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Rússia: das sanções ao colapso?

Michael Roberts

Rússia: das sanções ao colapso?

Michael Roberts

Nota do tradutor: Michael Roberts, economista marxista radicado em Londres, publicou esse artigo no dia 27 de fevereiro, alguns dias após a ofensiva militar russa em território ucraniano. Algumas considerações colocadas como hipótese já se efetivaram, como o congelamento das reservas russas no exterior. No entanto, os elementos fundamentais para análise das contradições da economia russa encontram-se muito presentes, impactando diretamente a classe trabalhadora russa que acabou sendo espremida entre os interesses da burguesia imperialista da OTAN e dos assim chamados “oligarcas”, que não são nada além de burgueses, herdeiros da antiga burocracia stalinista que realizou a transição para a economia capitalista. Esperamos com esse texto elucidar, desde uma perspectiva marxista, como a guerra econômica corre por baixo do conflito militar.

A guerra econômica entre a OTAN (liderada pelos EUA) e a Rússia está aquecendo a guerra real na própria Ucrânia. Em resposta à invasão da Ucrânia pela Rússia, os EUA e a Europa subiram o tom ao impor sanções econômicas. A primeira delas foi a suspensão das transações de vários bancos importantes da Rússia, incluindo os dois maiores, o Sberbank e o VTB. Contudo, foi significativo que as sanções excluíssem o Gazprombank, o maior credor russo a empresas exportadoras de energia. Claramente, o Ocidente não quer perturbar as exportações de petróleo e gás através de sanções, já que só a Alemanha depende em 40% da sua energia das importações russas.

Como consequência, o pacote de sanções da OTAN tem exceções substanciais. Mais notadamente, embora sancione as principais instituições financeiras russas, isenta certas transações com essas instituições relacionadas com a energia e os produtos agrícolas, que representam quase dois terços do total das exportações. A Itália teve sucesso ao pressionar para banir as exportações de bolsas italianas Gucci aos ricos da Rússia, o que é muito significativo!

Agora, a líder da UE Von der Leyen e Biden na Casa Branca fizeram a seguinte declaração: "trabalharemos para proibir os oligarcas russos de utilizarem os seus ativos financeiros nos nossos mercados". Biden diz que os EUA irão "limitar a venda de cidadania - os chamados passaportes de ouro - que permitem que os russos ricos ligados ao governo russo se tornem cidadãos dos nossos países e tenham acesso aos nossos sistemas financeiros". A UE e os EUA estão lançando uma força-tarefa para "identificar, caçar e congelar os ativos das empresas e oligarcas russas sancionadas, os seus iates, as suas mansões, e quaisquer ganhos ilícitos que consigamos encontrar e congelar".

Não se deve ignorar a ironia e a hipocrisia destas medidas propostas. Durante décadas, os governos ocidentais têm tido o prazer de aceitar este "dinheiro sujo" e mesmo permitir que os oligarcas ganhem cidadania e privilégios especiais para exercer influência na política dos seus países a fim de reforçar os partidos pró-capitalistas. Agora estes privilégios devem ser retirados (veremos quão longe isso vai).

Os super-ricos da Rússia (incluindo Putin) aumentaram massivamente sua riqueza durante a pandemia de COVID. Os bilionários da Rússia (chamados de "oligarcas" no Ocidente) têm a maior quota de riqueza em relação ao PIB de todas as grandes economias capitalistas, seguidos de perto pela “social-democrata” Suécia, e depois pelos EUA.

Os super-ricos aumentaram suas riquezas durante a pandemia
Riqueza dos bilionários como % do PIB

Como outros bilionários, a Rússia exporta e esconde a sua riqueza em paraísos fiscais, além de obrigar bancos suíços e outros bancos a comprarem propriedades e ativos no estrangeiro. A sua riqueza "offshore" é muito maior do que a de outros grupos bilionários.

As proibições de exportações e comércio em geral, a suspensão das transações com certos bancos, e a retirada de alguns privilégios para os oligarcas russos terão pouco efeito na Rússia. O comércio de energia deve continuar, com a Rússia fornecendo de 25% a 30% das necessidades energéticas europeias. E a Rússia já não depende de financiamento externo. O excedente da balança corrente da Rússia aumentou de menos de 2% do PIB em 2014 para cerca de 9% do PIB em 2021, deixando um saldo em poupança importante que pode ser aproveitado caso necessário. O setor público em geral, incluindo o Banco Central da Rússia (CBR), o setor empresarial e o setor financeiro são credores externos líquidos. O CBR tem mais de 630 bilhões de dólares em reservas, o suficiente para apoiar 3/4 da oferta monetária interna, o que dispensa a necessidade de imprimir rublos para financiar a atividade econômica. Além disso, a Rússia tem um fundo soberano de riqueza de 250 bilhões de dólares, que, embora relativamente insolvente, poderia ser reduzido para reforçar os meios de troca.

O governo e as empresas russas prepararam-se para possíveis choques futuros como a perda do acesso a moeda norte-americana, a utilização do dólar americano em transações comerciais e financeiras já diminuiu acentuadamente. O Ministério das Finanças já não detém quaisquer ativos baseados em USD no seu fundo petrolífero e a RBC também reduziu para metade a quota do USD nas suas reservas, cerca de 20%; uma vez que o euro, e em menor medida o renminbi chinês, se tornaram alternativas atrativas. Muitas empresas e bancos russos incluem agora cláusulas em contratos que estipulam a utilização de outra moeda para liquidação no caso do USD não poder ser utilizado. A Rússia também acelerou a utilização dos seus próprios cartões de pagamento, como o Mir, bem como do seu próprio sistema de mensagens SWIFT para transferência de mensagens financeiras. No entanto, ambos operam atualmente apenas a nível doméstico, deixando as transações internacionais em outras moedas vulneráveis.

É por isso que os governos dos EUA e da Europa decidiram agora introduzir sanções muito mais graves. Planejam agora expulsar os bancos russos do sistema de transações internacionais SWIFT e congelar os ativos do banco central russo. A expulsão do SWIFT irá complicar fortemente a capacidade dos bancos russos para realizarem atividades internacionais. Serão forçados a utilizar acordos bilaterais com bancos "amigáveis", ou tecnologia antiga como o fax.

A extensão global do SWIFT

Isso poderia ameaçar as transações bancárias e comerciais da Europa, ainda mais se o negociador russo Gazprombank for também removido do SWIFT (o que ainda não ocorreu).

A medida mais séria é a proposta de congelamento dos ativos em dólares do banco central russo [1]. Isto nunca tinha acontecido antes em um Estado-membro do G20. Apenas a Venezuela, a Coreia do Norte e os Bancos Centrais do Irã sofreram com essa medida. Se acontecer, significaria que as reservas cambiais russas em dólares não poderiam de modo algum ser utilizadas para apoiar o rublo nos mercados cambiais internacionais ou para sustentar o financiamento em dólares dos bancos comerciais nacionais. O governo teria de depender do financiamento do rublo (e o rublo está em queda livre nos mercados monetários mundiais) e de moedas não fiduciárias, como o ouro.

Distribuição geográfica das reservas externas e de ouro dos bancos russos

A maior parte das reservas cambiais da Rússia são detidas nos bancos centrais ocidentais. A Rússia tem cerca de 23% das suas reservas em ouro, mas não é claro onde estas são fisicamente detidas. Se esta sanção proposta for aplicada, poderá prejudicar seriamente os fluxos monetários e o rublo russo, causando uma inflação acelerada, prejudicando inclusive os bancos.

Há também sanções de “queima lenta” sobre o acesso da Rússia a tecnologias-chave. Os EUA pretendem cortar o abastecimento global de chips à Rússia. A medida corta o fornecimento dos principais grupos norte-americanos, como a Intel e a Nvidia. A Taiwan Semiconductor Manufacturing Company, o maior fabricante mundial de chips, que controla mais de metade do mercado global de chips feitos por encomenda, também se comprometeu a cumprir integralmente estas novas restrições de exportação. Agora é efetivamente negado à Rússia o acesso a semicondutores de alta gama e a outras importações de tecnologia crítica para o seu avanço militar. No entanto, é possível que as empresas chinesas, especialmente aquelas que têm sido alvo de sanções dos EUA, possam ajudar a Rússia a contornar as restrições de exportação. A Huawei, por exemplo, poderia intervir para desenvolver o mercado russo de equipamento de telecomunicações.

Em suma, a invasão de Putin à Ucrânia gera um grande risco de que, se não conseguir "neutralizar" a Ucrânia e forçar um acordo internacional à OTAN, a economia russa será seriamente enfraquecida. E a Rússia não é uma superpotência, econômica ou politicamente. A sua riqueza total (incluindo a mão-de-obra e os recursos naturais) é muito inferior à dos EUA e do G7.

Riqueza per capita em 2018

O colapso da União Soviética em 1990 foi seguido por Ieltsin e pelo governo pró-capitalista que aceitou as políticas de "terapia de choque" dos economistas ocidentais para privatizar os bens do Estado e desmantelar os serviços públicos e o sistema de seguridade social. Uma pequena elite, principalmente ex-funcionários do governo soviético, conseguiu comprar bens estatais massivos em energia e minerais a baixo custo, através de suborno e de violência. Os oligarcas da Rússia emergiram, juntamente com um regime cada vez mais autocrático personificado por Putin. O PIB da Rússia despencou e o nível de vida médio caiu drasticamente. A economia capitalista russa acabou se recuperando com o boom global dos preços das commodities após 1998, mas em 2014, o crescimento médio anual do PIB da Rússia era ainda de apenas 1,0%.

A expectativa de vida na Rússia capitalista tem sido superada pela China

E quando olhamos para o Índice de Desenvolvimento Humano do Banco Mundial, que mede dimensões-chave do desenvolvimento humano (uma vida longa e saudável, nível de escolaridade e ter um padrão de vida decente), verificamos que desde 1990 a Rússia tem tido piores resultados entre as principais economias emergentes e em comparação com a média mundial.

A economia russa é um samba “de uma nota só”, apoiando-se principalmente nas exportações de energia e recursos naturais. Após um curto boom dos preços crescentes de energia entre 1998 e 2010, a economia praticamente estagnou. Embora a economia russa seja maior do que era em 2014 em termos reais, a demanda interna final ainda se encontra no seu nível anterior a 2014. E o crescimento acumulado do PIB durante este período foi apenas positivo porque as exportações foram 17% mais elevadas em termos reais em 2019 do que em 2014. O estoque de capital da Rússia é ainda menor em termos reais em comparação com 1990, e a rentabilidade média desse capital permanece muito baixa.

Rússia: estoque de capital em preços constantes (1990=100)

O Banco Mundial calcula que a taxa de crescimento potencial a longo prazo do PIB real da Rússia é de apenas 1,8% por ano - e mesmo isso é maior do que na última década. Esta guerra vai ser custosa para a Rússia e seu povo. A Oxford Economics calcula que significará menos 1% por ano de crescimento real do PIB ao longo dos próximos anos. Se isso acontecer, basicamente a Rússia estará em recessão econômica durante vários anos.

Naturalmente, depende muito de como a guerra irá se desenvolver. Se Putin conseguir ganhar o controle da Ucrânia, isso abrirá riquezas significativas a serem exploradas. A Ucrânia é rica em recursos naturais, particularmente em depósitos minerais. Possui as maiores reservas mundiais de minério de ferro de qualidade comercial - 30 mil milhões de toneladas de minério ou cerca de um quinto das reservas globais. A Ucrânia ocupa o segundo lugar em termos de reservas conhecidas de gás natural na Europa, que hoje em dia permanecem em grande parte inexploradas. A grande planície ucraniana e a composição do solo de alta qualidade fazem do país um grande ator agrícola regional. O país é o quinto maior exportador mundial de trigo e o maior exportador mundial de óleos de sementes como o girassol e a canola. A extração de carvão, os produtos químicos, os produtos mecânicos (aviões, turbinas, locomotivas e tratores) e a construção naval são também setores importantes da economia ucraniana.

Tudo isto ainda permanece sem ter sido plenamente explorado. A UE e os EUA também têm crescido os olhos na possibilidade de obter esses recursos. Como mostrei no meu último artigo, o governo ucraniano planejava vender grandes quantidades de terra a investidores estrangeiros e nacionais para serem exploradas. Isso poderia trazer enormes dividendos a qualquer grupo que controle o país. Seja como for, uma vez terminada a guerra e depois de milhares de mortos ou feridos, o povo ucraniano verá pouco benefício nos resultados.

Original disponível em: https://thenextrecession.wordpress.com/author/bobmckee/

Traduzido por: Caio Silva Melo


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FOOTNOTES

[1medida que se efetivou no final de fevereiro, NdT
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