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Os 164 anos de Freud e a revigorada atualidade da psicanálise em tempos de crise e pandemia

Fernando Pardal

Imagem: Alexandre Miguez

Os 164 anos de Freud e a revigorada atualidade da psicanálise em tempos de crise e pandemia

Fernando Pardal

Em tempos de pandemia, completamos nesse dia 6 de maio os 164 anos de nascimento do fundador da psicanálise, o austríaco Sigmund Freud. Na era dos coachs e da psicofarmacologia com as promessas de “curas” pela regulação de neurotransmissores, a exploração do inconsciente e da nossa posição subjetiva continua sendo uma pedra fundamental para entender e transformar o indivíduo e o social.

O número de vezes que a psicanálise foi declarada “morta” é infindável, se equiparando talvez apenas às incontáveis vezes que também tentaram “enterrar” o marxismo. O que poderia parecer uma coincidência fortuita não é. Karl Marx comemorou 202 anos de nascimento dia 5, e no dia seguinte foi a vez dos 164 anos de Sigmund Freud. Duas teorias que, por diferentes vias, incomodam pilares estruturantes de uma sociedade capitalista que – hoje já podemos dizer com todas as letras e difícil será para quem queira contestar – está em franca decadência.

É velha conhecida de quem procure anedotas sobre a psicanálise e suas origens a história de que Freud a situava como um dos três grandes abalos ao narcisismo humano: Copérnico havia tirado a terra do centro do universo revelando sua condição como apenas mais um planeta no cosmos; Darwin havia tirado o homem do centro da criação ao dizer que o homem era apenas um animal, fruto da evolução e descendendo dos macacos antropoides; e Freud, sem falsa modéstia, dizia ter promovido o terceiro abalo ao relevar que o Eu “não é senhor em sua própria casa”, sendo nossa mente governada pelo inconsciente, do qual muito pouco sabemos.

A metáfora é discutível, mas considero-a válida. Acredito, contudo, que falta aí outro abalo decisivo, desferido pelos criadores do materialismo histórico-dialético, Karl Marx e Friedrich Engels, que, dentre outras coisas, demonstraram que não são as “nobres ideias”, nem o “espírito absoluto”, ou Deus, que governam nosso destino, mas sim as condições materiais que, em última instância, determinam nossas concepções de mundo; ou ainda, que o capitalismo, essa forma social tão avançada, era pai de suas próprias contradições e de seus coveiros, os trabalhadores, e estava destinado, como qualquer outra forma social precedente, a desaparecer. E que o todo poderoso capitalista não era mais do que a corporificação do verdadeiro senhor dessa sociedade, a força social impessoal chamada Capital. Ao desvelar o movimento da história, Marx e Engels também elucidaram que “tudo que existe merece perecer”.

Se é fato que a psicanálise ainda pôde ser muito mais facilmente “domesticada” do que o marxismo, por não ter em si explicitamente a indicação de que era necessário derrubar pela força organizada de uma classe subalterna todo o edifício do Estado, fazendo voar pelos ares a propriedade privada e a ideologia que a sustenta, isso não quer dizer que não foi também combatida por diversas vias, inclusive “de dentro”, com teorias que “limpavam” os aspectos incômodos das descobertas freudianas, extirpando seu potencial transformador e crítico e fazendo da psicanálise mais uma psicologia adaptativa, como, por exemplo, na célebre teoria conhecida como Ego-psychology (psicologia do Ego) que frutificou como uma deturpação estadunidense da psicanálise muito condizente com o “american way of life”. Essas doutrinas derivativas sobrepujavam a importância do Eu sobre o inconsciente, tomando como objetivo de seu trabalho o reforço daquele – uma instância psicológica que, por sua natureza, é alienada aos desígnios de um “outro” social – criando assim, como sintetizou Elisabeth Roudinesco, “uma verdadeira religião da felicidade e da integração” ao ter como meta o reforço do Eu como recurso adaptativo às demandas sociais. Mas também o marxismo, em suas versões “acadêmicas”, não escapou ao triste destino de se ver apresentado em uma versão “epistemológica” e sem seu gume revolucionário.

Pandemia, capitalismo e saúde mental

Não queremos aqui falar de história, e sim do terrível hoje: com a pandemia como catalisador, vemos eclodir uma crise social e econômica – cujos profundos reflexos políticos ainda estamos por ver – de proporções monumentais. E as duas teorias declaradas mortas sacodem de si a poeira das calúnias e vilipêndios para mostrar em alto e bom som a sua fulgurante atualidade.

Que em meio à pandemia que mata centenas de milhares, governantes e capitalistas venham a público tentar nos convencer que o melhor a fazer é reabrir normalmente os comércios e “esperar a morte” em nome de seus lucros é um atestado acabado da falência do capitalismo como sistema social onde qualquer tipo de valorização da vida humana possa ser mantido.

E, se na economia a pandemia não fez um “pouso tranquilo”, chegando abruptamente em um terreno de contradições profundas que se agravavam desde 2008, pelo menos, na subjetividade das populações que a enfrentam não foi diferente. O capitalismo não arruína os trabalhadores apenas economicamente e debilita sua saúde física, mas também degrada seu psiquismo por inúmeras formas – e não apenas os trabalhadores, mas a população como um todo, ainda que de formas muito desiguais.

Para ficarmos apenas com um índice que revela a profundidade desse problema, a OMS estima em 450 milhões o número de pessoas com alguma patologia psíquica. Em que pese que todos os termos envolvidos nessa conta – como a definição de “doença mental”, seus diagnósticos e sintomas, por exemplo – devam ser amplamente questionados, o número é expressivo de que há algo que não vai bem com a sociedade. Um número talvez mais expressivo e menos questionável é o de que 800 mil pessoas se suicidam por ano no mundo, uma a cada 40 segundos; um fato que tratamos brevemente aqui e aqui. O capitalismo contemporâneo criou uma pandemia de doenças mentais e de suicídios, e esse é um fato incontestável.

Contudo, esse número alarmante se refere ao capitalismo contemporâneo em tempos “saudáveis”, e, em meio à pandemia, tudo piora. Previsões já falam no dobro de suicídios no Chile em 2020, num país em que esta já era a maior causa de morte na faixa etária de 20 a 25 anos e a segunda maior dos 15 aos 19 (seria coincidência que este país foi o “modelo” do neoliberalismo latinoamericano?). Nos EUA, os casos de depressão e ansiedade já crescem, e se prevê uma crise na saúde mental no país; na Itália também foram noticiados suicídios decorrentes da pandemia, incluindo o de duas enfermeiras. Aliás, a verdadeira barbárie que é a gestão capitalista da pandemia se mostra particularmente entre trabalhadores da saúde, onde vemos consequências como o suicídio de uma médica estadunidense, ou as três “quedas inexplicáveis” de médicos russos submetidos a condições absurdas de trabalho na linha de frente do combate ao coronavírus.

É claro que o isolamento e o medo do contágio, entre outros fatores decorrentes da própria pandemia, podem ser desestabilizadores e nocivos para o psiquismo, mas muito mais grave é o fato de que em nossa sociedade, regida pelo lucro, a vida das pessoas é carne-de-canhão para os patrões e o Estado, e isso se mostra de forma muito mais crua e perversa em um momento como esse. Desemprego em massa, miséria, mortes em larga escala pela ausência de testes, com corpos sendo enterrados em valas e sequer a possibilidade de uma cerimônia fúnebre são apenas alguns dos fatores que podem afetar psiquicamente as pessoas e que não são consequências do vírus, mas sim de uma sociedade que não coloca em primeiro lugar as vidas humanas em risco.

São os neurotransmissores?

Parece que tudo ao nosso redor demonstra o quanto o dogma repetido à exaustão pela “ciência” médica de que são as desregulações bioquímicas de neurotransmissores as verdadeiras causadoras do mal-estar psíquico. Essa tese (sobre a qual tratei mais a fundo aqui) foi por décadas a pedra-de-toque das críticas da psiquiatria para afirmar que a psicanálise estava superada e o inconsciente era “balela”. Tudo se resolveria com psicofármacos, que consertariam os nossos desequilíbrios bioquímicos causadores de problemas que iam da ansiedade e depressão à esquizofrenia. E, se nos primeiros anos após a introdução do uso de remédios psiquiátricos houve algum nível de imbricação entre as duas disciplinas – em particular porque nos EUA e muitos outros países uma parte importante da “domesticação” da psicanálise havia consistido em impor que apenas médicos pudessem ser psicanalistas, contrariando o que Freud sempre defendeu (Cf. “A questão da análise leiga” de 1926) – o inevitável afastamento foi se consolidando conforme a psicofarmacologia ganhava peso e corpo.

A “vitória final” sobre a psicanálise se deu com a publicação da terceira edição do DSM (Diagnostical and Statistical Manual of Mental Disorders) em 1980, a “bíblia” estadunidense para os psiquiatras, classificando diagnósticos e tratamentos, como um grande “manual de instruções” para os médicos. A própria noção de que um manual estatístico de diagnósticos possa balizar o manejo de um tratamento psíquico é radicalmente avessa às concepções psicanalíticas, que procuram fazer aflorar na relação transferencial entre analisante e analista o que está recalcado no inconsciente, dando-lhe um tratamento simbólico por meio da linguagem. Mas na terceira edição do DSM a ideologia de um manual “a-teórico”, e, portanto, “objetivo”, com diagnósticos baseados em listas de sintomas, finalmente triunfou decisivamente, excluindo todas as categorias psicodinâmicas (relacionais) e as etiologias (modelos causais) das doenças, e aferrando-se ao modelo fisicalista compatível com a “comprovação de eficácia” dos ensaios clínicos randomizados – que têm por trás o interesse nada inocente da bilionária indústria farmacêutica.

Mas não há “estatística” possível de estabelecer uma conduta ou tratamento adequado em uma relação que é de qualidade e não de quantidade. Explico-me: na ideia do DSM – que se aferra a uma concepção positivista, ou, na melhor das hipóteses, fenomenologista de ciência – se estabeleceria um tipo de “objetividade” e “universalidade” do diagnóstico e tratamento ao classificar as patologias a partir de sintomas e propugnar um tratamento único para elas – baseando-se na risível afirmação de que não estariam fundamentados em nenhuma teoria sobre o psiquismo, mas apenas em “fatos”. Assim, de uma “lista de sintomas” se poderia aferir, a partir da manifestação de uma determinada quantidade deles, se um paciente tem ou não uma doença, e em seguida passar ao tratamento “adequado” estabelecido pelo manual.

Na psicanálise, contudo, não é a eliminação de um sintoma o que importa: ele é, como um sonho ou um ato-falho, um hieróglifo que precisa ser decifrado no ato interpretativo que se estabelece na relação entre analisando e analista. Diferente do médico, o analista não se defronta com um “paciente” sobre o qual seu saber opera como o cinzel de um escultor sobre um passivo bloco de mármore, mas com um agente, um analisando que é sujeito de sua própria investigação psíquica, e que, estabelecendo uma conexão entre sintomas, lembranças, sonhos, ideias, tentará, num trabalho arqueológico realizado em parceria com o analista, estabelecer relações, nexos e sentidos para as manifestações do inconsciente – entre elas os sintomas – que nos chegam como sinais de fumaça. Assim, um sintoma não é um signo fechado, cujo sentido está estabelecido por um manual. Numa analogia, tomar um sintoma como “desânimo” como um índice fechado de uma lista de sintomas, tal como no DSM, seria como tentar interpretar um sonho com um “manual dos sonhos”, que me diga “borboleta amarela significa morte”. A borboleta amarela de meu sonho terá um sentido radicalmente daquela de outro sonhador, porque ela está ali como uma metáfora de um sentido que precisa ser desvendado: o que é aquela borboleta amarela neste meu sonho?

O psiquismo é social

Nesse sentido, a resposta da psicofarmacologia e das teorias que a sustentam é de um profundo potencial iatrogênico (causador ou agravador de doença). Os sintomas, sendo os “sinais de fumaça” do incêndio que está ocorrendo abaixo da “superfície psíquica”, pedem que se “puxe” eles, como um fio num novelo de lã, para que possamos ir chegando no que está além dele. Os remédios, quando tratados como algo mais do que um paliativo, ou seja, quando tomados como cura para um problema cuja origem é supostamente bioquímica, apenas “tapam o sol com a peneira”: dispersam a fumaça, e deixam o fogo correr solto. O resultado, como muitas vezes se vê – inclusive documentadamente, como trato no artigo supracitado – é que a médio e longo prazo há um prognóstico muitas vezes pior do que para pessoas sem nenhum tipo de tratamento, além do estabelecimento de uma dinâmica de dependência dos remédios. Nada melhor, do ponto de vista empresarial: todos que lidam com a indústria farmacêutica conhecem o mandamento de que é mais lucrativo um cliente vitalício do que um paciente curado.

Há uma boa parte dos psicanalistas – quiçá a maioria – que trata da relação transferencial, do inconsciente e dos problemas psíquicos, como se fossem um tema pertencente ao âmbito restrito às quatro paredes de um consultório; em geral, diga-se de passagem, num bairro nobre e com consultas a preços que não raramente chegam ao valor do salário de um trabalhador precário. É mais uma forma de fazer o potencial explosivo da psicanálise caber “adequadamente” numa sociedade de mercadorias – onde, aliás, ela nasceu e se reproduziu até hoje.

Mas já em Freud se apontava um sentido muito mais profundo e abrangente das descobertas psicanalíticas. Obras tão precoces como Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna (1908) já demonstravam cabalmente que a sociedade é geradora do mal-estar psíquico, e que isso está associado a valores morais, preceitos, condutas. Nesse texto, por exemplo, Freud denunciou a “dupla moral” que permitia ao homem satisfazer suas necessidades sexuais em relações extraconjugais antes e durante o casamento, enquanto à mulher a monogamia é estrita. Ao longo de sua obra desenvolve uma visão que se pauta na lógica de um “contrato social”, onde as pulsões mais primitivas e antissociais – nomeadamente, da agressividade e da sexualidade – seriam reprimidas em benefício da civilização e em nome da possibilidade de convívio mútuo. Contudo, ainda que Freud estivesse longe de enxergar a divisão social do trabalho e a divisão da sociedade em classes, com a propriedade privada e o capital como fundamentos da exploração do homem pelo homem, em momentos de extrema agudeza crítica ele apontou para o fato de que tal repressão não se dá igualmente entre todo os membros de uma sociedade. Em O futuro de uma ilusão (1927) ele vai ao ponto de dizer que uma sociedade fundada na desigualdade não merece se perpetuar:

Quanto às limitações que se aplicam apenas a classes determinadas da sociedade, nos deparamos com condições graves e também jamais ignoradas. É de se esperar que essas classes desfavorecidas invejem as vantagens das privilegiadas e façam de tudo para se livrar de seu próprio acréscimo de privações. Quando isso não for possível, uma medida constante de descontentamento se imporá dentro dessa cultura, o que pode levar a rebeliões perigosas. Se, porém, uma cultura não conseguiu ir além do ponto de que a satisfação de certo número de seus membros tenha como pressuposto a opressão de outros, talvez a maioria – e esse é o caso de todas as culturas atuais –, é compreensível que esses oprimidos desenvolvam uma hostilidade intensa contra a cultura que por meio de seu trabalho eles mesmos possibilitam, mas de cujos bens lhes cabe uma cota muito pequena. (...) Não é preciso dizer que uma cultura que deixa insatisfeito um número tão grande de membros e os incita à rebelião não tem perspectivas de se conservar perpetuamente, nem o merece. (FREUD, 1927, p. 29-30)

Assim, muito contrariamente ao que alguns dos que se reivindicam herdeiros de sua teoria fazem, Freud via que “A oposição entre psicologia individual e psicologia social ou das massas, que à primeira vista pode nos parecer muito significativa, perde muito de sua nitidez ao ser examinada mais a fundo.”, já que considerava que “Na vida psíquica do indivíduo, o outro entra em consideração de maneira bem regular como modelo, objeto, ajudante e adversário, e, por isso, desde o princípio, a psicologia individual também é ao mesmo tempo psicologia social nesse sentido ampliado, porém inteiramente legítimo” (FREUD, 1921, p. 35).

Coronavírus, esgarçamento social e a extrema-direita

Em tempos de pandemia e uma crise orgânica em que os de cima já não podem governar como antes e se encontram sem um projeto claro que os unifique, nem os de baixo têm condições políticas para derrubá-los, a psicanálise não é desprezível para entendermos a recomposição do jogo social. Vladimir Safatle, por exemplo, é um intelectual que – em que pese os desacordos com suas conclusões como a necessidade de defesa do impeachment como saída de “soberania popular” para a crise política – resgata de maneira muito fértil o pensamento psicanalítico, e particularmente o freudiano, para tentar compreender a dinâmica política atual.

Dentre os grandes revolucionários marxistas, Trótski é provavelmente o que deu mais atenção para a fundamental questão da psicologia das classes e das massas, intimamente atrelada às condições sociais e políticas, como um fator de primeira importância política. Não à toa, também foi um dos dirigentes bolcheviques que via com simpatia a psicanálise e ajudou a que ela encontrasse incentivo do Estado operário revolucionário para se estabelecer na União Soviética (sendo posteriormente proibida como “ciência burguesa” e banida por Stálin). Textos como Teses sobre revolução e contrarrevolução ou Questões sobre o modo de vida são obras-primas de análise da psicologia das massas em um processo revolucionário. Em outros trabalhos analisou a psicologia da burocracia que usurpou o Estado operário em benefício próprio. Em seus textos dedicados à análise da ascensão do fascismo na Alemanha, Trótski trata da psicologia das massas da pequena-burguesia arruinada que se tornam a base social sobre a qual prolifera o lodo do fascismo, até se tornar um movimento de massas a serviço do capital financeiro e voltado à destruição das organizações operárias. Sem dúvida, não há explicação melhor do que as do revolucionário russo para os fatores econômicos, sociais e políticos que fazem do fascismo – que nos dias “de paz” tem tão pouca adesão – um movimento de massas durante crises sociais agudas do capitalismo. Mas é fundamental pensar nas contribuições psicanalíticas também para entender especificamente os mecanismos psicológicos que dão a coesão a uma massa.

Cenas como a de pessoas que, em uma impressionante negação de fatos evidentes da realidade, seguem seu líder Bolsonaro para as “marchas da morte”, ou que se ajoelham nas ruas rezando em devoção como fanáticos, nos revelam que os mecanismos de identificação apontados por Freud (particularmente em Psicologia das massas e análise do Eu) são muito poderosos, estabelecendo uma relação dialética com as motivações sócio-econômicas que criam esses movimentos políticos. A desagregação do tecido social com pandemia e crise econômica, e a crise orgânica no campo político, oferecem um terreno fértil para que surja uma figura messiânica como Bolsonaro, que, ao ocupar o lugar simbólico de “pai”, ao oferecer a seus adeptos um inimigo definido claro sobre os quais de projetar a culpa por todas as desgraças (o “PT”, “Lula”, os “comunistas”, as “feministas”, os “intelectuais”, etc.) permite criar uma coesão muito forte entre seus adeptos. Freud descrevia esse processo como o de uma infantilização, em que os membros dessa massa se assujeitam e colocam nessa figura de líder a possibilidade de sua salvação; por isso, estão dispostos a obedecê-lo cegamente e a abrir mão de seu próprio julgamento, tornando sua adesão cega e acrítica – a ponto, por exemplo, de acreditar que é só uma “gripezinha” a despeito de dez mil mortes e a cada dia mais – pois o “pai” sabe sempre o que é melhor para seus filhos. De fato, morrer por ele pode ser uma prova de amor.

Também nos ajuda a compreender porque a sempre evidente estupidez fanfarrona e grosseria de Bolsonaro o tornam, de forma aparentemente paradoxal, ainda mais adequado a esse papel. Em primeiro lugar, reforça o elemento de identificação porque, mesmo ocupando o lugar de pai, ele aparece como “um de nós”, e fala aquilo que muitos pensam, faz aquilo que muitos querem, mas que é proibido aos demais. A sua baixeza aparece travestida de desafio a uma ordem que seria imposta, e o líder se torna a própria encarnação da Lei – a manutenção dessa ordem assim aparece vista como subversiva e radical. Assim, para Bolsonaro é fundamental se mostrar como “perseguido pela imprensa”, vítima da Folha ou da Globo, que seriam comunistas. É um traço comum, aliás, aos líderes da extrema-direita, que em sua retórica se diziam “inimigos dos ricos” e “defensores do povo”. É como se Bolsonaro canalizasse, quando fala as coisas mais abjetas, o desejo de transgressão da ordem para a manutenção dessa mesma ordem, só que representada pela sua própria pessoa e contra as instituições. Todas as injustiças e privações que a sociedade capitalista efetivamente impôs sobre grande parte de seus apoiadores se corporificam nos culpados apontados por ele, e o próprio Bolsonaro como aquele que saiu do meio de “nós” para fazer a justiça. Posta-se assim como um bonaparte, e, para seu séquito cumpre esse papel de líder, pai, e mestre, aparecendo, no entanto, como “um de nós” em oposição às instituições.

Em meio à pandemia, Bolsonaro redobrou essa aposta, e se vê como em sua intenção nem tão velada de querer “ser” o “novo AI-5” e encarnar em si a ordem, ele procura sempre se mostrar como a vítima de uma “velha ordem”, representada pelas instituições do Estado como STF, parlamento, etc. Em nada muda para essa construção ideológica o fato de que enquanto faz essa retórica ele costure sua aliança com o Centrão; exceto, é claro, para aqueles que escolheram como seu “messias” outro candidato a bonaparte, Sérgio Moro. E mesmo em seu discurso após a demissão de Moro, Bolsonaro reforçou essa sua apresentação como uma “vítima” de “poderes do sistema”, no caso a PF dirigida por Moro.

Entender esses mecanismos de identificação, como opera o discurso e os mecanismos psíquicos de construção de uma massa coesa não podem jamais substituir a análise política, econômica e social concreta de uma determinada situação para podermos compreender a dinâmica complexa entre classes e frações de classe; nesse erro caem aqueles que muitas vezes “psicologizam” excessivamente as análises políticas, dando peso desmedido a fatores como esses sem ver que eles podem ser alterados. Contudo, sem entender a relação dialética desses mecanismos psíquicos com fatores econômicos, sociais e políticos, muitas vezes é difícil explicar completamente uma adesão tão profunda de setores populares e de parcelas expressivas da classe trabalhadora a um projeto político que é tão radical e explicitamente oposto a seus interesses; e é mais difícil ainda pensar como atuar para combater os fatores que favorecem essa adesão.

Nesses 164 anos de Freud, essa reflexão breve e, obviamente, muito parcial, tem como objetivo apenas dizer que a psicanálise continua viva e imprescindível para podermos pensar em profundidade a subjetividade humana, seja individualmente, seja socialmente.

Obras citadas:

  •  FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu (1921). São Paulo: L&PM Pocket, 2013.
  •  ___________. O futuro de uma ilusão (1927). São Paulo: L&PM Pocket.
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