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Os “ciclos” da América Latina, um debate de estratégias

Matías Maiello

Os “ciclos” da América Latina, um debate de estratégias

Matías Maiello

Há vários anos a América Latina vem sendo atravessada por elementos de “crises orgânicas” em diversos países. Retomando as definições de Gramsci, podemos dizer que “em cada país o processo é diferente, ainda que o conteúdo seja o mesmo [...] a crise de hegemonia da classe dirigente” [1]. Se tivéssemos que datar o início dessas tendências, seria apropriado localizá-lo a partir de 2013-2014, período que marca o início da época de vacas magras para a região com o fim do boom das commodities. A partir de 2019, esse cenário combinou-se com a irrupção da luta de classes expressa em levantes e revoltas, cujos processos mais importantes se deram no Chile, Equador, Colômbia, Haiti e na Bolívia diante do golpe cívico militar, os quais fizeram parte de um ciclo global.

A pandemia e as quarentenas frearam esses processos. Porém, longe de se apaziguarem, as causas que lhes deram origem se aprofundaram em termos de desigualdade. Cada vez mais é maior o número de perdedores da “globalização”, seja porque viram suas expectativas de progresso frustradas ou diretamente porque ficaram por fora do “pacto social” neoliberal. Na América Latina, segundo a CEPAL, no início de 2022 já havia 22 milhões de novos pobres, um aumento de 2,9% da desigualdade, e uma perda de 47 milhões de empregos em comparação ao ano de 2019. A guerra na Ucrânia e suas profundas consequências globais significaram um novo salto nesse cenário, não apenas em termos geopolíticos, mas também em termos de inflação, endividamento, abastecimento de grãos e energético, de acordo com o país.

Atualmente, muito está sendo escrito sobre a nova “onda rosa” de governos pós-neoliberais ou progressistas na América Latina. A recente vitória de Gustavo Petro na Colômbia e a provável vitória de Lula – na companhia de Geraldo Alckmin – nas eleições presidenciais de outubro no Brasil renovam a discussão. Entretanto, o entusiasmo com essa tendência contrasta com as crises que atravessam esses governos, seja o de Alberto Fernández e Cristina Kirchner na Argentina, o de Castillo no Peru, o retrocesso do de Boric no Chile ou as disputas no MAS na Bolívia. Enquanto isso, Equador e Peru mostram a tendência de ressurgimento da luta de classes na região.

Dentro deste quadro, vamos nos centrar em três perguntas: quais são as características fundamentais dos governos desta “nova onda rosa” que a diferencia do ciclo original? Que papel cumpriram os processos de luta de classes do ciclo 2019-2020 e que problemas levantaram? E, por último, que conclusões estratégicas podemos elaborar diante do que está por vir?

O capital estrangeiro e as condições especiais do poder estatal

Em um recente número da revista Nueva Sociedad, dedicada à análise do novo mapa político regional, José Natanson afirma que:

O contexto atual da volta – ou da chegada “tardia” – dos progressistas ao governo é o da disputa bipolar entre EUA e China. Em contraste com a Guerra Fria, que previa aos países a adesão a um dos dois blocos de maneira inequívoca, como se exigisse exclusividade, a disputa atual tramita de maneira mais ambígua. Em primeiro lugar, porque os dois continentes estão indissoluvelmente unidos: as empresas estadunidenses não poderiam sobreviver um só dia sem a mão de obra barata chinesa, e as companhias chinesas quebrariam se o mercado estadunidense fechasse. Em segundo lugar, a China não exige conversão ideológica a fé maoísta (fé que ela mesma pouco pratica) antes de conceder um swap, outorgar um crédito ou construir uma represa – o que não significa que isso seja de graça [...].

Muitos desses elementos estão certos, entretanto, seria um erro subestimar o fato de que a guerra na Ucrânia marca um novo cenário internacional, muito menos ambíguo, no qual há uma tendência crescente que aponta para dois blocos muito mais definidos. Apesar dos EUA ter conseguido alinhar atrás de si as potências ocidentais – assim como seus aliados asiáticos –, não conseguiram trazer os países dos BRICS para seu bloco, nem mesmo Brasil e México. Os próprios governos progressistas dessa nova safra estão divididos, com Argentina e Chile com posições mais pró-estadunidense. Trata-se de uma mensagem das novas exigências da situação.

Trótski destacava que: “Nos países industrialmente atrasados, o capital estrangeiro cumpre um papel decisivo. Daí a relativa debilidade da burguesia nacional em relação ao proletariado nacional. Isso cria condições especiais de poder estatal. O governo oscila entre o capital estrangeiro e o nacional, entre a burguesia nacional relativamente débil e o proletariado relativamente poderoso”. Muita água passou por debaixo da ponte desde que estas palavras foram escritas, na década de 1930, para analisar a situação mexicana. Porém, apesar do maior desenvolvimento das classes locais – começando pela classe trabalhadora, mas também a burguesia –, aquela configuração de forças de classe no cenário nacional continua a se traduzir, com maiores mediações dependendo do caso, em determinadas “condições especiais de poder estatal”, que fazem os governos oscilarem entre ceder às pressões do capital imperialista ou se apoiar na organização de algum tipo de consenso ativo – e controlado, para evitar tendências revolucionárias – dos trabalhadores.

Esse elemento é fundamental na hora de analisar tanto a ascensão dos primeiros governos pós-neoliberais, como a debilidade hegemônica dos governos de direita que os seguiram, assim como as condições atuais da nova “maré rosa”. No começo do século, a região contou com maiores margens de autonomia em relação ao imperialismo norte-americano, que tinha concentrado seus esforços no Oriente Médio. Algo efetivamente impensável durante o período da “guerra fria”. Durante a segunda década do século XXI, sob a presidência de Obama, essa situação começou a mudar a partir do giro da política exterior estadunidense para a Ásia, ou seja, com a competição com a China sendo colocada em primeiro plano.

Um renovado interesse norte-americano pela América Latina coincidiu com processos que marcaram a política regional, como a operação Lava Jato e o posterior golpe institucional no Brasil, que foi o marco do ciclo de governos de direita empresarial. Mas até então, o retrocesso dos EUA e os avanços da China na América Latina eram um fato, sendo a China o primeiro parceiro comercial de muitos países chaves da região. Esse cenário pode ser considerado como um dos elementos que dificultaram as possibilidades hegemônicas daqueles governos de direita, incapazes de alcançar um apoio sólido do imperialismo norte-americano, como fizeram os neoliberalismos dos anos 1990.

Hoje, com a guerra da Ucrânia, a questão apontada por Natanson como um dos elementos centrais para o êxito dos novos governos progressistas – “a possibilidade de aproveitar a oportunidade geopolítica aberta pela disputa entre China e EUA” –, mostra-se muito menos tranquilizadora e, possivelmente, enquadra-se em um cenário com mais pontos de contato com uma espécie de “guerra fria”. Agora, nessa situação de maior competição entre potências na região, quais são as bases de sustentação dos novos governos progressistas na América Latina?

As bases voláteis dos novos governos progressistas

Em uma parte do número da revista Nueva Sociedad já mencionado, Manuel Canelas afirma: “Uma condição necessária para poder se falar de um ciclo político progressista é que as forças localizadas à esquerda do espectro político ganhem as eleições e cheguem ao governo em uma quantidade significativa de países. Porém, de nenhum modo é uma condição suficiente”. E continua: “Há vários exemplos recentes na região, tanto à esquerda como à direita, em que o resultado de uma eleição não determina um rumo ideológico predeterminado”.

De fato, como diz o velho ditado: o que é necessário para ganhar as eleições não é suficiente para se governar. Também poderíamos dizer, utilizando os termos de Ernest Laclau, que uma coisa é conseguir articular uma série de demandas insatisfeitas por trás de um significante vazio capaz de unificar, de algum modo, um “campo popular” através de símbolos. Outra, muito distinta, é que essas demandas contraditórias – não apenas “diferentes”, mas antagônicas – possam ser absorvidas individualmente quando o “significante vazio” passa à administração pura e simples de um Estado capitalista subordinado ao imperialismo.

A partir daquela análise sobre as “condições especiais de poder estatal”, Trótski desenvolve seu conceito de “bonapartismo sui generis”. Ou seja, um tipo de arbitragem entre as classes que dava lugar ao bonapartismo sui generis “de esquerda” quando se apoiava no movimento operário regimentado para barganhar com o imperialismo (Cárdenas no México ou Perón na Argentina, por exemplo). Enquanto o papel decisivo do imperialismo era um componente essencial na constituição de bonapartismos de direita contra os trabalhadores e o povo, como os constantes golpes militares que atravessaram boa parte do século XX na América Latina.

Uma mudança importante em relação a essa época é a generalização e maior estabilidade de regimes democráticos-burgueses na região. Claro que essa maior estabilidade é relativa comparada com quando os golpes militares eram recorrentes. Na realidade, foi acompanhada pela chamada “instabilidade presidencial”. O cientista político Pérez-Liñán, em seu livro Juicio Político al presidente y nueva inestabilidad en América Latina, propôs a mudança nos seguintes termos: “Em um contexto internacional que não se via com bons olhos as intervenções militares na política, as elites políticas se viram forçadas a encontrar caminhos constitucionais – ou pelo menos pseudo constitucionais – para resolver suas disputas” [2]. Desde o golpe de Honduras em 2009, essa premissa, embora ainda seja a regra, foi se enfraquecendo. O próprio golpe institucional de 2016 no Brasil, embora continue na linha do “impeachment”, traz uma novidade ao incorporar massivamente os militares ao governo. O golpe cívico militar de 2019 na Bolívia expressou outro salto nesse sentido.

Agora, se essas novidades ocorrem no polo direito, o que o polo progressista nos apresenta? Ao contrário dos populismos clássicos, a ideia de governos apoiados sobre a classe trabalhadora para conseguir margem de manobra em relação ao imperialismo não foi apresentada nesses termos no século XXI. Elementos similares podem ser rastreados durante os governos de Chávez na Venezuela, mas com base nas massas pobres urbanas majoritariamente atomizadas. O caso de Evo Morales correspondeu a outro tipo de fenômeno político, com base nas organizações camponesas e indígenas, e seu ascenso ao poder ocorreu no contexto do desvio do levante com características insurrecionais de outubro de 2003.

Mas além desses casos particulares, a tônica geral do primeiro ciclo de governos pós-neoliberais foi a combinação entre uma considerável capacidade de articular demandas para unificá-las simbolicamente e uma ausência quase completa – com suas diferenças em cada caso – de transformações na estrutura dependente e semicolonial dos respectivos países, o que os distancia dos populismos de esquerda clássicos. A possibilidade de “passivizar” o movimento de massas – tirando-o das ruas e absorvendo muitos de seus dirigentes – com aquela contraditória combinação, foi concedida pelo excepcional ciclo econômico que a região viveu naqueles anos e que permitiu uma melhora – seja em termos de renda, subsídios ou assistência estatal – de determinadas variáveis sociais, como a pobreza. Assim, em primeira instância, estes governos foram incapazes de se sustentar além do ciclo econômico que lhes deu origem.

No atual segundo “ciclo” progressista, a articulação simbólica – órfã daquela bonança econômica – é alcançada quase exclusivamente até a chegada do poder. Os casos puros são os “governos progressistas tardios – utilizando a denominação de Massimo Modonesi – como os do Chile, Peru e Colômbia (por suas particularidades ligadas à maior integração com a economia norte-americana, deixamos de lado o caso mexicano [3]). Vemos como tanto Boric quanto Castillo, e principalmente esse último – facilitado por sua condição plena de outsider –, mudaram bruscamente o curso ideológico sustentado na campanha eleitoral.

Castillo foi votado por um setor importante dos trabalhadores e pela grande maioria popular do campo e da cidade, além de alguns setores das classes médias que rechaçavam Keiko Fujimori, e foi visto como uma alternativa de mudança frente à ofensiva neoliberal permanente. Sob pressão da direita e da extrema direita, desde os primeiros meses de seu mandato foi girando para a continuidade das políticas de ajuste neoliberal, deixando de lado todas as demandas que fizeram eco na campanha, começando pela ideia de assembleia constituinte. No caso do Boric, trata-se de um giro menos abrupto, porém decidido, para a “moderação” de expectativas a favor do capital. Absorvido progressivamente pela velha Concertación, negou não apenas a estatização das AFP, mas inclusive a retirada de fundos por parte dos trabalhadores, decretando o estado de emergência e a militarização da Araucanía.

Por outro lado, com os progressismos “de segunda mão” – pegando novamente a denominação de Modonesi – que voltam a governar em novas condições, como na Argentina e Bolívia, o problema é o mesmo, mas aparece sob formas mais complexas. Um dos motivos é que existe um “capital” simbólico construído previamente que se pretende conservar, enquanto que as condições que lhes deram origem já não existem mais. A via para sua conservação é agir como oposição e governo ao mesmo tempo.

No caso boliviano, a oposição dentro do governo de Acre é encabeçada pelo próprio Evo Morales, que o ameaça com a retirada do apoio de alguns movimentos sociais. Suas diversas frações se acusam mutuamente de “golpistas”, uns acusando os renovadores de preparar um golpe contra Evo no interior do partido, e outros acusando o evismo de preparar um golpe contra Arce e Choquehuanca. O caso argentino é agravado pela aguda crise econômica e social que atravessa o país, marcada pelo acordo com o FMI. A vice-presidente Cristina Kirchner já vinha fustigando Alberto Fernández despojando-o praticamente de bases de apoio no peronismo, aprofundando a crise do governo, em particular, a partir da renúncia do ministro da economia em meio a um persistente golpe de mercado e disparada inflação.

Entretanto, se no caso boliviano, em um cenário de relativa estabilidade, não existem diferenças em relação ao curso estratégico da política governamental – coincidindo, por exemplo, em manter a impunidade dos responsáveis políticos e materiais do golpe além de julgamentos pontuais –, no caso argentino, além de elementos parciais, o rumo estratégico marcado pela subordinação ao FMI também não está em questão. Os cenários são muito diferentes em cada caso, entretanto, a comparação tem sentido para mostrar o anacronismo dos progressismos de segunda mão e as contradições que eles contêm. Na atual situação, a gestão do capitalismo semicolonial mata a história.

Processos de mobilização e desmobilização

Entre aqueles que procuram explicar a chamada “moderação” dos novos governos progressistas, Álvaro García Linera propôs uma tese: “A presença e densidade de grandes mobilizações sociais, que precedem ou acompanham as vitórias eleitorais progressistas, é determinante para compreender a radicalidade e margem de ação dos governos”. A partir disso distingue: “De um lado, em países como Argentina, Bolívia, Honduras e provavelmente Brasil, vemos um retorno ao governo com vitórias que não são acompanhadas de grandes mobilizações sociais. De outro lado, em países onde a esquerda triunfa pela primeira vez, como é o caso do Peru, do Chile e provavelmente da Colômbia, o ascenso eleitoral se dá sobre grandes mobilizações sociais contra o velho regime de alianças conservadoras governantes”.

Entretanto, a tese de “quanto maior a mobilização, maior a radicalidade dos governos”, que parecia verdade em abstrato, não dá conta do quadro latino-americano atual. Nem a trajetória de Castillo no governo nem a de Boric a sustenta. Por outro lado, o quadro descrito por Linera tampouco dá conta da enorme mobilização que enfrentou e derrotou o golpe na Bolívia, nem das jornadas de dezembro de 2017 na Argentina que, ainda que em muito menor intensidade, feriram gravemente o governo de Macri. É que a tese de Linera estabelece uma determinada relação “expressiva” entre a mobilização e os governos que surgem, que na realidade desvaloriza o elemento restaurador da autoridade estatal que os governos progressistas levaram e levam em seu DNA.

O próprio García Linera analisou, na época, os ciclos de mobilização e desmobilização na Bolívia. Descreveu um ascenso entre 2000 e 2009 e depois um declínio gradual, marcado pelo abandono das demandas universais e pela “fragmentação corporativa” e “setorial” das lutas. A partir desse ponto de vista, relacionou as mobilizações da direita – às quais o MAS cedeu – com lutas como a do TIPNIS, que pôs sobre a mesa uma violação aos direitos dos povos indígenas, ou os enfrentamentos com a Central Obrera Boliviana. Como conclusão, levantou naquele momento a necessidade de debilitar “os focos de ideologia privatizante, corporativista e exclusivamente salarial que ainda eram presentes, especialmente pela ação de resíduos da direita partidária e do trotskismo” [4]. A partir desse ponto de vista, o MAS contribuiu para desmoralizar sua própria base social e fortalecer a direita verdadeira, que em 2019 passou à ofensiva.

O certo é que o primeiro ciclo de governos pós-neoliberais configurou um amplo e progressivo processo de desmobilização. Mais precisamente, avançou na integração e subordinação das organizações do movimento de massas ao Estado. Para além dos aspectos particulares que diferenciam cada processo – e a Bolívia com a histórica reivindicação cultural indígena é um caso muito especial – poderíamos dizer em termos gerais que, num primeiro momento, esse processo de desmobilização ocorreu em meio ao retrocesso do imperialismo na região e a partir do ascenso econômico que permitiu a melhora da renda – de um piso baixo fruto do retrocesso da etapa anterior –, dos índices de emprego – sobre a base da precarização –, e de assistência estatal – em condições de alta pobreza estrutural. Em um segundo momento, marcado pela maior disputa entre EUA e China na região e o declínio do ciclo econômico, o fez limitando aquelas expectativas e buscando disciplinar os setores que se opunham.

Desse ângulo, a relação entre o nível de mobilização e radicalidade do governo que estabelece García Linera torna-se muito mais complexa. Seria mais útil abordá-lo a partir das condições especiais de poder estatal que mencionamos com Trótski. A partir desse ângulo, os governos progressistas não guardam uma relação expressiva com os processos de mobilização, mas sim são chamados a cumprir uma função de arbitragem – ainda que sem adotar a forma dos clássicos “bonapartismos sui generis” – entre as exigências da subordinação imperialista dos países latino-americanos e o impulso do movimento de massas. Nesse sentido, a tese de Linera não ocorreu no Peru e, em particular, não ocorreu no Chile, não porque o autor tenha superestimado a magnitude das mobilizações que ocorreram, mas porque superestimou a capacidade de arbitragem desse tipo de governo no contexto atual.

O recente ciclo de luta de classes e os limites da revolta

Como pano de fundo desses fenômenos, a contradição que atravessa a América Latina parte, por um lado, da maior pressão imperialista resultante da crise, da guerra e da própria competição sino-estadunidense, e por outro, do movimento de massas que, depois de anos de baixa mobilização na região, vem protagonizando um importante ciclo de revoltas a partir do final de 2019.

Nesses processos de luta de classes, que tiveram no Chile seu principal epicentro latino-americano, prevaleceu a dinâmica da revolta. Ao contrário das revoluções, as revoltas não visam substituir a ordem existente, mas pressioná-la para obter algo. Isso não significa que não possam derrubar governos (por exemplo, do “governador” de Porto Rico, Ricardo Roselló, em 2019) mas o fazem em meio à continuidade de regimes repudiados pelas massas, mesmo que ocorra uma substituição mais ou menos ampla do pessoal político.

Se compararmos os efeitos das revoltas do final do séc XX e princípios do XXI na América Latina com as do ciclo aberto em 2019, os deste último foram mais limitados. Em parte, pela menor amplitude dos processos, mas apenas em parte. A diferente situação, tanto no que diz respeito à retirada do imperialismo estadunidense do Oriente Médio, quanto à recuperação econômica, deu margens de ação muito mais amplas aos Estados burgueses dependentes e semicoloniais da região para canalizar as demandas. Não é o caso da situação atual, onde as perspectivas da situação mundial se dividem entre a inflação e a recessão, ou uma combinação de ambas, e o aprofundamento da competição geopolítica, seja com um enfrentamento limitado na Ucrânia, combinado com algum tipo de “guerra fria” ou a perspectiva, muito menos provável, de uma guerra mais ampla.

Por outro lado, as causas que deram lugar ao ciclo de revoltas de 2019 não apenas seguem vigentes, como se aprofundaram. No início do ano, o Centro de Estudos Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Chile publicou seu informe sobre o “risco político na América Latina”. Um de seus autores, Daniel Zovatto, conclui que: “se os governos não conseguirem gerenciar adequadamente as expectativas e demandas dos cidadãos, e dar respostas oportunas e eficazes às causas profundas que desencadearam os protestos em 2019 (mal-estar social, falta de oportunidades principalmente para os mais jovens, má qualidade dos serviços públicos, falta de confiança dos cidadãos com os políticos e um longo etc.), existe um alto risco de que eles voltem a surgir”.

Vimos algo parecido no Equador, onde os indígenas e camponeses se mobilizaram nas províncias contra o governo de Lasso durante semanas, e a juventude universitária em Quito se colocou lado a lado para enfrentar a repressão e montou centros de coleta de alimentos em solidariedade. As bases da Conaie resistiram vários dias e noites ao ataque das forças repressivas. Por sua vez, no Peru, já no mês de abril deste ano, os camponeses pobres, junto aos setores populares golpeados pela crise econômica, e um setor da classe operária, começaram a ganhar as ruas, com paralisações regionais e cortes de ruas, contra o governo de Castillo e a continuidade das políticas neoliberais. A particularidade é que tiveram seu epicentro nas regiões do interior do país, onde Castillo ganhou as eleições.

Uma primeira diferença importante com o ciclo de revoltas anterior que esses processos já mostras é que, se os enfrentamentos antes se deram exclusivamente contra governos de direita neoliberal, atualmente nenhum lado do espectro político parece salvar-se, como mostra o caso do Peru. Por outro lado, um nó estratégico que segue colocado é que, durante o ciclo anterior, prevaleceu um caráter majoritariamente “cidadão”, ou seja, a expressão atomizada e em boa medida desorganizada do movimento. As burocracias sindicais e dos “movimentos” cumpriram um papel fundamental nessa configuração, separando os diferentes setores que protagonizaram os protestos, e buscando manter o movimento operário – e as posições estratégicas que detém – o mais separado possível do conflito. Esse é um dos grandes problemas que se destacou do ciclo de 2019 diante dos futuros processos de luta de classes.

A forma que a atual crise tomou já está fazendo surgir uma renovada atividade do movimento operário na Europa para enfrentar a inflação, que em alguns casos não se via há décadas: a histórica greve do transporte no Reino Unido, a recente greve dos ferroviários franceses, a greve geral na Bélgica, a greve do metal em Cantábria no Estado Espanhol, a dos petroleiros na Noruega etc. Nos EUA, por sua vez, está se desenvolvendo um profundo processo de organização e luta, protagonizado pela chamada “geração U” (de Union, sindicato em inglês), formando sindicatos em empresas antes impensadas, como a Amazon, Apple e Starbucks. No mainstream começa a se discutir se o avanço de uma “desglobalização” e uma menor competição entre salários a nível mundial, combinado com a alta inflação, vão se fundir com um novo empoderamento dos trabalhadores que começou recentemente.

Sendo a extensão internacional uma das características distintivas do ciclo de luta de classes de 2019, uma pergunta oportuna é: de que maneira se expressarão aquelas tendências nos futuros processos de luta de classe na América Latina? O que parece difícil é que, se estas se desenvolverem, nossa região se mantenha à margem delas. Por sua vez, do ponto de vista do cenário global da luta de classes, a revolta no Sri Lanka, que tem se desenvolvido desde abril, é um produto genuíno do novo cenário mundial e mostra que as tendências que tiveram sua pausa relativa pelas restrições da pandemia estão convocadas a se reativarem.

Estratégias na esquerda

Os elementos que desenvolvemos marcam um ponto de partida indispensável para o debate estratégico de fundo. A situação da América Latina; os elementos da “crise orgânica” que atravessam muitos de seus países; a ausência de soluções claras no quadro de instabilidade internacional colocam a região, em maior ou menor medida segundo as particularidades nacionais, como um terreno “propício para soluções de força”, assim como para a irrupção do movimento operário e de massas. Neste cenário, diante da “moderada” nova onda rosa latino-americana e a ameaça latente de variantes de direita – inclusive de extrema direita – regional, duas estratégias de esquerda se apresentam.

A primeira, encabeçada pela maioria do PSOL brasileiro que, “contra” Bolsonaro e a extrema direita, passou a formar parte da coalizão eleitoral do PT com setores da direita golpista e neoliberal por trás da chapa de Lula com Geraldo Alckmin – um representante do neoliberalismo local mais ou menos equivalente a Macri na Argentina ou a Piñera no Chile. Valério Arcary sintetizou bem em um debate com Diana Assunção e outros dirigentes da esquerda brasileira:

Acredito que a batalha decisiva neste momento – dizia – é a batalha para derrotar Bolsonaro [...] Seria esquerdismo ingênuo passar a segundo plano a importância da batalha eleitoral do próximo 2 de outubro, pois esse é o terreno da batalha. Não é o que eu queria [...], nós queríamos que fosse diferente, queríamos o Fora Bolsonaro nas ruas no ano passado a partir de maio, e fomos uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete vezes e não funcionou. Agora vai ser nas urnas.

Uma variante menos extrema é expressa por aqueles que ainda sustentam que é possível enfrentar a direita de mãos dadas com os neorreformismos ou “populismos de esquerda”, mas apostando em superar a “moderação” da atual “onda rosa”. Martín Mosquera a sintetiza em termos mais globais, no editorial do último número da revista Jacobin:

Tudo indica que, quando emerge uma nova esquerda radical, sem compromissos neoliberais, os setores populares respondem rápido e favoravelmente: Bernie Sanders e Jeremy Corbyn na social-democracia anglo-saxã, Podemos, Syriza e La France Insoumise na Europa continental, o bolivarianismo na América Latina. Por enquanto, o fio não foi completamente cortado: a extrema direita se apoia sobretudo na radicalização da base social tradicional da direita [...]. Disso decorre uma conclusão estratégica. Se queremos combater a extrema direita não podemos nos subordinar – retomando uma expressão cunhada por Keynes do período do entreguerras – ao “partido do velho mundo”: os Macron, os Clinton, os Alckmin. Eles são representantes do status quo contra o qual se levanta a revolta reacionária.

Para além das nuances, trata-se de estratégias predominantemente institucionais combinadas com ações “de protesto”, com a perspectiva de construir alguma espécie de ala esquerda de “frentes anti-direita” (eleitorais e/ou parlamentares) com forças de conciliação de classes – chama-se PT, kirchnerismo, ou qualquer outra coisa. O correlato seria fomentar a convivência pacífica com suas respectivas burocracias nos sindicatos e “movimentos”, e a adaptação a um programa de reformas do capitalismo. O problema são as abundantes conclusões que podem se extrair desta perspectiva, não só a partir da derrota do primeiro ciclo de governos pós-neoliberais, cujo ímpeto de passivização acabou abrindo o caminho à direita, mas do recente ciclo de revoltas na região e das conclusões que é possível extrair dessa nova “onda rosa”, algumas das quais temos delineado neste artigo.

A entrevista com Massimo Modonesi, que publicamos na última edição da revista Ideas de Izquierda da Argentina sintetiza um recorrente paradigma onde “o PSOL sai de uma ruptura e termina agora na cauda ao progressismo brasileiro”, e acrescenta: “outra coisa é a Frente de Izquierda na Argentina, que me parece que é o resultado mais bem sucedido que temos na região”. De fato, aqui estão presentes duas estratégias conflitantes. A segunda, a que apostamos e desenvolvemos a partir do PTS na Frente de Izquierda da Argentina – assim como as diferentes organizações que conformam a FT – envolve aproveitar a experiência de setores da classe trabalhadora e do povo pobre com os novos governos pós-neoliberais da “maré rosa” – no caso da Argentina, com o peronismo e o Kirchnerismo – para pôr de pé partidos revolucionários para a luta de classes.

Em outras palavras, partidos que estejam empenhados em evitar que a energia empregada pelos processos de luta de classes que tem atravessado a região seja canalizada por novas variantes no interior do regime burguês, ou derrotada sob os golpes da reação e, ao invés disso, que transforme-se na fonte de revoluções do século XXI. Partidos cuja intervenção nos parlamentos e nas eleições esteja à serviço da luta extraparlamentar, que disputem com as diferentes burocracias (sindicais, estudantis etc.), articulando volumes de força para impor a frente única da classe trabalhadora e a aliança com o povo explorado e oprimido, com um programa transicional que vá além do mal menor e mire contra os pilares do capitalismo latino-americano submetido ao imperialismo.

A esperança de que o avanço da esquerda, ou pior ainda, de que o avanço rumo ao socialismo do século XXI venha das mãos dos Estados capitalistas semicoloniais, está atrasada em 20 anos. A questão colocada é se, do cenário que está se configurando a nível internacional e na América Latina, a partir do desenvolvimento da luta de classes, pode emergir a força social da classe trabalhadora, capaz de encabeçar a perspectiva de um socialismo desde a base, que, valendo-se de seu lugar privilegiado para articular um poder independente, capaz de aglutinar o povo explorado e oprimido a partir das unidades de produção (empresa, fábrica, escola, campo etc.), e para criar uma nova ordem (socialista), possa avançar em libertar a sociedade da exploração e da opressão. Todo o resto nos remete a um eterno retorno de “ciclos” – cada vez mais degradados, certamente – que seria muito oportuno apostar em superar.


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FOOTNOTES

[1É importante remarcar que a categoria de crise orgânica é motivo de debate sobre em que medida se sobrepõe com características mais ou menos permanentes nos países semicoloniais – para os quais não foi formulada originalmente –, por exemplo, questões apontadas por Gramsci na definição do conceito, como o retrocesso dos mecanismos eleitorais da democracia parlamentar a favor do peso “da burocracia (civil ou militar)” ou as “altas finanças” (capital financeiro), que nas semicolônias são dadas pela debilidade relativa própria do Estado e da burguesia local.

[2Pérez-Liñán, Aníbal, Juicio Político al presidente y nueva inestabilidad en América Latina, Buenos Aires, FCE, 2009, p. 71.

[3Para uma análise sobre o governo de AMLO recomendamos um recente artigo de Pablo Oprinari, assim como a entrevista de Juan Dal Maso com Massimo Modonesi, ambos publicados no Ideas de Izquierda.

[4García Linera, Álvaro, Las tensiones creativas de la revolución quinta fase del proceso de cambio, La Paz, Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolivia, 2011, p. 62.
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Matías Maiello

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