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Sobre a Ford e questões da economia nacional

Simón J. Neves

Sobre a Ford e questões da economia nacional

Simón J. Neves

A questão do fechamento da Ford brasileira não pode ser entendida apenas nas discussões sobre subsídios como falou Bolsonaro. É parte de um processo amplo de reorganização da economia brasileira, no marco do capitalismo internacional e do neoliberalismo que vigora desde os anos 1980.

No último dia 11/1, a Ford anunciou que fecharia suas últimas três fábricas no Brasil, e terminaria a produção de veículos no país. Com o fechamento das plantas de Camaçari (BA), Taubaté (SP) e Horizonte (CE), serão perdidos no mínimo, 15 mil empregos diretos e indiretos. Isto ocorre no marco do fechamento de outras fábricas da Ford recentemente, como a de São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, em 2019.

A montadora americana citou como principais razões para a decisão a “crise econômica desde 2013” e a “pressão adicional da pandemia”. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) aproveitou a oportunidade para afirmar que falta competividade a indústria brasileira e pedir a aprovação da Reforma Tributária. O Ministério da Economia, apesar de lamentar a decisão da Ford, também ressaltou a importância das mal chamadas “reformas estruturais” para o reduzir o “Custo Brasil”. Se vê que, mesmo com a declaração de Bolsonaro atacando a Ford, o governo federal e as grandes indústrias estão unificadas para demitir os trabalhadores e atacar seus direitos.

A questão da competitividade

A saída da Ford do país, e a manutenção de suas fábricas na Argentina e no Uruguai, de onde se exportarão veículos para o país, reacendeu a discussão sobre a competitividade da indústria brasileira e o processo de desindustrialização pelo qual o país passa nas últimas décadas. Economistas de diversas vertentes interferem no debate, desde liberais que se opõem a qualquer tipo de proteção à indústria a desenvolvimentistas, que apoiam a intervenção estatal para a industrialização. Neste meio, é importante lembrar que apenas o setor automotivo recebeu cerca de R$ 69 bilhões em incentivos públicos, como parte das centenas de bilhões que a indústria e outros setores receberam em isenções de impostos, desoneração da folha de pagamentos, subsídios no preço da energia e no custo de empréstimos etc.

Para se entender a competitividade, no entanto, há que se voltar para o panorama internacional do neoliberalismo, que gerou profundas mudanças na organização econômica internacional em relação ao chamado “período desenvolvimentista” no Brasil do pós-guerra, quando diversas multinacionais estrangeiras se instalaram no país e em outros países do terceiro mundo. A partir dos anos 1990 é que o neoliberalismo penetra com mais força no Brasil e se acelera a desindustrialização.

Em 2019 a manufatura representou 9,44% do PIB brasileiro. Em 1994, eram 23,2% e chegou a ser de 31% em 1982. O período dos anos 1980 e 1990 é marcado pela abertura comercial dos países, com a assinatura de tratados de livre-comércio como o NAFTA e o Mercosul, além da própria eliminação de barreiras tarifárias e não-tarifárias nos países. A tarifa nominal média de importação, no Brasil, passou de 40%, em 1990, para 13% em 1995. Somado a isso, as tecnologias de telecomunicações e de transportes tornaram extremamente fácil e barato o fluxo de capitais para onde fosse mais lucrativo e onde se pudesse explorar mais o trabalho.

Tais transformações econômicas se inserem no contexto político da restauração capitalista no bloco soviético e do fechamento do período de ascenso da luta de classes aberto em 1968, e onde os dois principais propagadores do neoliberalismo, Ronald Reagan nos Estados Unidos e Margaret Thatcher na Inglaterra, levaram a frente seus programas após derrotar importantes lutas operárias em seus países. No Brasil, a transição pactuada da ditadura, após as fortes greves no ABC, a cooptação do PT pela institucionalidade e a derrota da forte greve dos petroleiros de 1995, com a ocupação militar de refinarias, abriram caminho para a implantação do neoliberalismo.

A abertura econômica, através da diminuição, se inicia no governo de Collor. No entanto, a partir do Plano Real, em 1994, há um salto de qualidade. Para combater a hiperinflação crônica, o governo brasileiro implementa uma âncora cambial, baseada na paridade entre o real e o dólar. Dessa maneira, uma das formas usadas para combater a inflação foi permitir a entrada de diversos produtos estrangeiros baratos no país, com os quais a indústria já instalada era incapaz de competir. Entre 1994 e 2002, ou seja, entre o lançamento do Plano Real e o fim do governo de FHC, a participação da manufatura no PIB caiu de 23,2% para 12,6%.

Os governos petistas continuaram a política de utilizar o real apreciado como meio de controlar a inflação, ainda que não mais com paridade em relação ao dólar. Para isso, se aproveitaram do superciclo das commodities da primeira década dos anos 2000 e da enxurrada de capitais estrangeiros que vieram ao Brasil atraídos pelas altas taxas de juros, outra herança da era FHC. Aprofundou-se a dependência brasileira do agronegócio para a entrada de divisas, sendo importante ressaltar que parte dessa manufatura que foi citada é parte também do agronegócio, e da extração mineral, principalmente de minério de ferro e petróleo.

Neste contexto de desindustrialização de alguns países latino-americanos e também de países desenvolvidos é que se industrializam regiões como o Sudeste Asiático, a China, e também as maquiladoras do México. Com a maior mobilidade dos capitais, estes buscaram locais onde houvesse maiores vantagens, como salários mais baixos, menor organização sindical, maior produtividade do trabalho etc.

Nesta configuração, o Brasil se especializou na produção e exportação de produtos primários, agrários e minerais, principalmente a soja, responsável por grande parte das exportações brasileiras, tendo a China como grande mercado consumidor.

O mercado automobilístico no Brasil

No caso específico da Ford, é preciso ver as condições em que estão o mercado automobilístico brasileiro. A indústria automobilística foi uma indústria símbolo da industrialização por substituição de importações dos anos 1950 e 1960, e moldou o desenvolvimento nacional na escolha pela construção de estradas ao invés de ferrovias, de maneira a incentivar a compra de carros. O carro voltou a ser um símbolo durante os governos petistas, quando o aumento da renda ampliou a compra de veículos por novos setores da sociedade.

O pico da venda de automóveis no Brasil foi em 2012. Segundo dados da Associação Nacional de Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea), em 2012 foram licenciados 3,8 milhões de veículos no país, incluindo caminhões e ônibus, sendo 20,73% destes importados. Com 3,4 milhões de veículos produzidos, a exportação do setor em 2012 foi de US$ 14,6 bilhões.

Em 2020, foram 2,05 milhões de veículos licenciados (24% a menos que em 2019), com 10,3% de importados. Foram 2,01 milhões de veículos produzidos (32% menos que 2019), e exportações no valor de US$ 7,4 bilhões (25% menos que 2019). O setor empregava 120,5 mil pessoas em dezembro de 2020, contra 151,6 mil pessoas em dezembro de 2012. É, portanto, um recuo importante no setor neste último período.

Isto decorre da crise econômica pela qual passa o Brasil neste período, com o aumento do desemprego e a queda da renda, após o período de aumento do consumo durante o boom das commodities no governo petista. Dessa maneira, a decisão de comprar um carro, que envolve uma grande soma de dinheiro e financiamentos, cujas condições se deterioraram no período, ficou mais difícil.

Neste cenário é que está inserida a Ford brasileira. O ramo financeiro da empresa, chamado Banco Ford, apresentou lucro líquido de R$ 13,3 milhões no primeiro semestre de 2020, e de R$ 19,7 milhões no ano de 2019. A Ford Motors internacional, ao final de 2019, distribuiu US$ 2,6 bilhões (cerca de R$ 13,8 bilhões, na cotação atual) para seus acionistas, apesar da queda da receita em relação ao ano de 2018. Alguns dos principais acionistas da Ford são os fundos de investimento State Street, VanguardGroup e BlackRock.

No terceiro trimestre de 2020, em meio a pandemia, o lucro da Ford internacional foi de US$ 2,4 bilhões, seis vezes maior que no mesmo trimestre de 2019. A América do Sul representou apenas US$ 1,6 bilhão dos mais de US$ 82 bilhões da receita total da empresa, ficando atrás da China e muito atrás dos principais mercados da empresa, que são a América do Norte e a Europa. Em 2019, a América do Sul representou US$ 3,9 bilhões de receita para a Ford, perante US$ 3,6 bilhões da China.

Portanto, o mercado automobilístico passa por dificuldades também a nível internacional, como parte da crise econômica de 2008, que nunca foi resolvida, e também da forte crise que estourou com a pandemia do novo coronavírus. No entanto, é fundamental notar que a Ford segue tendo lucros bilionários, distribuídos entre seus acionistas, e que seu caixa atingiu US$ 24,2 bilhões ao final do terceiro trimestre de 2020, contra US$ 17,5 bilhões ao fim de 2019.

A Ford segue, então, a lógica do capitalismo: maximizar seu lucro. Se os bilhões atuais não são suficientes, serão sacrificados milhares de empregos no Brasil para saciar a sede de lucro dos acionistas da Ford pelo mundo. É parte da reestruturação produtiva da empresa, que se volta para outros modelos que não são produzidos no país, e também para outros mercados.

Que caminho seguir?

A Ford anuncia o fechamento das fábricas depois da Reforma Trabalhista e da Reforma da Previdência que, segundo seus defensores, trariam mais investimentos e mais empregos para o país. Vem na esteira, também, da MP 936 de Bolsonaro, que permitia a diminuição ou mesmo suspensão de salários. Todas estas medidas foram apoiadas pela justiça, que também foi parte de garantir os ataques aos trabalhadores dos Correios, que fizeram uma importante greve em 2020.

Não pode haver, portanto, nenhuma confiança na justiça ou no governo de que eles poderiam reverter esta situação em favor dos trabalhadores. Como foi explicado, essa movimentação da Ford é parte de uma tendência histórica nacional e internacional que só pode ser revertida a partir da luta da classe trabalhadora, inclusive neste caso específico.

Por isso, o primeiro passo é que exista um verdadeiro plano de lutas nacional a partir dos sindicatos da Ford, mas também a partir das principais centrais sindicais do país, especialmente CUT e CTB, dirigidas por PT e PCdoB, respectivamente. Este plano teria que unificar os trabalhadores da Ford com outras categorias em uma só luta, como por exemplo os bancários, depois que o Banco do Brasil anunciou 5 mil demissões. Somente uma frente única operária, que unifique e envolva a potente classe trabalhadora tanto da Ford como de outros setores, pode dar uma saída de fundo e evitar que famílias inteiras sejam jogadas nas ruas pela ganância capitalista. As centrais sindicais, que se limitam à regatear melhores condições para a demissão, devem romper imediatamente a conciliação e passividade.

A partir disso, as fábricas da Ford devem ser entregues aqueles que realmente à fazem funcionar: seus trabalhadores. A gestão da fábrica sob controle operário, sem patrões, poderia não só garantir os empregos como, a partir de discussões entre os trabalhadores, reconverter a fábrica para que ela seja capaz de produzir cilindros de oxigênio e respiradores para combater a pandemia, que neste momento gera cenas absurdas como as que vemos em Manaus.

Existem exemplo históricos de que isso é possível. A Madygraf é uma indústria gráfica na Zona Norte de Buenos Aires, na Argentina, e é há muitos anos gerida pelos seus trabalhadores, depois que foi tomada da multinacional Donelley. Durante a pandemia, produziram frascos de álcool gel para serem distribuídos na região. Outro exemplo é o da cerâmica Zanon, em Neuquén, também na Argentina. Ocupada durante a crise de 2001, quando seu antigo dono decidiu fechar a fábrica, ainda hoje funciona sob controle dos trabalhadores.

Por isso que há que se ressaltar que somente a luta dos trabalhadores, contra a Ford, mas também contra o Bolsonaro e o governos, que estão juntos dela em precarizar as condições de vida dos trabalhadores, oferece uma saída para que se mantenham os empregos e para que se possa ir por muito mais.

Referências

Relatórios contábeis Banco Ford S.A. primeiro semestre 2020. Disponível em: https://s3.glbimg.com/v1/AUTH_63b422c2caee4269b8b34177e8876b93/valorri-uploads/bs/2020/9/d/IMT5VrR9W75195PiPmxg/balanco-banco-ford-s.a..pdf
Consultado em 16/01/2020

Ford 3Q 2020 Earnings Press Release

Ford 3Q 2019 Earnings Press Release

Ford 4Q 2019 Earnings Press Release

Ford. Notice of 2020 Virtual Annual Meeting of Shareholders and Proxy Statement.

ANFAVEA. Séries mensais de exportações de valor por setores (autoveículos; máquinas agrícolas e rodoviárias). Dezembro de 2020.


. Séries mensais de autoveículos por segmentos (automóveis, comerciais leves, caminhões, ônibus, total) de produção. Dezembro de 2020.


. Séries mensais do número de empregos por setores (autoveículos; máquinas agrícolas e rodoviárias). Dezembro de 2020.

COGGIOLA, Osvaldo. De FHC a Bolsonaro: Elementos para uma história econômico-política do Brasil (1979-2019). São Paulo: LiberArs, 2019.


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