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Análise | “Affaire Pelosi”: estaria os EUA modificando sua ambiguidade estratégica com Taiwan?

Nancy Pelosi completou praticamente um dia inteiro de encontros com autoridades taiwanesas em sua passagem pela ilha. Deixou uma mensagem ao 20º Congresso do PCCh.

André Barbieri São Paulo | @AcierAndy

quarta-feira 3 de agosto de 2022 | Edição do dia

Nancy Pelosi completou praticamente um dia inteiro de encontros com autoridades taiwanesas em sua passagem pela ilha. Newt Gingrich, último presidente da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos a visitar Taipei, em 1997, tinha ficado por apenas duas horas. A visita, portanto, quis deixar um sinal diferente em tempos diferentes. Mais propriamente, um sinal do processo de transformação da percepção dos Estados Unidos diante do que está em jogo na Ásia-Pacífico, palco de sua disputa direta com a China.

Antes de se encontrar com a presidente Tsai Ing-wen na quarta-feira, Pelosi manteve conversações com legisladores taiwaneses, incluindo Tsai Chi-chang, vice-presidente da legislatura, a quem afirmou querer impulsionar uma espécie de “cooperação interparlamentar”. O objetivo seria trabalhar com Taiwan para ajudar a implementar a estratégia Indo-Pacífico da administração Biden, que, não é segredo a ninguém, foi designada para conter a expansão da China.

Mudando de paradigma?

Diz um ditado russo que mesmo uma provocação precisa ter certo cálculo. Ao contrário do que escrevia o colunista Thomas Friedman do The New York Times, a visita da chefe da Câmara não tinha motivos “frívolos e arbitrários”. Nesse caso, a arriscada provocação do imperialismo às advertências da ditadura chinesa, ao mesmo tempo em que deixam abertas as portas a escaladas imprevisíveis, tratam de estabelecer novos limites na relação bilateral. “Hoje, nossa delegação veio a Taipei para deixar inequivocamente claro que não vamos abandonar Taiwan”, afirmando um “compromisso de ferro” dos Estados Unidos a Taiwan. “Agora, mais do que nunca, a solidariedade dos Estados Unidos com Taiwan é crucial”.

Um padrão se estabelece, entre a prosa discreta da Casa Branca, e a verve contundente de Pelosi. Enquanto em casa o governo Biden exibe certa prudência, em Taiwan a mandatária Democrata na Câmara foi taxativa quanto à importância de Taiwan para Washington. Estamos diante de um aparente paradoxo, mas explicável politicamente.

Os sinais trocados enviados pela administração Biden, como dissemos ontem em análise, tinham por objetivo suavizar o impacto da positiva chancela estatal norte-americana sobre a chegada de Pelosi a Taiwan, mas garantindo que a visita seria feita em termos oficiais a despeito das ameaças de Pequim. Há fissuras no establishment, e no interior do Partido Democrata, que obedecem as coordenadas imprevisíveis das eleições de meio-mandato, que prognosticam a perda da maioria Democrata no Congresso. Ou seja, todos os passos são apostas sem garantia, e nesse caso, arriscadas. Mas o fato é que, dentro dessas incertezas, a apreensão e a dúvida sobre a conveniência da viagem, reação construída por semanas pelo governo Biden e o Pentágono, serviram ao propósito de melhor cobrir a intenção de Washington de endereçar uma mensagem firme ao vindouro 20º Congresso do PCCh.

A mensagem é que os Estados Unidos está atualizando sua política histórica de ambiguidade estratégica sobre Taiwan. Sem alterá-la no fundamental (ou seja, reconhecendo que Pequim é o único governo da China, e que a República Popular considera Taiwan como parte de seu território), modifica a percepção internacional sobre sua reação diante de uma possível agressão chinesa para forçar militarmente a reunificação. Tudo precisa ser feito com as devidas sutilezas, num caso complicado como esse. Mas é difícil escapar à percepção de que agora, diferentemente da ambiguidade prescrita no Taiwan Relations Act de 1979, Washington interviria militarmente diante da concretização de uma ofensiva reunificadora, cuja necessidade o 20º Congresso do PCCh categoricamente afirmará.

Assinada em 10 de abril de 1979, a Taiwan Relations Act nasceu da necessidade dos Estados Unidos de proteger seus interesses comerciais e de segurança em Taiwan, após o término das relações diplomáticas pelo presidente Jimmy Carter, que subscreveu o retorno das relações diplomáticas com Pequim, realizado por Richard Nixon em 1972. Provocados pela falta de consulta prévia e pela inadequação da legislação proposta pela administração Carter, legisladores Republicanos e Democratas elaboraram um projeto de lei que deveria equilibrar as relações diplomáticas com a China continental, de um lado, e manter relações substantivas com Taiwan, de outro. A Taiwan Relations Act não inclui um compromisso claro dos EUA de intervir militarmente contra um ataque chinês, o que deu a Washington a figura tradicionalmente usada por analistas e estudiosos de “ambiguidade estratégica” sobre se o faria.

O caso é que essa legislação sobre as relações dos Estados Unidos com Taiwan foi feita num momento em que a República Popular era substancialmente frágil economicamente e militarmente, sem possibilidades reais de exercer pressão sobre a ilha. Ademais, foi certificada em meio ao fim da era maoísta e a entrada de Deng Xiaoping, cuja linha mestra era mostrar ao mundo uma China benévola, apostada em uma pacífica ascensão econômica baseada em princípios de não-intervenção estrangeira e respeito à soberania territorial dos países. Em outras palavras, a “ambiguidade” dos Estados Unidos era completamente compatível com a impossibilidade real de Pequim absorver Taiwan. Tudo se torna mais difícil na era Xi Jinping, com uma China que se tornou a segunda potência econômica do mundo, com rápidos avanços técnico-militares e o desejo firme de retratar a assimilação de Taiwan como uma “missão histórica” do Partido Comunista após seu centenário.

Joe Biden, em maior medida que Trump, é expressão de processo sutil, difícil e tortuoso da mudança de paradigma no establishment imperialista norte-americano. Biden foi um agente ativo em erodir a postura tradicional de respeito à política de “Uma só China” com comentários de que os EUA viriam em auxílio de Taiwan em cenário de conflito, algo que não está descrito de maneira direta no Taiwan Relations Act, ainda que deixe espaço aberto para isso. Nancy Pelosi, por sua vez, foi ainda mais clara ao dizer, em presença da presidente Tsai Ing-wen, que “Somos partidários do status quo, não queremos que nada aconteça a Taiwan pela força”, e que “os Estados Unidos fizeram uma promessa sólida de estar sempre com Taiwan, e esta visita é um lembrete disso”. Uma reformulação mais assertiva, não oficial, mas não menos contundente, do pacto de 1979.

Isso não significa que Washington realmente entraria num conflito militar sobre Taiwan. Tudo depende de circunstâncias absolutamente concretas, e não apenas no terreno militar-geopolítico, mas no da luta de classes, que é sempre o decisivo. Entretanto, indica a Xi Jinping e o PCCh que o imperialismo estadunidense entende que a mudança da situação política e social da ditadura capitalista chinesa implica uma modificação nos planos de conduta futuros, dentro dos marcos da disputa estratégica entre Washington e Pequim.

Repercussão negativa na China

Como prevíamos, a primeira reação condenatória da China se deu no âmbito dos exercícios militares. Já na chegada de Pelosi a Taipei, o Exército de Libertação Popular (ELP) anunciou planos para extensos exercícios conjuntos aéreos e navais, além de exercícios de disparo de longo alcance, em seis grandes áreas ao redor de Taiwan, que se estendem às águas territoriais e ao espaço aéreo do país perto de Kaohsiung e Keelung, seus maiores portos. O ELP aguardou a partida de Pelosi para iniciar os exercícios, já em curso e cujo desenho representa um assédio à ilha. Foram condenados por Taiwan como “violação de seus direitos de soberania territorial”. Um editorial no jornal militar chinês, PLA Daily, disse que a visita enviou a “mensagem errada” aos “separatistas” taiwaneses e que “quaisquer contramedidas tomadas pela China são justificadas, razoáveis e necessárias”.

Locais dos exercícios militares

O jornal oficial Xinhua dedicou toda a primeira página a repudiar a visita, publicando com destaque um artigo que historiciza os esforços chineses na era Xi Jinping para a construção de um exército de primeira classe. A ocasião do 95º aniversário de fundação do ELP foi aproveitada para advertir os Estados Unidos. Citando Xi, o artigo diz que “o exército popular defenderá firmemente a liderança do PCCh, salvaguardará nossa soberania nacional, segurança e interesses de desenvolvimento, e manterá a paz regional e mundial”. Como prova da lealdade do alto comando, anuncia que “todas as forças armadas se mantêm alinhadas com o Comitê Central do PCCh, a Comissão Militar Central e Xi ideologicamente, politicamente e em ação, e permanecem absolutamente leais, puras e confiáveis”. Muito esforço para digerir a lealdade, mas exibe a completa hegemonia de Xi Jinping sobre as Forças Armadas que pretende utilizar em seu projeto de reunificação nacional após garantir o terceiro mandato no 20º Congresso do Partido. O Xinhua também destacou a declaração do ministro de Relações Exteriores, Wang Yi, sobre ser uma“inevitabilidade histórica o retorno de Taiwan à pátria chinesa”, uma repetição dos termos de Xi Jinping em 2019.

Ademais, no plano comercial, a China estabeleceu embargos de importação a Taiwan. A Administração Aduaneira da China suspendeu as importações de mais de 2.000 de cerca de 3.200 produtos alimentícios da ilha, bloqueando suas importações e suspendendo temporariamente as exportações de areia natural para o país.

A Rússia ecoou a condenação da viagem pela China, em aparente reciprocidade pela aprovação tácita de Pequim sobre a invasão reacionária de Putin na Ucrânia. Sergei Lavrov, ministro das Relações Exteriores da Rússia, disse que a viagem de Pelosi mostrou uma “determinação dos EUA em mostrar a todos como podem escapar com tudo e fazer o que quiserem. Não vejo outra razão para criar um incidente como este basicamente do nada, com pleno conhecimento do que significa para a China”. A piscadela da Rússia à China, apreciada por Pequim, tem o interesse de seguir aprofundando relações durante o conflito com os Estados Unidos e a OTAN.

As disputas se exacerbam num cenário de guerra na Ucrânia e de crise econômica inflacionária em praticamente todo o globo, e que vem dando crises agudas de regimes políticos e queda dos governos, e processos de luta de classes em países centrais do capitalismo. Como diz o analista internacional George Friedman, do think tank Stratfor, há uma desestabilização sincronizada dos quatro pólos de poder capitalistas mundiais: Estados Unidos, UE, Rússia e China, responsáveis por mais de 60% do PIB global (o Japão estaria incluído na órbita de Washington, e passou pelo recente assassinato do beligerante ex-presidente Shinzo Abe). As distintas facetas da crise se retroalimentam, e podem estender os problemas recessivos. "Há quatro camadas nesta crise. A primeira é uma guerra [na Ucrânia] que, mais do que a maioria das guerras, tem uma grande dimensão econômica, que está criando uma crise na cadeia de abastecimento da União Européia, um bloco que tem estado sob grande pressão de questões financeiras internas. A segunda dimensão é o problema mais amplo da cadeia de abastecimento, que está afetando grande parte do mundo com a escassez de mercadorias e, portanto, criando crises fora dos quatros polos [EUA, UE, Rússia e China] que se estenderão a eles. A terceira é uma recessão cíclica nos Estados Unidos, exacerbada pela interrupção da cadeia de fornecimento global que elevou substancialmente os preços da energia. A quarta dimensão, e não por coincidência, é um apetite decrescente pelas exportações chinesas, juntamente com a escassez de bens importados chave e de capital de investimento".

Um cenário que pode se tornar difícil de controlar diante do conflito EUA e China, e das contínuas consequências que se seguirão à visita de Pelosi, que foi tomada como um desafio a Pequim: até onde a ditadura capitalista na China está disposta a ir (ou tem força para tal) na defesa dos seus interesses na Ásia-Pacífico?




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