oitocentos militantes.

Há 11 anos da crise de 2008, em que o capitalismo impõe degradações cada vez maiores às condições de vida das massas e, sobretudo, das massas negras, é particularmente valioso recuperar experiências como a do Partido Bolchevique Leninista que, com acertos e limites, desempenharam um importante papel no sentido de superar a política desastrosa e criminosa do stalinismo para as massas internacionalmente, e com as suas modestas forças dando sua contribuição para a conexão entre o marxismo revolucionário e as massas negras.

Publicamos a seguir o terceiro capítulo do programa do Partido Bolchevique Leninista cubano de 1933, no qual aborda-se a questão racial.

***

O marxismo demonstrou de maneira confiável que a exploração do homem pelo homem, o caráter de classe do Estado, os antagonismos sociais, as opressões violentas de uma classe por outra são as bases econômicas reais e positivas das desigualdades sociais. Isso significa, em outros termos, que as divisões existentes na sociedade não vêm de uma calculadora sistemática da teoria do deslocamento humano, mas sim como consequência do próprio desenvolvimento da evolução da humanidade. É nesse sentido que não pode haver divisão social “classista” da mesma. Os povos, entretanto, têm, cada um dentro do mesmo padrão fundamental da economia capitalista, peculiaridades específicas que os fazem confrontar questões étnicos e nacionais. Essas questões, cujas origens diferem entre si, não são tampouco ocasionados por motivos alheios ao desenvolvimento econômico e social do mundo.

Em um país onde um terço da população é negra e mestiça, a questão racial necessariamente tem que ser abordada e resolvida. A questão das raças oprimidas foi muito atacada na América Latina, das raças duplamente exploradas e oprimidas. Em Cuba não faltaram vozes que se levantaram para ignorar graciosamente a existência de uma questão racial no país, e também vozes de extrema esquerda, que elevaram ao quadrado o valor verbal e político da questão. Na América Latina, a questão racial surge em duas condições distintas: a questão indígena e a questão negra. O primeiro afeta a quase toda a América Latina enquanto o segundo é específico de Cuba, Antilhas, América Central e do Brasil.

Nos países do Caribe, o negro não é um elemento nativo, originário. Isso o diferencia enormemente do índio e o caracteriza de uma maneira peculiar, que quando toda a análise e estudo dessas questões devem começar. Não se pode dar soluções enxertadas ou extraídas de países estranhos porque não fariam mais que agudizar a questão e não resolvê-la. As origens do problema se perdem na história da Colonização espanhola. Merece um amplo estudo, que sem dúvida alguma os marxistas da América têm a obrigação de fazer. Se não houver uma explicação econômica e social da questão que se debate, o aventureirismo stalinista, que não hesitou em aumentar criminosamente a divisão racial, irá encontrar um apoio fictício para sua política.

Se, para o negro, a questão agrária é algo imposto por razões históricas, o mesmo não significa para o índio.

Para as raças indígenas, a colonização da América não representou outra coisa a não ser uma interrupção de sua evolução natural, que produziu efeitos retardadores em seu desenvolvimento. O marxista peruano José Carlos Mariátegui demonstrou como “os povos como o quéchua e o azteca, que tinham alcançado um avançado nível de organização social, retrocederam sob o regime colonial na condição de tribos agrícolas dispersas”. É que o índio é o elemento nativo da América Latina, primeiro subjugado pelos colonizadores e, depois que foi desalojado de suas terras, relegado a condição de párias. Entendendo a base da questão negra, nós afirmamos que não existe nem pode existir uma luta de raças, apenas a luta de classes. Não se pode, de modo algum, separar a questão negra do processo de emancipação social das massas trabalhadoras. As origens da questão negra em Cuba são encontradas no início do século XVI. Para o desenvolvimento da agricultura e sua melhor exploração naquela época de dominação feudal, era preciso utilizar a mão de obra escrava que faltava no país por causa da aniquilação das massas indígenas. Em virtude da necessidade de braços escravos é que tem lugar o vergonhoso tráfico de negros das costas da África até as regiões do Caribe. Milhares de escravos negros são jogados em Cuba, chegando ao extremo de se verificar que a população negra era numericamente superior à branca em censo demográfico realizado em meados do século XVIII. Durante todo um século desenvolveu-se lentamente o sistema de produção feudal, de exploração da terra, até que a introdução das máquinas de engenho e a importação e o cultivo da cana-de-açúcar motivaram uma “mudança lenta, porém altamente revolucionária”.

Aquela introdução das máquinas e sua aplicação parcial no cultivo da cana-de-açúcar foi deslocando sistematicamente milhares de negros escravos e os ligando a terra em caráter de trabalhadores assalariados. Não estudaremos as distintas fases da luta “antiescravista” sustentada pela Inglaterra contra a Espanha, que também foram em parte responsáveis pela eliminação da escravidão negra. Cuba, ao passar de uma colônia pecuária para uma colônia agrícola e após o avanço da técnica e o início da manufatura, aboliu a chamada escravidão negra e abriu uma nova característica na questão racial. As simplificações e o avanço do cultivo de cana foi deslocando grandes núcleos de negros, que não achavam trabalho no campo e iam reunindo-se nas cidades sob a proteção da servidão doméstica, o último vestígio da escravidão. Esse setor numerosíssimo da população negra, que começava a vegetar sob a aristocracia crioula, foi estabelecendo o chamado “parasitismo social” de um importante setor da raça.

Aqui já começa a emergir a questão negra, nas fases que a caracteriza em nossos dias, da seguinte maneira:

Um: O escravo que se emancipava em consequência do fim da exploração da cana por métodos de trabalho atrasados passava, no caráter de assalariado, a ligar-se à questão agrária, colocando-se na base da produção.

Dois: O escravo negro, que as mesmas causas emanciparam, juntamente com o restante dos escravos que eles substituíram, refugiaram-se nas cidades em servidão doméstica ou entraram nas fabricas como assalariados.

Dessa forma, um dos objetivos centrais, e que mais foi discutido pelo pensamento liberal burguês do século XIX, se constituiu na luta contra a escravidão. Os escravos colocados na base da exploração nos campos são hoje a grande massa negra, terrivelmente explorada nas plantações açucareiras, e submetidas ao jugo burguês imperialista. Os que emigraram para as cidades com a abolição da dominação espanhola viraram uns proletários explorados nas fábricas e outros, sem trabalho nem propriedades, em grandes massas sem classe, originando o “lumpemproletariado” de hoje.

É extremamente interessante o estudo das formas das quais se vale a burguesia nativa e o imperialismo para manter sob sua influência as massas negras. As lutas pela independência dos negros de Cuba estão repletas de participação dos negros, ao ponto que, sem sua intervenção, não haveria florescido nenhuma insurreição nesse país. A BURGUESIA SE VALE DEMAGOGICAMENTE DESSA PARTICIPAÇÃO NAS LUTAS INSURRECIONAIS PARA APROFUNDAR SUA DOMINAÇÃO DAS MASSAS NEGRAS EM CUBA, E POR NÃO TER OBTIDO NADA DE POSITIVO DELAS. O negro foi na ilha, durante os anos de dominação espanhola, um elemento revolucionário capaz, sempre na vanguarda da luta. Utilizado, às vezes pelos latifundiários e outras pelos burgueses, foram o nervo da luta revolucionaria em 1868 e 1895. No final, acabaram em condições idênticas.

Qual a situação atual das massas negras e qual sua composição social? Encontramos em número muito escasso negros burgueses ou latifundiários burgueses. Formam as fileiras da classe trabalhadora, quase todos na seguinte relação:

As massas negras ligadas à questão agrária estão profundamente vinculadas ao processo de revolução agrária.
Um numeroso proletariado negro urbano: que sofre a discriminação burguesa imperialista e é colocado em conjunto com o restante do proletariado na frente da evolução. Não pode haver divisão nenhuma a esse respeito.
Mesmo assim, existem numerosas raças negras, sem classe social, que formam o lumpemproletariado e nas quais a burguesia se apoia para a realização da sua política. Mergulhadas em uma ignorância secular, embrutecidas, vivem como parasitas, como agentes políticos da burguesia e constituem bases fortes da reação imperialista, extraídas das mais baixas camadas sociais.

Nós concordamos que o triunfo do proletariado será o único que garantirá um verdadeiro fim para a opressão racial. Nós proclamamos os direitos das massas negras, como parte dos direitos do proletariado em geral, ainda quando admitimos a existência de uma cultura racial negra, sem que isso implique uma “autodeterminação”, que em Cuba não é necessário propor. As tentativas de discriminação foram aplicadas em determinados setores da indústria em Cuba, especialmente aqueles onde quem detêm o poder é o imperialismo. Essa manifestação “chauvinista” deve ser combatida sem piedade, não incorrendo por isso em um aumento da luta de raças mas sim liquidando-a sobre a base da luta de classes. A ignorância a que se encontram submetidas vastas massas negras faz com que consideráveis setores dela se encontrem demagogicamente ao lado da reação. É necessário atrair as massas negras aos nossos sindicatos, às lutas anti-imperialistas, a fim de atraí-las para a luta do proletariado e campesinato, pois ainda não compreenderam que seus interesses são os mesmos do proletariado, em luta franca contra o imperialismo e seus agentes nacionais.

A teoria irresponsável do stalinismo, que propõe em Cuba a livre determinação dos negros do Oriente, tem que ser combatida de maneira implacável, demonstrando todo o seu conteúdo criminoso e demagógico. Não é correto que a autodeterminação dos negros seja a solução para a questão racial. Os direitos das massas trabalhadoras em geral se manifestam através da luta pelo fim do capitalismo. O negro, considerado elemento explorado pelo atual regime social, deve lutar vigorosamente como trabalhador pela extinção desse sistema nocivo. Nas regiões de Cuba onde a população negra é majoritária, essa se expressará revolucionariamente através do poder dos sovietes, sempre como proletariado que recolhe toda a vontade das classes oprimidas através de seus órgãos de dominação. É daí que se vê com toda a nitidez o caráter falso e profundamente demagógico da consigna proposta. O stalinismo, ao fomentar as diferenças raciais, cava a sua própria tumba. Essa consigna, que em alguns lugares da ilha foi levada a uma grosseria tal que levou as diferenças a uma situação violenta, só conduzirá o proletariado negro à ruína, a massacres e mortes. É uma provocação stalinista que todos os trabalhadores pagarão muito caro. O dever principal dos bolcheviques leninistas é desmascarar de uma maneira implacável e condenar à vergonha proletária todo esse oportunismo miserável e traidor, que só trata de especular com as questões mais fundamentais e precisas da revolução.


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FOOTNOTES

[1As demais citações desta Introdução foram retiradas do artigo de Ferri
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Marcello Pablito

Trabalhador da USP e membro da Secretaria de Negras, Negros e Combate ao Racismo do Sintusp.
Trabalhador da USP e membro da Secretaria de Negras, Negros e Combate ao Racismo do Sintusp.
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