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SEMANÁRIO

Reflexões sobre a “guerra comercial”, a economia mundial e suas derivações latino-americanas

Paula Bach

Tradução de Francisco Marques.
Imagem de Juan Atacho.

Reflexões sobre a “guerra comercial”, a economia mundial e suas derivações latino-americanas

Paula Bach

O crescente conflito sino-estadunidense: causa ou consequência da crise econômica mundial? Sobre os verdadeiros fundamentos que subjazem à “guerra comercial”. Significado da trégua e em que medida poderia reverter as tendências da economia. Fim de ciclo, tensões sino-estadunidenses e luta de classes na América Latina. Uma polêmica com Jorge Castro.
Parte dos conceitos desenvolvidos neste artigo estão expressos em minha recente intervenção em uma conversa-debate na Faculdade de Ciências Econômicas em que compus a mesa junto a Ariel Slipak e Guido Lapa, intitulada “Guerra comercial e implicâncias na América Latina”.

“Guerra comercial”: causa da crise econômica mundial?

Em um artigo de algumas semanas atrás, o colunista do Clarín [um dos principais jornais da Argentina – nota do tradutor], Jorge Castro, afirmava: “o acordo Trump/Xi Jinping termina com a crise global”. O que mais interessa ressaltar desta afirmação é a ideia − bastante difundida, por certo − de que a crise global é a consequência do aumento das tensões entre os Estados Unidos e a China ou da chamada “guerra comercial”. Mas na realidade, as coisas são ao contrário: a crise global é a causa e não a consequência da crescente conflitividade sino-estadunidense. Apagar a crise estrutural e o semiestancamento que o capitalismo arrasta desde o início da recuperação pós-estouro 2008/9 e colocar Trump como uma espécie de demônio responsável do mal manejo da relação com a China é a chave de uma operação − da qual o FMI é parte − que busca apagar a debilidade estrutural da economia mundial que leva mais de uma década.

Mas tanto o próprio Trump como as tensões sino-estadunidenses aumentadas representam um subproduto da debilidade da economia global pós-2008/9, que em termos econômicos estruturais se manifesta fundamentalmente por meio de quatro variáveis. A primeira, a debilidade do crescimento da economia mundial, a segunda, a debilidade do investimento, a terceira, o crescimento débil do comércio mundial e a quarta, a debilidade do crescimento da produtividade do trabalho. A debilidade do investimento, como motor impulsionador da economia, representa a emergência que mais preocupa o conjunto do mainstream. Ainda que suas causas sejam tema de discussão, tudo indica que a impossibilidade de gerar um novo “boom” como o das “ponto com” nos anos 90 ou o imobiliário nos 2000, esteja associada à ausência de espaço, em termos literais e figurados, para novos investimentos suficientemente lucrativos. Sem lugar para desenvolver este tema aqui, vale a pena lembrar que o economista norte-americano Alvin Hansen distinguia entre as “pequenas recuperações”, que emergem como consequência da necessidade de substituição do capital, e “uma recuperação completa”, que requer um grande desembolso de capital em novos investimentos que por sua vez exigem o desenvolvimento de novas indústrias e novas técnicas. a taxa futura de benefícios − ou de lucro, em termos marxistas − para novos investimentos constituía o princípio ativo e dominante para estes dois tipos de recuperações. Existe evidência de sobra que faz supor que − apesar dos extraordinários avanços no terreno tecnológico e a estendida propaganda sobre a chegada de uma “quarta revolução industrial”− a dinâmica de “uma recuperação completa” baseada em uma “adequada” taxa de lucro futura, é o que está falhando na atualidade. E, como assinalaremos algumas linhas abaixo, as complicações na relação sino-estadunidense, parecem ter muito a ver com isto.

Para dar conta da relação causal entre a crise global e as tensões sino-estadunidenses, é preciso assinalar que o período pós-2008/9 possui, apesar do denominador comum da debilidade econômica geral e seus múltiplos episódios internos, dois ciclos marcadamente diferentes. O primeiro deles é o que se desenvolveu entre o início da recuperação no ano 2010 até aproximadamente os anos 2013/4. O segundo, o que se estende desde estes anos até a atualidade. Esse segundo ciclo teve como origem o menor crescimento da economia da China − conjuntamente com o início da intenção estadunidense de elevar as taxas de juros. Precisamente os dois elementos que haviam impulsionado a ainda débil recuperação econômica. Este segundo ciclo marcou um ponto de inflexão que coincide com o ascenso de Xi Jinping ao poder e o fortalecimento do nacionalismo chinês.

Mas o que explica a menor fortaleza da economia da China? A própria debilidade da economia mundial − e a dos Estados Unidos em particular − emerge como um elemento significativo que impede a China de sustentar seu ritmo de crescimento centrado no “esquema exportador”. Esquema que, lembremos, mantinha a relação simbiótica com os Estados Unidos particularmente fortalecida desde a entrada da China à OMC no ano de 2001. Esta contradição é a que impulsiona a China para um complexo e tortuoso giro ao mercado interno, para uma complicada e contraditória política de liberalização do yuan [moeda chinesa – nota do tradutor], assim como para a necessidade de acelerar a mudança no conteúdo de sua produção e a de competir mais agressivamente pelos espaços mundiais de acumulação de capital − ou exportação de capitais − e áreas de influência. Se inscrevem aqui a criação do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura e a chamada Rota da Seda.

Esta situação implica o início da crise da complementariedade sino-estadunidense mediante a qual uma produção massiva e com relativamente baixo valor agregado é exportada da China aos Estados Unidos − em grande parte desde empresas de origem estadunidense − ajudando por sua vez a sustentar os crescentes déficits dos Estados Unidos. Se bem que se trate de um processo longo e complexo que já vinha se fraturando pela própria pujança da China − e que está longe de ter se rompido por completo − aqueles anos 2013/14 parecem mostrar uma significativa linha de corte. Os elementos críticos que fraturavam esta relação se aceleraram e é aqui onde emerge com clareza a agudização das tensões entre ambos países. E, justamente a China que em décadas anteriores − e em especial a partir de 2001− tinha se apresentado como um dos motores fundamentais do crescimento do investimento, começa a emergir agora como parte do problema. Deixa de colocar a disposição do capital internacional amplas fontes de mais-valia absoluta − garantindo uma alta taxa de rentabilidade interna e externa − começou a transformar-se progressivamente em competidora pelos espaços mundiais de investimento e pela liderança em tecnologia de ponta com uma produção cada vez mais competitiva com a estadunidense. Uma questão que conduz a perguntar-se por um segundo aspecto.

Uma guerra...comercial?

O comércio é verdadeiramente o fundamento do conflito crescente sino-estadunidense? Tudo faz pensar que não. Na realidade aquilo que aparece como uma guerra de tarifas comerciais não tem por verdadeiro fundamento o comércio ainda que certamente está alterando substancialmente os fluxos comerciais. Mas que função o mecanismo comercial cumpre então? Essencialmente dois.

Em primeiro lugar, as tarifas funcionam como um “mecanismo de pressão” com duplo objetivo. Busca-se por um lado frear a corrida da China no desenvolvimento de novas tecnologias e na expansão de suas próprias empresas e capitais que a posicionam como um competidor global cada vez mais perigoso tanto em termos econômicos como geopolíticos, e pelo outro melhorar as condições de entrada das transnacionais norte-americanas na China. Uma das demandas chave neste último aspecto é que a China deixe de exigir a cessão de patentes às empresas estrangeiras que investem em seu território − uma espécie de pedágio que a China cobra há anos em troca da mais-valia concedida. Com respeito ao lugar das novas tecnologias, é preciso notar vários aspectos. Para dar alguns exemplos, vale a pena assinalar que a China não somente é a segundo produtora mundial de telefones celulares, senão que está mais avançada que os EUA. Em tecnologia 5G, a base para o desenvolvimento da Internet das coisas, além de estar trabalhando para conseguir um desenvolvimento massivo de microchips − ponto forte, por agora, dos Estados Unidos − e possuir um lugar predominante, talvez menos conhecido, em um área tão chave como a genética. Um detalhe aqui para pensar a relação entre tecnologia e geopolítica: se os Estados Unidos lançaram pomposamente o mapa completo do genoma humano no ano 2000 e depois a Coreia do Sul tornou pública a capacidade de produzir todo tipo de células a partir de células mãe de embriões humanos no ano de 2004, hoje o avanço mais importante em genômica consiste em um método avançado que supera a engenharia genética tradicional e a China é o país que está liderando estes ensaios. Além disso, a China possui o maior centro de sequenciamento de DNA e é a principal clonadora de porcos do mundo.

Em segundo lugar, as tarifas são um “mecanismo de propaganda” − bastante infantil e cada vez menos crível − de Trump para sua base eleitoral na medida em que sugere que tanto as empresas que deixem de comprar na China como as que eventualmente se retirem de seu território, vão direcionar tanto suas aquisições como seus investimentos para o território estadunidense. Dois acontecimentos que votariam a gerar o emprego perdido durante as últimas décadas.

Existem elementos bastante categóricos que mostram o duplo papel do aspecto comercial como mecanismo de pressão por um lado, e de propaganda por outro. O primeiro deles é que nos últimos oito meses, e apesar do aumento das tarifas, o déficit comercial dos Estados Unidos − argumento central usado por Trump para a “guerra comercial” − continuou crescendo. Por um lado aumentou com a própria China, devido a que as compras chinesas com os Estados Unidos caíram mais que as compras estadunidenses com a China, e por outro, o déficit cresceu também com o resto do mundo porque as empresas estadunidenses que deixam de comprar na China não compram nos Estados Unidos, mas em outros lugares como México, Taiwan, Vietnã e inclusive a União Europeia. O segundo é que se bem existem divergências a respeito da quantidade de empresas norte-americanas que aceitaram se retirar da China − há que diga que são muito poucas − as que efetivamente se foram, tampouco voltaram aos Estados Unidos, senão que se instalaram no México, Índia, Vietnã, Bangladesh, entre outros destinos. Diga-se de passagem, esta relocalização de capitais é parte de um processo prévio à “guerra comercial”, originado na tendência ao aumento dos salários chineses verificada ao longo dos últimos anos.

Mas o destino das compras e dos capitais não parece comover muito Trump, que não se conteve em declarar que os capitais ao menos se haviam ido da China para produzir em outros países, o que mostra que nem o retorno à “casa” nem o déficit comercial estão entre suas verdadeiras preocupações. O objeto da “guerra comercial” é deter o avanço da China e melhorar as condições de entrada ou de permanência das próprias empresas norte-americanas. Questão que volta sobre a ideia de que a China está se transformando de tábua de salvação do capital norte-americano em competidora pelos espaços mundiais de acumulação. Uma mutação que acontece em momentos em que as empresas norte-americanas − e isto é chave − ainda possuem grandes investimentos ali, gozam de relativamente poucas possibilidades de substituição e carecem de projeto alternativo.

Trégua e recuperação da economia mundial?

Por último, interessa retomar a discussão sobre as perspectivas do momento atual e o contraponto com Jorge Castro. Durante este ano a economia mundial sofreu uma forte desaceleração que se expressou tanto em uma das taxas de crescimento do PIB mundial mais baixas da década, como em uma abrupta queda da atividade manufatureira (mas não do setor de serviços), uma queda do crescimento do comércio global, a inversão da curva de rendimentos de curto e longo prazo nos Estados Unidos, assim como anúncios de possível proximidade de uma recessão. O notável, no entanto, é que os prognósticos de desaceleração da economia mundial eram prévios ao início da “guerra comercial”. Na realidade já em 2017 − um ano de recuperação econômica que aconteceu como subproduto de um 2016 quase recessivo e da redução de impostos por Trump − o FMI e a OCDE já prognosticavam o início de uma desaceleração para 2019 e 2020. Sem dúvida, outro elemento para considerar que o conflito comercial contribuiu a intensificar os tempos da desaceleração mas não é sua causa.

Agora bem, a situação crítica da economia e as tendências à desaceleração nos Estados Unidos em particular, junto com o fato de que 2020 é um ano eleitoral no qual Trump buscará desesperadamente a reeleição − tendo em conta, além disso, a erosão que significa o processo aberto de impeachment −, são fatores que poderiam criar condições para uma trégua comercial mais sólida e duradoura que as fracassadas tentativas anteriores. Esta possibilidade somada às medidas de estímulos monetários do BCE [Banco Central Europeu – nota do tradutor] e as políticas de redução de taxas de juros da Reserva Federal norte-americana, geraram novas “expectativas” nos mal chamados “mercados” − um eufemismo para não nomear as elites econômico/financeiras − e há quem afirme que poderíamos estar frente a uma reversão leve das tendências críticas da conjuntura.

Na já mencionada nota e ampliando estes últimos elementos, Castro insistia sobretudo em um dado já observado: os 11 trilhões de dólares que entre 2017, 2018 e os 6 primeiros meses de 2019, retornaram aos EUA como subproduto das reduções de impostos. Mas o mesmo Castro reconhece que dois terços destes 11 trilhões foram para Wall Street, nestes casos não havendo investimento real além de que se está recriando uma bolha cada vez maior − a bolsa ronda outra vez máximos − acelerando o risco de uma nova quebra financeira. No entanto Castro alude, sem dados para exibir, ao “fenomenal boom de investimentos em maquinarias e equipamentos” que supostamente teriam se mostrado “no primeiro ano posterior ao novo regime de impostos”. Para dizer a verdade, o dado que é preciso observar para verificar a evolução de novos investimentos é o investimento privado fixo neto não residencial, que aumentou muito levemente durante 2017 e 2018, sem sequer aproximar-se de reverter a tendência do período. Em base a dados do BEA (Boureax of Economic Analysis) se observa que enquanto no longo lapso 1987-2007 este investimento mostrou um já baixo aumento médio anual de 3,21% como porcentagem do PIB estadunidense, aumentou apenas 2,39% como média dos últimos 9 anos, incluindo os melhores resultados de 2017 e 2018. Para dizer a verdade, ainda que a redução de impostos por Trump evidentemente aumentou os lucros das corporações, colocou pressão sobre a bolsa e estimulou o consumo, o recurso está em processo de esgotamento e não emergem elementos que mostrem uma recuperação estrutural da economia norte-americana. Nem o FMI nem o jornalismo mais otimista − que assinalam leves tendências à recuperação global desde outubro seguidas por sérios riscos de que as coisas saiam do controle − chegam a expressar sequer 10% do otimismo atemporal de Jorge Castro.

Por outro lado, Donald Trump acaba de lançar uma nova rodada de ataques twitteiros anunciando sua decisão de impor novamente tarifas ao aço e ao alumínio provenientes do Brasil e da Argentina. Também ameaçou impor tarifas sobre produtos franceses e espanhóis no contexto das cúpulas da OTAN e Climática. Tampouco deixou de sugerir que o acordo com a China poderia acabar ficando para depois das eleições presidenciais de 2020. Ainda que existam múltiplas especulações sobre os motivos que estão por trás destes diversos ataques, é evidente que a negociação em curso da “fase 1” do acordo com a China − que inclui evitar novas tarifas, eliminar algumas preexistentes e incrementar compras chinesas nos Estados Unidos − é o pano de fundo. Se bem que seja provável que esta fase culmine em um acerdol precário e provisório, não se pode descartar que Trump − apurado por sua demagogia eleitoral − dê algum passo em falso que complique substancialmente o cenário.

Neste contexto, no melhor dos casos e se como assinalamos a essência da crise internacional não é a chamada “guerra comercial” que tampouco é comercial por seus fundamentos, fica bastante evidente que uma eventual “trégua comercial” quando muito poderá por um freio conjuntural à desaceleração e em suma gerar algum nível fraco de reanimação. Mas ficaria muito de distante, entretanto, de acabar com os fatores estruturais da crise global e, portanto, de dar por finalizado o conflito sino-estadunidense que em essência é econômico, tecnológico, político e militar, e que seguramente delineará o contexto das próximas décadas.

Repercussões latino-americanas

É preciso ter em conta que o mesmo ponto de inflexão que acelerou as causas da confrontação sino-estadunidense deu lugar ao início do fim da bonança relativa que entre 2010 e 2013/4 favoreceu a muitas economias latino-americanas. A queda dos preços das matérias primas associada à combinação do menor crescimento chinês e as políticas dos Estados Unidos tendentes a elevar as taxas de juros, deram lugar a um categórico fim de ciclo na América Latina.

Brasil, Argentina, Venezuela, terminaram as vítimas mais diretas e evidentes com processos recessivos ainda que de diferentes magnitudes. Os casos do Chile, Colômbia ou Bolívia, para nomear os mais candentes, são diferentes e ali a crise não atua de forma direta ainda que sem o faça de maneira indireta. Diferente do Equador, com uma economia em estado crítico e sob a férrea pressão do FMI, é preciso notar que em nenhum dos países onde se iniciaram processos profundos de luta de classes − Chile e Colômbia − ou um golpe de estado que gerou uma dura resistência − Bolívia −, prima a catástrofe econômica. Se verificam, sim, tendências à desaceleração e perda de expectativas em sociedades que durante anos sofreram um crescente nível de desigualdade − excetuando a Bolívia − paralelo ao crescimento econômico e inclusive com diminuição da “pobreza” definida nos miseráveis termos do Banco Mundial.

Todo este fenômeno em seu conjunto, incluindo desde um salto no estancamento econômico em que confluem “centro” e “periferia”, até as maiores tensões sino-estadunidenses que se expressam em múltiplos terrenos − entre eles a luta por áreas de influência tanto para a exportação de capitais e mercadorias como por fontes de matérias-primas, entre as que se encontra o lítio − está atuando no pano de fundo da convulsiva situação latino-americana. Mas de agora em diante, tanto um maior estancamento econômico com eventuais tendências recessivas como a competição sino-estadunidense agudizada, se enfrentam a processos álgidos da luta de classes − uma onda mundial e latino-americana mais estendida e potencialmente mais profunda que aquela da “Primavera Árabe” − de cuja evolução vai depender muito particularmente a situação da economia capitalista no período próximo. É por isso que nosso compromisso nestes fenômenos, incluindo a necessidade da intervenção da classe trabalhadora como ator central, assim como a construção de partidos revolucionários onde seja possível, torna-se a tarefa do momento em um processo do qual estamos vendo agora os primeiros episódios.


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Paula Bach

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