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Política versus Fifa - a Copa mais cara de todos os tempos não consegue barrar a luta dos oprimidos

Patricia Galvão

Política versus Fifa - a Copa mais cara de todos os tempos não consegue barrar a luta dos oprimidos

Patricia Galvão

A vigésima segunda edição dos jogos da Copa Fifa começou no dia 20 de novembro, data simbólica para nós brasileiros pois marca a luta antirracista no nosso país. Novembro é também o mês de luta internacional contra a violência às mulheres. Essa curiosa coincidência poderia passar despercebida não fossem os inúmeros protestos que tomaram conta da Copa que este ano ocorre no Catar ou Qatar, quarto país mais rico do mundo, que, de acordo com a revista Forbes, tem o PIB per capita de quase US$ 113 mil.

Uma escolha controversa

O pequeno país, que foi protetorado inglês até 1971, produtor de petróleo e gás natural, é uma monarquia absolutista, cujo comando está, desde o século XIX, nas mãos da família Al Thani. Apoiado no imperialismo estadunidense, do qual foi aliado estratégico na Guerra do Golfo, em 1991, sedia a base aérea estadunidense em Al Udeid desde 1993.

A escolha do Catar para sediar a Copa foi marcada por controvérsias que vão desde acusações de compra de votos e propinas a denúncia de violação de direitos humanos. Na época tradicional de jogos, que coincide com o verão europeu, a temperatura no Catar chega a 50ºC, motivo pela qual foram transferidos para novembro.

Organizações de direitos humanos acusam o país de desobedecer às leis elementares. A ampla maioria dos trabalhadores do Catar são estrangeiros vindos da Índia, Nepal, Bangladesh, Paquistão e Sri Lanka e estão submetidos a rigorosas regras de trabalho que chegam a proibi-los de deixar o emprego sem autorização do patrão. Apesar do altíssimo PIB, um trabalhador estrangeiro ganha cerca de 2 mil dólares anuais e vive em condições extremamente degradantes. De acordo com o Le Guardian, 6.500 trabalhadores morreram nas obras da copa.

“Ser menor de idade a vida toda”

O governo do Catar patrocinou viagens de jornalistas mulheres ao país para que pudessem ver com seus próprios olhos a real situação das mulheres no país. Em reportagem do Uol, uma funcionária do governo afirma que homens e mulheres ganham o mesmo salário, que elas podem trabalhar livremente e que sua equipe é composta por metade de mulheres. O logotipo da copa, inclusive, foi criado por uma artista feminina. Bastante progressista, se fosse verdade. Nas ruas é possível ver mulheres catarenses com o hijab colorido cobrindo apenas os cabelos ou toda de preto, cobrindo o rosto, ou seja, mais “liberais progressistas” ou conservadoras.

Obviamente a questão cultural e religiosa são pontos importantes quanto ao grau de liberdade das mulheres. No entanto, frequentemente o ocidente vestia o véu de defesa das mulheres para criticar o véu islâmico como forma de aprofundar as políticas xenófobas e esconder, neles próprios, a realidade das mulheres ocidentais vítimas da opressão patriarcal milenar que resulta na violência de gênero, na proibição ao aborto e na desigualdade salarial.

Mas o uso ou não do véu não é o centro da questão da mulher no Catar, mas o grau de independência da mulher perante ao patriarca, seja o pai, o marido ou o próprio estado. No Catar, impera o sistema de guarda masculina de mulheres, ou tutela masculina, o que críticos definiram como “ser menor de idade a vida inteira”. Ou seja, as mulheres precisam de autorização expressa pelo guardião, pai, irmão, tio ou marido, para poderem estudar, ingressar em uma universidade, trabalhar, casar ou se divorciar. Como não se trata de uma lei escrita, mas uma orientação baseada na lei islâmica, o grau individual de liberdade depende da orientação religiosa mais ou menos conservadora, o que permite ao governo lavar a própria cara se apoiando nos setores mais liberais, e propagandeando para o exterior a modernidade do estado, lavando a cara dos países imperialistas aliados, enquanto as mulheres continuam sendo sujeitas à tutela patriarcal. A mera existência permitida dessa tutela, faz com que as mulheres estejam sob constante risco de retrocessos, vide o Brasil. O governo reacionário e misógino de Bolsonaro fez retroceder avanços em relação a educação sexual nas escolas e até mesmo em relação ao direito ao aborto nos pouquíssimos casos permitidos por lei. Esse é o alerta que algumas mulheres catarenses fazem quando questionadas sobre o empoderamento feminino propagandeado pelo governo do país.

Além da guarda masculina, é preciso lembrar do caso da mexicana Paola Schietekat. Ela trabalhou por um ano e meio no comitê organizador da copa no Catar. Em junho de 2021 teve seu apartamento invadido por um homem, que a agrediu. Ao denunciar o agressor à polícia, imediatamente passou do papel de vítima a acusada. Isso porque relações sexuais fora do casamento são proibidas tanto para homens quanto para mulheres. No entanto, não se tratava de relações sexuais extraconjugais consentidas e sim uma tentativa de estupro. Foi pedido a Paola que provasse sua virgindade, em seguida que, para escapar de um processo criminal, que se casasse com seu agressor. Foi condenada a 7 anos de prisão e, por ser muçulmana, a 100 chibatadas. O homem que agrediu Paola não recebeu nenhuma punição ou questionamento sobre sua virgindade. Ela conseguiu deixar o país antes de ser presa e somente em abril seu caso foi arquivado e a sentença anulada, depois de um escândalo internacional. Sem justiça e culpada por ser mulher.

Tukoh Taka - A FIFA nos uniu?

A questão LGBTQIA+ é outro ponto sensível. É expressamente proibido sexo, demonstrações de afeto de qualquer tipo entre dois homens, passível de prisão. Embora a pena de morte não seja efetiva no país, ela é uma possibilidade legal. No esporte em geral, mas no futebol em especial, o machismo e a LGBTfobia sempre foram um ponto sensível. Denúncias de estupros coletivos e assédios envolvem diversos jogadores e times inteiros. O caso do jogador Robinho é um exemplo. O esportista, e por consequência, o futebolista é um ícone da virilidade desde a antiguidade. Os jogos olímpicos emulavam a guerra. Nas duas grandes guerras e na guerra fria o esporte era igualmente um campo de disputa geopolítico e de reafirmação da virilidade de tal nacionalidade. A participação feminina no esporte ganhou mais força como expressão da potência do movimento de mulheres, mas ainda é limitada pela visão machista. No futebol nem falar. Além da colossal diferença de patrocínio, salários e visibilidade entre a copa masculina e a feminina, o futebol é por excelência um esporte masculino e homofóbico.

Diversos jogadores mantiveram em segredo sua orientação sexual para poderem jogar. Especulações, apelidos pejorativos marcam o futebol mundial. Richarlyson, não o autor dos gols contra a Sérvia, o ex-jogador do São Paulo, foi uma das vítimas da homofobia nos estádios e só recentemente pode se dizer abertamente bissexual. Muitos só puderam “sair do armário” anos depois de se aposentarem. Outros desistiram do futebol ao se verem como alvos de atos homofóbicos de torcedores do time que defendiam com paixão.

É muito recente e expressão da força do movimento LGBTQIA+ e do movimento de mulheres o questionamento à homofobia e o machismo no futebol. A FIFA todos esses anos buscou blindar o futebol de manifestações políticas. Não é a primeira vez que ameaça com punição e multa os jogadores e times que façam qualquer manifestação política nos estádios. Mas antes o controle à insubordinação parecia mais fácil. Neste ano, diversas seleções europeias anunciaram que seus capitães usariam uma braçadeira com o arco-íris, símbolo LGBTQIA+ com os escritos One Love. No entanto, sob ameaça de cartão amarelo, retrocederam da ação. Isso não impediu, porém, outras manifestações como a seleção da Inglaterra de se ajoelhar durante a execução do hino nacional, repetindo o símbolo de luta antirracista do Black Lives Matter. A seleção alemã tapou a boca durante seu hino, simbolizando a censura. O grande gesto dos Panteras Negras eternizado pelo punho erguido de Tommie Smith e John Carlos de 1968 continua a reverberar décadas depois e ganhou novo fôlego com o movimento Black Lives Matter.

Mas, o mais comovente dos atos políticos dessa copa foi, sem dúvida, o silêncio da seleção iraniana em protesto contra a morte da jovem Mahsa Amini em setembro deste ano pela polícia iraniana. O assassinato de Mahsa deu origem a uma onda de protestos impressionantes. Mulheres e meninas arrancando seus véus contra o governo e o aiatolá Khamenei. O principal jogador da seleção iraniana, Sardar Azmoun, manifestou diversas vezes repúdio à repressão no Irã: Esta história não será apagada. Eles podem fazer o que quiserem. Que vergonha por matar tão facilmente. Vida longa às mulheres iranianas. O custo sobre a seleção iraniana certamente é maior do que sobre as seleções europeias e ultrapassa o cartão amarelo.

Se sob as torcidas a censura da FIFA é mais limitada, a polícia do Catar tem tentado intimidar quem anda com a bandeira do arco-iris. A copa da diversidade, como dito por Morgan Freeman na abertura, não tolerou sequer a bandeira de Pernambuco que, por conter um arco-íris, foi confundida com uma bandeira LGBT e pisoteada por policiais. Torcedores relataram que foram intimidados por autoridades locais por usarem o símbolo LGBT em camisetas e bonés. Há um esforço da FIFA e dos empresários em mostrar um Catar mais diverso e, assim, uma copa mais rentável. No entanto, os velhos hábitos autoritários do governo do emir Al Thani estão dificultando a tarefa.

“Vidas ruivas importam”

Para responder a onda de protestos contra a Copa no Catar, que levou artistas como Shakira, Rod Stewart e Dua Lipa a recusarem o convite para participar da cerimônia de abertura, o presidente da FIFA, o suiço Gianni Infantino, num exercício de auto-empatia muito particular, comparou o bullying que teria sofrido quando criança por ser um suiço de origem italiana de cabelos ruivos ao racismo, xenofobia e lgbtfobia que acomete os oprimidos no mundo. "Eu me sinto gay... me sinto como um trabalhador migrante", ousou afirmar.

Certamente o bullying pode ter efeitos devastadores sobre o indivíduo vítima desse abuso. No entanto, um breve exercício de história mostrará ao presidente da FIFA que o racismo não é bullying. A submissão sistemática de povos africanos vendidos como escravos nos mercados coloniais para encher o bolso de nações escravocratas e a colonização de um continente inteiro retalhado a serviço de interesses imperialistas traz consequências muito maiores aos negros e negras do mundo que um simples golpe na auto-estima. A sanha capitalista dos empresários do petróleo e da construção civil do Catar, e via de regra de todos os países que abrigam a Copa, deixou 6.500 imigrantes mortos pelas péssimas condições de trabalho nos modernos e impressionantes estádios. O resultado de políticas misóginas e homofóbicas faz com que milhares de pessoas sejam mortas simplesmente por serem quem são.

O discurso demagógico dos falsos defensores da democracia muda conforme os interesses da burguesia que os sustentam. Fecham os olhos para as atrocidades nos países aliados aos seus interesses e denunciam espumando pela boca os abusos dos países que se opõem aos seus objetivos econômicos. A FIFA segue essa lógica, assim como os Estados Unidos, França, Inglaterra e por aí vai.

É preciso estar atento a essa lógica para fugir do discurso xenófobo mais conservador que repudia o outro para impor uma norma padrão eurocêntrica elitista e que não olha o próprio umbigo ao criticar uma cultura diferente. No entanto, atenção redobrada ao discurso de cooptação. A abertura da Copa com o ator hollywoodiano Morgan Freeman, mais uma vez cumprindo um papel questionável, e o youtuber Ghanim Al Muftah, foi exemplar da hipocrisia capitalista. “Somos diversos, somos os sonhadores que fazem acontecer”, desde que seja lucrativo e esteja fundamentada na exploração da maioria por uma minoria parasitária.

Os protestos na copa são expressões importantes da força dos oprimidos. Para dar vazão ao justo ódio contra a submissão dos nossos corpos e mentes pelas velhas amarras patriarcais e racistas, é preciso insuflar os pulmões daqueles que tudo constroem, de estádios a cidades inteiras. Pelos 6500 mortos no Catar, por Mahsa, pelo futuro de toda uma juventude de insubordinados, arrebentar os grilhões e abrir as covas para enterrar a burguesia. É preciso olhar a vida com os olhos dos oprimidos e a força com que se levantam é o chute inicial dessa batalha da nossa classe.


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Patricia Galvão

Diretora do Sintusp e coordenadora da Secretaria de Mulheres. Pão e Rosas Brasil
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