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Prefácio do livro "Marx & Engels – Uma biografia"

Iuri Tonelo

Prefácio do livro "Marx & Engels – Uma biografia"

Iuri Tonelo

Em julho, as Edições Iskra lançam o livro Marx & Engels – Uma biografia, de David Riazanov, diretor do Instituto Marx-Engels em Moscou até 1931 e considerado o marxologista mais importante de todos os tempos.

Publicamos aqui o prefácio da edição brasileira, escrito por Iuri Tonelo, sociólogo e escritor do livro "No entanto, ela se move: a crise de 2008 e a nova dinâmica do capitalismo" e "A crise capitalista e suas formas", ambos publicados pelas edições Iskra.

Prefácio do livro "Marx & Engels – Uma biografia"

No célebre discurso diante da tumba de Karl Marx, em março de 1883, Friedrich Engels descreveu seu parceiro de militância de toda uma vida como uma personalidade investigativa na área das ciências, tendo feito descobertas em variadas esferas e de longo alcance, como a sua teoria do valor e da mais-valia, mas também estudos profundos em outras áreas e com descobertas originais, incluindo a matemática. Mas, no mesmo discurso, também remarcou que a atividade intelectual e científica estava sempre atrelada à perspectiva da revolução social, pois

Marx era, antes de tudo, um revolucionário. Sua verdadeira missão na vida era contribuir, de uma forma ou de outra, para a derrubada da sociedade capitalista e das instituições do Estado criadas por ela. Colaborar para a emancipação do proletariado moderno, tendo pela primeira vez a consciência de sua própria situação e necessidades, a consciência das condições de sua emancipação: essa era a sua verdadeira vocação. [1].

Esse comentário de Engels nos ajuda a compreender a particularidade e a importância da biografia escrita por David Riazanov. Isso porque esse autor compreendeu o que páginas e páginas de pesquisa sobre Marx em meios acadêmicos por vezes deixaram de lado: que a força marcante e característica do pensamento e ação de Marx advinham de um revolucionário, alguém que dedicou toda a sua energia numa batalha pela emancipação dos trabalhadores.

A abordagem de Riazanov do conjunto dos processos de luta de classes, desde a localização da própria Revolução Francesa e seus efeitos às demais revoluções posteriores em múltiplos países na Primavera dos Povos, das formas de organização política, dos movimentos socialistas, das personalidades e disputas teóricas e políticas como parte do fortalecimento das tendências do movimento operário, são descritas de uma forma viva, por vezes daquele que se irmana com os eventos revolucionários e suas personalidades. Seguindo os métodos dos mestres, Riazanov critica duramente os erros dos que, no movimento operário, se equivocaram teórica ou estrategicamente em suas propostas, sem deixar nunca de reivindicar a entrega e a paixão de revolucionários que desde os primórdios da formação do marxismo já se lançavam de modo apaixonado na defesa dos trabalhadores e oprimidos, por vezes terminando presos, mortos, exilados, fugitivos, mas com a coerência viva da luta pela revolução. A peculiaridade dessa biografia está, então, em defender algumas teses como parte do exercício biográfico, de modo que a personalidade de Riazanov se faz presente na explicação da vida de Marx e Engels, e um aspecto notável disso e que queremos destacar é que trata-se de uma biografia escrita por um bolchevique.

A obra e os desafios dos trabalhadores na atualidade

A importância de quem escreve esta biografia e essa forma de encarar a obra de Marx e Engels não é, sobretudo na atualidade, um problema de abordagem estritamente teórica. Enquanto estamos escrevendo essas páginas uma guerra se desencadeou na Ucrânia a partir da invasão russa de Putin, envolvendo distintas potências imperialistas com ações como sanções econômicas e rearmamento militar. Em que pese que não existe uma atuação imediata da Otan com tropas no país, aumenta enormemente o clima de tensão entre as potências de um lado, e a Rússia e a China, de outro. Uma tensão que parece indicar por onde vai passar as próximas conflagrações militares, inclusive em maiores proporções. O fato é que a barbárie capitalista da guerra não é apenas realidade, mas tem levado ao militarismo imperialista tão conhecido no século XX e com consequências nefastas.

E não é apenas o aspecto militar que tem chacoalhado as bases já instáveis do equilíbrio internacional. A verdade é que as mazelas da guerra florescem a partir do fermento das crises e recessões que temos vivenciado nos últimos anos, com ponto de clivagem destacado no ano de 2008, com a crise dos subprimes nos Estados Unidos, rapidamente transladada para a Europa e o conjunto do globo em seus efeitos mais estruturais. O estancamento no crescimento econômico, os baixos índices de produtividade do trabalho e a queda nos investimentos, consequências da chamada Grande Recessão de 2009, se potencializaram com o período de pandemia global, que não é a causa, mas um novo determinante no arruinado tabuleiro da crise capitalista.

Assim, os acontecimentos da atualidade escancaram que o período anterior da chamada globalização neoliberal só poderia levar a uma nova era de predominância parasitária do capital financeiro e a fenômenos de decomposição social. Ou seja, vemos agora a reatualização da época imperialista, para usar os termos de Lenin, o que faz com que o resgate da obra de Marx e Engels, em sua versão acadêmica ou separada de sua atuação política e suas concepções revolucionárias, seja não só um exercício inócuo, intempestivo, mas contraproducente.

A obra dos marxistas, começando pelos fundadores, tem como desafio se entrelaçar e se tornar carne nos corações e mentes da juventude trabalhadora que vem emergindo em processos de luta ou processos significativos de organização, como o que levou a uma jovem geração nos Estados Unidos, coração do imperialismo internacional, ser chamada de geração U, em referência à palavra union [sindicato], a geração que quer se sindicalizar e organizar sua luta, tendo como um momento expressivo disso o fato de jovens terem conseguido o primeiro sindicato da Amazon em abril de 2022. Esses jovens são os herdeiros da teoria marxista na atualidade, então o desafio é fazer essa teoria, obra e luta política confluir com eles.

O fato é que a luta de classes contaminou o conjunto dos movimentos em curso, começando pelo que antecedeu a geração U norte-americana, que foi o Black Lives Matter, um dos principais movimentos de rua da história dos Estados Unidos, com negros na vanguarda, mas também com jovens brancos, unidos, lutando contra a violência policial e o racismo. O movimento teve repercussão em muitos lugares do mundo, em processos de luta e enfrentamentos com a violência policial. O mesmo se pode dizer sobre o movimento de mulheres, em que a primavera feminista se expressou em uma onda de lutas e mobilizações nas mais variadas partes do mundo. Das indianas que lutavam contra a violência contra a mulher em 2012 até a Maré Verde argentina que inundou as ruas com jovens, também chamada de “revolução das filhas”, que impuseram a legalização do aborto no país. Caberia ainda destacar o interesse crescente na juventude pelas lutas ambientais, com mobilizações em distintos lugares do mundo contra a agenda de destruição das potências imperialistas (um fato desgraçadamente evidente em nosso país com o governo Bolsonaro e sua destruição do Pantanal e da Amazônia), ou ainda o movimento LGBTQIA+, que esteve com certo destaque em lutas como contra o golpe em Myanmar em 2021 e agora também começa a ser ativo em greves de trabalhadores, como as da Disney ou na fundação de mais de 100 sindicatos da Starbucks.

E também em mobilizações de massas nas ruas em âmbito internacional, começando pelo destacado fenômeno político da Primavera Árabe em 2011 até mobilizações na África, na Europa – destacadamente a França – e sobretudo América Latina em 2019, com rebeliões ocorrendo em países como Equador, Colômbia, Haiti e Chile, este último onde talvez tenham sido mais fortes os enfrentamentos e questionamentos do regime. Em todos esses processos foram chamativas as debilidades programáticas e estratégicas da esquerda, e o peso das burocracias políticas e sindicais fazendo de tudo para desviar e desinflar os processos. Mas fica remarcado que o mundo da passividade e do conformismo neoliberais ficou para trás. Assim, é nessa pista agitada da situação internacional que as teorias e personalidades estão compelidas à dança, não a valsa que se harmoniza com as diretrizes do sistema, mas os scratchs dos bailes ou o pandeiro dos sambas operários.

E a obra de Marx e Engels está convocada não só pelo grito das lutas, mas também pela força das circunstâncias e das condições objetivas. Segundo dados da Organização Internacional do Trabalho, temos hoje no mundo ao redor de 3,3 bilhões de trabalhadores [2], com um proletariado industrial de cerca de 700 milhões de trabalhadores, o equivalente a 3 Brasis e 2 Argentinas dentro das fábricas ao redor do mundo. Isso significa que nunca o proletariado mundial foi tão grande absoluta e relativamente, um gigante proletariado que Marx e Engels quando escreveram sua obra nem sequer imaginavam que poderia atingir essa dimensão ao redor do mundo. E eis que estamos em tempos em que a propaganda da “Quarta Revolução Industrial” segue em voga e há quem diga que a classe trabalhadora está desaparecendo – esse sim, um pensamento que só pode estar limitado pela estreita visão (ou cinismo) do empresariado da Indústria 4.0 alemã e europeia.

O fato é que, por debilidades estratégicas e políticas, essa força objetiva do proletariado não veio acompanhada de uma melhoria em suas condições, especialmente nas últimas décadas de neoliberalismo e no contexto de crise atual. São desenfreadas as formas de precarização laboral na atualidade, aguçadas pela recessão e expressando os contornos da nova reestruturação produtiva da Era Digital, que implica em novas formas de controle do trabalho, formas de intensificação e as possibilidades de exploração do mundo ciberfísico da internet das coisas. Não por um acaso a desigualdade social alcançou índices incomensuráveis. Segundo o último relatório da Oxfam [3], durante os dois primeiros anos da pandemia, os dez homens mais ricos do mundo dobraram suas fortunas, o que equivale a um valor de 15 mil dólares de aumento por segundo, ou 1,3 bilhões de dólares por dia. Por outro lado, 99% da renda dos mais pobres caiu e 160 milhões de pessoas foram empurradas para a pobreza. Para dar uma ideia: essa quantia em dinheiro significa que, se nós traçássemos uma linha reta em notas de cem reais enfileiradas, formaria uma reta de tal tamanho que, segundo nossas precárias capacidades de cálculo, seria possível chegar até a Lua e voltar 14 vezes – qualquer erro pode ser atribuído à dificuldade de se lidar com o número de 7,5 trilhões de reais em notas, uma riqueza de dimensão quase impensável. Tal é a desastrosa tragicidade da desigualdade capitalista.

Pois sim, Marx e Engels estão de volta, e vieram para ficar. O desafio é superar as superficiais tentativas de conjurar uma esquerda “ampla” com partidos neorreformistas, que se afastam do marxismo entre todas as coisas por um ponto destacável do pensamento de Marx: que ser radical é agarrar as coisas pela raiz, e observar com olhos abertos a expressiva situação de uma contradição sistêmica de desigualdade, miséria, decomposição social, crise ambiental, expressões fascistizantes, e querer resolver com remédios reformistas é uma utopia sem graça e regressiva. As respostas, no melhor espírito dos fundadores do marxismo, só podem vir da organização desse gigante proletário que, se estivesse preparado, faria qualquer suposto Leviatã estatal da burguesia se desintegrar em poucos movimentos.

O stalinismo na contramão de Marx e Engels

Na luta pela organização do mundo do trabalho, o desafio de nossa época é retomar a perspectiva de uma saída independente dos trabalhadores por fora dos entulhos dos caminhos desviados no século XX. A maior perda de rota foi sem dúvida o stalinismo, que atuou como uma verdadeira força contrarrevolucionária, seja esmagando a vanguarda bolchevique na própria URSS para defender os privilégios de uma burocracia conservadora, seja negociando na ordem de Ialta com as potências imperialistas o bloqueio das iniciativas revolucionárias em muitos países, um trabalho árduo, pois o século XX foi um enorme laboratório de revoluções e revoltas. O mesmo se pode dizer de variantes desse mesmo pensamento burocrático, como o maoísmo na China, que gera até hoje no mundo admiração a figuras autocráticas e inimigas das mobilizações dos trabalhadores como Xi Jinping, em seu “socialismo com bilionários”. É por responsabilidade desses desvios de rota que facilitaram a imensa campanha do capital no século XX e XXI, de deturpar tanto o significado do comunismo, que passou, na linguagem de Marx e Engels, de significar a emancipação dos trabalhadores e a construção de uma sociedade de produtoras e produtores livremente associados, para a defesa da autocracia, da perseguição, do poder de um setor privilegiado contra as massas trabalhadoras em suma, das barbáries de um regime burocrático.

Daqui o significado de editar uma obra como essa, com a força própria de uma síntese do pensamento de Marx e Engels, aqueles que queriam incendiar e revirar de ponta-cabeça essa ordem de coisas de exploração e opressão, e estender as bandeiras da emancipação dos trabalhadores e da humanidade. A insistente batalha por deturpar o marxismo não resiste à prova da história, mas para que a verdade prevaleça não cabe uma posição de espectadores ou contempladores. É preciso entrar na disputa prática nas ruas, nos locais de trabalho e de estudo, e nas batalhas de ideias, nas quais o livro que está sendo editado serve sem dúvida como uma pequena arma.

E esse aspecto não correu em paralelo aos grandes desafios do século XX: Riazanov foi uma parte da vanguarda revolucionária de 1917, tendo uma atuação prática durante todo o processo da revolução, sendo um dos organizadores do Instituto Marx e Engels de Moscou, desenvolvendo estudos históricos que levaram a publicação de textos inéditos como Manuscritos Econômico-Filosóficos, A Ideologia Alemã ou Dialética da Natureza. Um trabalho intelectual e editorial dessa magnitude, combinado a uma atuação política, não poderia deixar de ter se chocado com a emergência da reação stalinista à Revolução de 1917.

O fato é que o trabalho teórico de Riazanov sobreviveu e deixa lições importantes do resgate de Marx que se chocam com o stalinismo: em primeiro lugar, o rigor teórico e o afinco que tiveram os fundadores do marxismo, em oposição à visão rasteira e anti-intelectual do próprio Stálin e do fenômeno político que dirigiu. Além disso, o enfrentamento que fizeram Marx e Engels às burguesias e elites dominantes em todos os países, batalhando pela emergência da classe trabalhadora, e desde 1850 já entoando o grito internacionalista de “revolução permanente”, na contramão do “socialismo em um só país” stalinista. No mesmo sentido, a biografia também destaca a luta pela organização internacional da classe, com o papel ativo dos dois na organização da Associação Internacional dos Trabalhadores e depois o papel de Engels na Segunda Internacional, uma visão muito distinta da de Stálin, que degradou politicamente a Terceira Internacional e finalmente a dissolveu no meio da Segunda Guerra Mundial, quando se colocava mais necessária que nunca a organização internacional da classe. Por fim, Riazanov também destaca a busca apaixonada de Marx e Engels da fusão com a classe trabalhadora, e a total entrega (que para Marx resultou inclusive em momentos difíceis de vida), uma postura que se choca completamente com a burocracia que se formou na URSS, encastelada em seus privilégios e afastada dos setores mais oprimidos da população.

Em suma, essa biografia, embora tenha sido escrita ainda nos inícios da burocratização, pelo sentido revolucionário da retomada de Marx e Engels, resulta em uma arma no combate ao stalinismo.

A particularidade dessa biografia

Estamos longe de considerar o exercício biográfico como um retrato neutro da vida da personalidade analisada. Em A Ilusão Biográfica, Pierre Bourdieu põe em questão o próprio exercício biográfico e advoga contra a tentativa de discorrer sobre a “trajetória de uma vida”, se tomada como uma descrição de uma sucessão de acontecimentos predeterminados, um devir de um dado indivíduo

Tentar compreender uma vida como uma série única e por si suficiente de acontecimentos sucessivos, sem outro vínculo que não a associação a um “sujeito” cuja constância certamente não é senão aquela de um nome próprio, e quase tão absurdo quanto tentar explicar a razão de um trajeto no metrô sem levar em conta a estrutura da rede, isto é, a matriz das relações objetivas entre as diferentes estações [4].

Não era necessário ir tão longe para dissertar sobre as dificuldades da complexidade do exercício biográfico destacando a dialética entre os aspectos objetivos, as circunstâncias, o lugar do sujeito nesse processo, o aflorar da personalidade. São várias as tentativas de emaranhar em antinomias epistemológicas as possibilidades de compreensão da relação entre os indivíduos e as condições históricas nas quais se inserem, mas como pequenos sopros em uma fogueira parecem apenas reavivar a chama, nos lembramos da conhecida passagem de Marx no 18 Brumário, segundo a qual “os homens fazem a história, mas não a fazem como querem, não sobre circunstâncias de sua escolha, mas sobre aquelas que foram legadas e transmitidas pelo passado”. E entre méritos da biografia de David Riazanov, pode-se dizer que é fina a dialética do livro em seu tratar da vida de duas grandes personalidades fundadoras do marxismo, na complexidade de suas ações e atitudes diante do mundo e das coisas, numa complexa exposição das circunstâncias históricas, do pensamento filosófico, das lutas políticas, das formas de lutas sociais e um conjunto quadro, com grande poder de síntese, do tabuleiro internacional no qual esses pensadores revolucionários viveram.

Tomando a ideia de Lenin de As três fontes e três partes constitutivas do marxismo, podemos dizer que do ponto de vista filosófico a obra é um prato cheio para os que querem conhecer o pensamento de Marx e Engels. Riazanov traz um retorno sobre a geração pós-hegeliana e o conjunto dos debates necessários na emergência do marxismo; não se restringe ao período prévio à vida de Marx e Engels e ao contexto, muito bem colocado, mas traz uma síntese filosófica sobre a evolução do pensamento filosófico alemão com a obra de Kant, a crítica de Hegel e a superação de Marx e Engels.

Do ponto de vista da análise e teoria da política, Riazanov mostra a importância da atuação de Marx e Engels nos jornais, a análise que fizeram das guerras, sobretudo da Crimeia na qual se detêm, o papel das potências, o interesse dos fundadores do marxismo pelas lutas internacionais, incluindo aqui a luta contra a escravidão nos Estados Unidos. Mas não só como analistas, mas também como organizadores da classe trabalhadora. O livro é forte em sua síntese de todo o trabalho de unificação do movimento operário que levou a constituição da Associação Internacional dos Trabalhadores e depois a Segunda Internacional, destacando o papel fundamental de Engels nesse segundo caso.

Um último ponto é a reflexão da economia política, que Riazanov reflete sobre a importância dos estudos de Marx desde sua juventude, até a realização de sua grande obra, em O Capital. Ainda assim, talvez um dos pontos em que Riazanov faz apontamentos importantes, mas não desenvolve muito a reflexão. A grande obra econômica de Marx de 1867 não encontra nesta biografia uma análise mais densa ou sistemática, e a razão disso fatalmente não foi a displicência com a importância da obra, ainda mais daquele que foi responsável pela descoberta e estudo dos famosos Grundrisse, esboços de investigação de Marx sobre a crítica da economia política, escritos uma década antes de O Capital. Entre os determinantes dessa escolha está o destaque que Riazanov propôs dar, nesse período, para o papel de Marx na formação da Associação Internacional dos Trabalhadores e suas tarefas de organização política e também, conforme o próprio autor argumenta no prefácio à edição francesa de 1923, porque a análise de O Capital seria tema de outra conferência específica a ser dada na sequência, e publicada separadamente.

Mas mesmo não tendo feito uma reflexão sistemática, ao descrever o contexto e os temas de interesse político de Marx e Engels, seja em toda a reflexão que fazem a partir a partir de 1848 na Nova Gazeta Renana, New York Tribune e outros jornais – que tem sido tema de investigação na atualidade por mostrar o interesse deles em conhecer a realidade e as lutas do mundo oriental, como a China e a Índia, as lutas de emancipação nacionais como da Irlanda e Polônia, a lutas contra a escravidão nos Estados Unidos –, além da análise das guerras e conflitos geopolíticos, Riazanov nos permite compreender uma obra como O Capital não como um estudo de economia política fechado em si mesmo, mas como parte das reflexões teóricas vitais para os desafios do proletariado diante desse contexto. A obra é meritória nesse sentido.

Além da reconstrução teórica das fontes do marxismo na biografia, um tema particular, pela sua forma de abordagem, talvez surpreenderia sociólogos como Bourdieu, para não citar críticos explícitos do marxismo como Jurgen Habermas ou Michel Foucault: a ousadia com a qual Riazanov aborda seu objeto de reflexão, que é a vida de Marx e Engels, chegando ao ponto alto do livro de polemizar com os próprios autores biografados com o conteúdo com o qual descreveram a evolução política das suas próprias vidas nos anos de 1840. A grande ousadia da escrita deste biógrafo passa, neste caso, por questionar as próprias memórias, sobretudo de Engels, sobre eventos que os autores viveram em sua juventude e a importância dos processos políticos em que participaram, o que faz dessa biografia não só um texto, mas uma forma sui generis de defender uma tese sobre os acontecimentos – uma dialética que os detratores acostumados a falar do “mecanicismo” marxista ficariam com o pensamento em rodando em parafusos.

A grande tese do livro está em buscar demonstrar que a própria formação do marxismo até a formação da Liga dos Comunistas e a publicação do Manifesto do Partido Comunista foi um processo de luta de tendências, luta teórica e tentativas de organização política. O debate com as memórias sobre a formação da Liga dos Comunistas tem grande importância porque quando Engels o escreveu nem sequer poderia imaginar que as breves notas seriam usadas para ratificar interpretações de que o nascimento do marxismo foi um processo filosófico de gabinete, e não um processo de real de lutas para a emergência dessa compreensão de mundo ligada à práxis. Daqui que Riazanov resgata, entre outras, as batalhas de Marx e Engels contra a estratégia de centralidade nos setores pauperizados da população proposta por Wilhelm Weitling, um dos interlocutores do debate na formação do marxismo (e que vai ser influente no pensamento de Bakunin, outra personalidade com o qual Marx e Engels travaram fortes debates). Outro e talvez mais conhecido interlocutor foi Pierre Proudhon, que Marx combateu teoricamente respondendo ao livro Filosofia da miséria com seu célebre Miséria da filosofia. E, além desses debates teóricos, os esforços para a organização dos trabalhadores foram intensos durante os anos 1840, levando, por exemplo, a criarem a Sociedade Educacional dos Trabalhadores, onde Marx lecionava Economia Política para seus membros, seguida da busca a partir daí a estabelecer a conexão entre trabalhadores da Alemanha, Londres, Paris e Suíça, e resultando na formação dos Comitês Comunistas de Inter-relação (Comitês de Correspondência), de intercâmbio entre trabalhadores e comunistas. O conjunto desses processos é o que leva Riazanov a reinterpretar com os arquivos que tinha à disposição os eventos da década de 1840, como se deu efetivamente a relação entre a Liga dos Justos, a convocação de um congresso internacional a partir do impulso de Marx e Engels e finalmente a concretização da Liga dos Comunistas. E, a partir disso, nos habilita a traçar um paralelo entre o processo de formação do marxismo e o problema de emergência do marxismo na Rússia contra o populismo, e em particular da política bolchevique, mostrando que tiveram esse ponto de contato: a importância da luta de tendências (lutas políticas e teóricas) e dos esforços de organização dos trabalhadores como determinações vitais da emergência do marxismo pelos fundadores ou do bolchevismo por Lenin.

Então estamos diante de uma biografia construída por alguém que reconhece nos textos de Marx e Engels mestres, mas com a coragem de interpretar, divergir, criticar, repensar, em suma, entendê-los como gênios inspiradores, como camaradas. É justamente nesse espírito que Riazanov consegue recuperar conquistas significativas do legado teórico e prático desses pensadores, numa abordagem feita por poucos, mesmo os que tiveram acesso e tempo de pesquisa muito maior sobre a vida de Marx e Engels. Assim, essa marca subjetiva de Riazanov, mesmo numa pequena obra, sintética, faz ela altamente especial nesse tipo de trabalho, não só pensando a biografia dos fundadores do socialismo científico, mas o trabalho biográfico em geral. Como enfatizamos, a novidade deste livro foi destacar o papel crucial de Marx e Engels na organização da Associação Internacional dos Trabalhadores e o quanto essa tarefa consumiu enormes energias e uma atividade militante intensa.

Sob esse ângulo, na contramão de uma abordagem acadêmica do marxismo, uma tentativa de construir um pensamento filosófico marxiano isolado de suas atuações militantes, essa biografia descreve uma unidade indeclinável e profundamente orgânica entre a teoria e a prática, a dedicação apaixonada do trabalho teórico e científico ligada indissoluvelmente aos anseios e a dedicação persistente para unificar as organizações dos trabalhadores em torno da estratégia e do programa da revolução socialista e a busca de sua emancipação.

Daqui o nosso convite para que leiam e difundam essa obra, de uma forma que Riazanov, mas também Marx e Engels, certamente apreciariam: como a história da vida de dois revolucionários, com a beleza e a poesia de vidas “plenas de sentido”, verdadeiras armas ideológicas na luta contra um mundo de misérias, angústias e realizações superficiais que são as únicas coisas que a classe dominante atual pode oferecer.


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FOOTNOTES

[1A luta era seu elemento Friedrich Engels. Discurso diante da tumba de Marx. Disponível em: https://www.esquerdadiario.com.br/Discurso-diante-do-tumulo-de-Marx.

[2Disponível em: https://www.oxfam.org.br/justica-social-e economica/forum-economico-de-davos/a-desigualdade-mata/.

[4BORDIEU, Pierre. “A ilusão biográfica”, in Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 8a ed., 2006, p. 189-190.
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Iuri Tonelo

Recife
Sociólogo e professor. Um dos editores do semanário teórico do Ideias de Esquerda, do portal Esquerda Diário. Autor dos livros "No entanto, ela se move: a crise de 2008 e a nova dinâmica do capitalismo" e "A crise capitalista e suas formas". Atualmente é pesquisador na PPGS-UFPE
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