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O futuro de Lula no espelho de Alberto

André Barbieri

Imagem: @macacodosul

O futuro de Lula no espelho de Alberto

André Barbieri

Na política brasileira, a roda da Fortuna – que, segundo o bom Sancho Pança, “tanto anda como desanda, e os que ontem estavam nos cornos da lua, hoje estão estatelados no chão” – vem aparentemente favorecendo as perspectivas de Lula para 2022. O último levantamento do Datafolha confere ao petista uma ampla vantagem sobre Bolsonaro, de 46% a 25% no 1º turno, e ainda maior no segundo, de 56% a 31%. Essas projeções não refletem as inúmeras reviravoltas reservadas até o pleito, em que a roda cobrará mais vítimas e será influenciada pelas distintas campanhas de uma ainda fantasmagórica “terceira via”. Mas fazem crescer as expectativas numa possível derrota eleitoral de Bolsonaro, seu governo de extrema direita e sua tétrica herança de ajustes ultraliberais.

Afagados pelas perspectivas, os dirigentes petistas, no parlamento e nos sindicatos, exercem a contenção das massas e adotam a prática do laissez-faire sugerida por Zé Dirceu, no último 7 de setembro, diante das manifestações bolsonaristas: “deixa a direita passar”. Não se pode negar que isso é o que o PT mais vem fazendo. Lula, em primeiro lugar, baixou a cartilha do modus operandi petista: que o mundo pereça sob os ajustes bolsonaristas, mas esperemos as eleições.

No entanto, a realidade mundial, e particularmente latino-americana, contraria os augúrios petistas de uma “era dourada” com Lula. Estrategicamente, os problemas estruturais da economia brasileira seguirão muito além de 2022. As projeções de gregos e troianos conferem ao país magros números para o PIB nos próximos anos, incapazes de recompor as perdas durante a pandemia, que seguem quase uma década de retrocessos econômicos. O desemprego monta a 14%, deixando 14,4 milhões de pessoas sem postos de trabalho. Conjunturalmente, de acordo com o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), do IBGE, a inflação nos últimos 12 meses ficou em 8,99%, com os preços de itens básicos como arroz, feijão e carne bovina até 50% mais caros. A renda dos brasileiros encolheu 5,5% nos últimos dez anos; a queda no PIB per capita na década 2011-2020 é mais intensa que no período 1981-1990, a famosa “década perdida”. O resultado é que a economia brasileira saiu das 10 principais do mundo, estando em 12º lugar, com projeção de queda para 14º em 2021.

Essas circunstâncias respondem à crise capitalista global. A projeção do FMI de crescimento de 6% para a economia global se baseia nos planos de estímulo dos EUA, e na tração chinesa, desconhecendo o caráter heterogêneo da recuperação. Entre 2008 e 2013, houve um aumento de cerca de 12 pontos na pobreza registrada nas famílias trabalhadoras em todo o mundo. A CEPAL define que o crescimento da América Latina e do Caribe em 2021 não conseguirá reverter os efeitos adversos da pandemia (que fez a região ter um PIB negativo de 8% em 2020). A expansão projetada de 5,2% não conseguirá assegurar um crescimento sustentado, já que os impactos sociais da crise e os problemas estruturais da região se agravaram e se prolongarão durante a fase de recuperação. Na Argentina, por exemplo, segundo Estefanía Pozzo do Washington Post, os salários perderam cinco pontos percentuais com a inflação durante o primeiro ano de Alberto Fernández na presidência e, até agora, em 2021, os salários registrados mal correspondem aos aumentos de preços, e os trabalhadores precários continuam a perder.

Nesse cenário, não há espaço para “milagre lulista”, assim como não houve para o retorno do peronismo ao governo argentino. Estamos longe daquelas condições econômicas da década de 2000, em que o superciclo das matérias primas e o eldorado do comércio mundial com a avidez chinesa banhavam as costas brasileiras de dólares baratos. Estas condições favoráveis, que permitiram aos governos de Lula (especialmente em seu segundo mandato) fazer certas concessões às massas, enquanto desabava riquezas sobre os bolsos dos empresários e financistas, não existem mais. A crise da Evergrande na China, parte do robusto setor imobiliário que devorava as exportações brasileiras de minério de ferro, revela o tamanho da fragilidade da economia brasileira, sacudida até os alicerces pelas modificações no padrão de crescimento do gigante asiático (ainda que mantenha suas importações de soja, por exemplo). As reformas de Bolsonaro e Guedes aprofundaram ainda mais a submissão, decadência e dependência da atrasada economia brasileira, algo difícil de se desfazer na estrutura do sistema de Estados capitalista. Um fenômeno de aprofundamento do atraso dependente que, sem levarmos em conta as diferenças de magnitude, que também verificamos com a herança de Mauricio Macri na Argentina.

Não é apenas na economia que encontramos paralelos na sina dos governos de Brasília e Buenos Aires. Se tomarmos a política como economia concentrada (Lênin dixit), é forçoso admitir que as dificuldades econômicas latino-americanas vão erodindo qualquer margem de manobra política para fenômenos “pós-neoliberais” do início do século, que puderam passivizar e desorganizar a classe trabalhadora mediante concessões limitadas, ao mesmo tempo em que mantinham de pé os pilares do neoliberalismo (a precarização do trabalho, privatizações dos serviços públicos, a penetração das multinacionais, a reprimarização exportadora com especialização em commodities, a dependência do capital financeiro internacional). O lulismo significou essa combinação no Brasil, e à sua maneira específica traduziu para o país o que se verificava com o kirchnerismo na Argentina, com o chavismo na Venezuela, o evomoralismo na Bolívia, apoiados todos sobre as bases de economias capitalistas que serviam de apêndices às grandes potências.

Em uma carta de debate com o Partido Socialista Independente (OSP) da Holanda, em 1934, Trótski recordava que “sem reformas não há reformismo, e sem capitalismo próspero não há reformas. A direita reformista se torna anti-reformista no sentido de que ajuda, direta ou indiretamente, a burguesia a esmagar as velhas conquistas da classe operária”. No cenário da crise mundial, o “reformismo sem reformas” é a sina daquelas forças políticas que se afiguravam como “progressistas” ou “pós-neoliberais”. Sem poder reeditar as condições da década de 2000, a ideia de que um retorno de Lula ao governo precisa ser despida de toda ilusão. Um PT na presidência em 2023 não apenas estaria longe de reverter a massa de ataques anti-operários e anti-populares realizados desde 2016; tomando o alerta de Trótski à luz da situação mundial, implicaria também ajudar a burguesia a eliminar as velhas conquistas da classe operária.

O significativo exemplo argentino

A situação da Argentina é sintomática para “levantar as cortinas” daquilo que reservaria ao Brasil um eventual triunfo de Lula.

Alberto Fernández e Cristina Kirchner montaram uma coalizão de governo peronista/kirchnerista a fim de derrotar eleitoralmente o então presidente Maurício Macri no pleito de 2019. A Frente de Todos, assim denominada a coalizão de albertistas e kirchneristas, tinha a seu favor muito mais a aversão de massas à nefasta herança da direita neoliberal de Macri que um suposto encantamento pelo programa peronista. Macri havia aprofundado a destruição dos serviços públicos, oriundos da era neoliberal de Carlos Menem (1989-99) e Fernando De La Rúa (1999-2001), passando pelo breve governo de Eduardo Duhalde (2001-2002), e que continuaram na “década kirchnerista”. O kirchnerismo, com Nestor e Cristina, beneficiando-se do boom das commodities e da bonança da economia internacional, tracionada pela simbiose entre Estados Unidos e China, mesclaram certas concessões (com a contenção do movimento operário pelas burocracias sindicais), preservando as modificações estruturais conquistados pelo neoliberalismo contra a classe operária. O ódio a Macri, que aplicou duras contra-reformas, como a das aposentadorias em 2017 (não podendo aplicar uma reforma trabalhista pela grande luta operária de Pepsico), privatizou e entregou ramos inteiros da economia ao capital estrangeiro, não deixava de levar em conta, em camadas consideráveis, o papel do kirchnerismo na manutenção do atraso e dependência da Argentina. Assim se fizeram as coordenadas das eleições de 2019, com o triunfo de Alberto/Cristina.

A coalizão de governo havia feito campanha “para tirar Macri”, usando bordões como “primeiro os aposentados, depois os bancos”, ou “colocar dinheiro no bolso na população”. O objetivo era aveludar a figura de um governo que “faria o oposto” daquele chefiado pelo empresário argentino entre 2015-19. Mas, com o desenrolar do governo da Frente de Todos, permeado pela pandemia, o que se viu foi “em primeiro lugar, os banqueiros”, e os principais amigos da coalizão peronista/kirchnerista não foram os aposentados, e sim Kristalina Georgieva e o FMI. O dueto Fernández-Fernández – dito de passagem, considerados “grandes estadistas” por stalinistas do PCB e da UP – aplicaram ajustes contra os aposentados. Eliminou-se do orçamento de 2021 o chamado IFE (Ingreso Familiar de Emergencia), e se viu reduzido o salário dos trabalhadores do setor público por ordens de Martín Guzmán, o “Paulo Guedes” argentino. Segundo Pozzo, metade dos trabalhadores da Argentina em 2020 ganhou 17% menos do que o necessário para atender as necessidades básicas de uma família de quatro pessoas. Um informe da Oficina Orçamentária do Congresso argentino revelou que as despesas primárias da Administração Nacional caíram 7,3% ano a ano em termos reais, e que “esta variação se explica principalmente pela queda nas pensões e aposentadorias (9,6 % ao ano) e nos salários públicos (5,0 % ao ano)”. O acordo com o FMI, em troca das habituais receitas de ajustes e reformas neoliberais, mostrou um governo incomodamente semelhante ao de Macri. Como se não fosse o bastante, registros oficiais mostram que os gastos do governo com programas sociais diminuíram 40,8% no primeiro semestre do ano em termos reais. A promessa de terminar com o ajuste de Macri foi um fantasma. Alberto e Cristina atuam como administradores da herança macrista na Argentina pandêmica.

As promessas eleitorais que Lula enuncia em suas entrevistas, ainda que com mais prudência, fazem lembrar o script do peronismo/kirchnerismo “nacional & popular”. Não faltam apelos de Lula a “colocar dinheiro no bolso da gente”, em alusão a dois dos três pilares de contenção do lulismo (“crédito, consumo e conciliação [de classes]”); não deixou de falar que a reforma da previdência de Bolsonaro e do Congresso é uma “bomba de Hiroshima”, embora defenda uma reforma das aposentadorias, e tenha feito desabar sua própria bomba em 2003. Os apelos não condizem com a situação econômica. Tanto assim que o prudente petista vai “preparando” a opinião pública para reduzir suas expectativas, insinuando que tomar a economia quebrada das mãos de Bolsonaro é muito diferente do que tê-la apanhado das mãos de Fernando Henrique Cardoso, que a dificuldade será muito maior, e outros evangelhos dessa natureza. Na boca de Lula, “Eu cheguei à Presidência em 2003 e meus assessores viram que o país estava quebrado. O Brasil hoje está mais destruído. Consertar o Brasil será muito mais complicado. Por isso o povo não pode acreditar em mágico”. É uma forma ladina de prenunciar ajustes futuros (e habituar setores de massas a diminuírem sua resistência subjetiva a eles) que viriam em seu governo, mais uma vez a serviço dos capitalistas.

Os efeitos políticos dos ajustes não são menos sintomáticos. Na Argentina, as eleições prévias do último 12S representaram uma enorme derrota ao governo Fernández-Fernández. A coalizão da Frente de Todos se viu derrotada em grande parte das províncias em nível nacional, inclusive na estratégica Província de Buenos Aires. Esse foi o estopim de uma crise política de proporções na Argentina, que custou a cabeça de uma série de ministros e, mais chamativo, de uma rinha à luz do dia entre Alberto Fernández e Cristina Kirchner, que se desunharam para descontar no parceiro de presidência a responsabilidade pela derrota (mostrando as linhas de falha da coalizão governamental, em que as distintas frações possuem poder de veto uma sobre as outras, mas dificilmente poder suficiente para impor-se umas às outras). Como analisou Fernando Rosso, a verdade é que “a liderança já fraca de Alberto foi ferida e Cristina danificou a sua em um esforço público excessivo para demonstrar poder”.

Importante dizer que o triunfo da direita não se deu por um aumento de sua votação, ou por um “giro neoliberal” das urnas. O que houve foi um “voto castigo” ao governo, não por causa das possíveis mudanças em relação à experiência da direita macrista, mas por causa das continuidades com ela, sobretudo em termos de ajuste. Tanto assim que a esquerda anticapitalista e socialista, reunida na Frente de Esquerda e dos Trabalhadores – Unidade (FITU), fez uma eleição histórica e emergiu como terceira força política nacional (falaremos disso adiante). O importante aqui é que a resposta do governo diante da derrota foi, com muito barulho e minueto, seguir um caminho ainda mais à direita (como nota Christian Castillo neste artigo: alojou o reacionário Juan Manzur no posto de Chefe de Gabinete (Manzur é um fanático religioso contra os direitos das mulheres, ligado ao sionismo e apoiador dos ajustes macristas), Aníbal Fernández como Ministro da Segurança e Julián Domínguez como Ministro da Agricultura, direitistas repressivos com ampla passagem em governos neoliberais como de Menem e Duhalde.

As situações de cada país são particulares, mas esse exemplo do vizinho é ilustrativo sobre o retorno dos chamados “progressismos nacionalistas” burgueses, que prometem reformas numa situação de crise capitalista em que a burguesia quer ajustes. Como nos lembra Trótski, não há reformismo sem reformas, e não há reformas sem capitalismo próspero. O PT, com efeito, já antecipa nos governos estaduais do Nordeste aquilo que faria tendo Lula no Palácio do Planalto. Os governos petistas na Bahia, no Ceará, no Rio Grande do Norte e no Piauí aplicaram as versões locais da reforma da previdência nacional. Rui Costa, governador da Bahia, não tem pudores em prometer cortar salários de professores que não retornarem às aulas presenciais mesmo em meio à variante Delta da COVID-19, sustentando a agressão aos indígenas baianos pela especulação imobiliária. Wellington Dias, governador petista no Piauí, chegou ao cúmulo de colocar a polícia para reprimir manifestantes contrários à reforma das aposentadorias, e aplicou um duro ataque à Universidade Estadual do Piauí, enquanto Fátima Bezerra atende aos interesses empresariais que realizam ondas de demissões no RN.

Imaginemos um Lula no governo brasileiro em 2023, com a crise econômica persistente, a nefasta herança bolsonarista e as alianças do PT com toda a direita “opositora a Bolsonaro” mas que concorda com todos os seus ajustes. O itinerário deixa pouca coisa à imaginação. É bem provável que siga um caminho análogo com o albertismo-cristinismo argentino: será condescendente com as necessidades dos capitalistas e aplicará os ajustes que a direita não conseguiu fazer. Lula já se promove como um bom administrador da agenda econômica que atravessa o país desde 2016 (nunca fala sobre a reforma trabalhista e da previdência, não é sua intenção revogá-las). Migra em caravanas pelo país, e não é defendendo uma “política anticapitalista” como sonham Valério Arcary e o Resistência: está conversando com capitalistas e direitistas de toda coloração, os Sarneys, Calheiros, Barbalhos, Jereissatis, apenas para ficar na região Nordeste (sem mencionar seus amigos FHC, Kassab e demais políticos, que de tudo podem ser classificados, menos de “progressistas”). Lula quer pacificar o país e administrar a herança econômica do golpismo institucional. Uma imagem que projeta no Brasil o filme argentino.

Politicamente, o pêndulo da política burguesa latino-americana segue oscilando entre a direita neoliberal (vimos meses atrás o triunfo do banqueiro Guillermo Lasso no Equador), e algumas variantes pós-neoliberais (autodefinidas como “progressistas”, como Luís Arce na Bolívia, ou Pedro Castillo no Peru). Bolívia e Peru também servem de exemplo ao molde em que chegam os novos ditos “progressistas”. O governo de Arce na Bolívia estende as mãos não apenas aos empresários, mas ao aparato repressivo do Estado que assassinou manifestantes como fruto do golpe de Estado de 2019. Castillo no Peru preencheu seu governo de representantes da direita empresarial, como o chanceler Oscar Maúrtua, e permitiu ao imperialismo norte-americano ingressar com suas Forças Armadas no país, através do convênio com o USAID. Nada muito “progressista” até aqui. Nesse mesmo quesito, o da conciliação de classes, é aquele em que Lula desenvolve sua sinceridade. Como cansou de dizer no Twitter, em seu governo “fazendeiro, empresário, índio, representante sindical” estavam congregados (para garantir os interesses dos proprietários, em verdade), e que, na ausência desse estado de congraçamento, seria urgente dar “confiança a empresários e investidores”.

De conjunto, o movimento pendular da política regional é uma expressão distorcida da profunda polarização social e política fruto da pandemia, mas também da relação de forças não resolvida após as lutas no Equador, a rebelião no Chile ou a luta contra o golpe militar na Bolívia. Essas são contradições que o Brasil vai viver nesse panorama estratégico na América Latina que vai se estender muito além das disputas conjunturais até 2022.

Lula não é uma senha para enfrentar a direita e os ajustes

Esse exercício de previsão estratégica é importante para as tarefas políticas imediatas de uma esquerda que queira estar à altura de enfrentar a extrema direita. O enfraquecimento político de Bolsonaro não significa debilitamento da corrente de extrema direita no país; essa veio para ficar, junto ao peso que os militares conquistaram no cume do aparato estatal. Com efeito, aqui há uma diferença substancial com a situação política na Argentina. Enquanto agora começa a surgir uma figura enamorada do bolsonarismo e da extrema direita, como Javier Milei, no Brasil há um movimento encorpado de extrema direita, alimentado nos últimos anos, que milita e sai às ruas com seu chorrilho de estupidezes mas também demandas políticas reacionárias, como vimos no 7S. Os trogloditas bolsonaristas não vão desaparecer numa derrota eleitoral, como poeira no ar. São um ativo que a burguesia brasileira agitará na medida de suas necessidades, como fez em 2016. A isso se enfrenta com luta de classes nas ruas, não com Lula no Planalto.

Lula não vai reverter nenhuma dessas tendências. Busca conciliar-se com o degradado regime oriundo do golpe institucional, e em caso de vitória eleitoral será constantemente pressionado pela caserna e por essa direita alimentada por Bolsonaro.

Mais que isso: Lula se prepara para administrar a herança da agenda econômica golpista. O reformismo sem reformas tem brilho apenas no âmbito da narrativa. Na dimensão política concreta, mostra o que é: ajuste. O PT já mostra querer aplicar em nível nacional os ataques que desfere a nível estadual.

A independência de classe é um requisito indispensável para erguer uma alternativa anticapitalista no país. O PSOL, o PSTU, nem falar do PCB e da UP, distribuem-se cada um à sua maneira no terreno da adaptação à política da oposição burguesa ao bolsonarismo, desprovidos de qualquer independência política. O programa do impeachment, levantado com forças burguesas como o Cidadania, o PV, a Rede, o PDT, o PSB, é uma declaração política de ceticismo estrutural nas possibilidades da classe trabalhadora emergir como sujeito político independente. Reduz as aspirações de setores da vanguarda a servir de papel auxiliar do “bonapartismo institucional” (composto por aquelas instituições da república que o PSTU, junto às centrais sindicais petistas, chama a “assumir o leme do país”: Supremo Tribunal Federal, Congresso e governadores). O objetivo seria a ascensão do general Mourão como presidente, fruto de um acordo de todo o Congresso golpista.

O terreno eficiente de enfrentamento das tendências autoritárias não está no longínquo 2022. Está na luta de classes, assim como nos esforços por ajudar a erguer a classe trabalhadora como sujeito político independente, potencialmente hegemônico, dotado de um programa que faça os capitalistas pagarem pela crise. Para isso é fundamental enfrentar a paralisia das centrais sindicais, em especial as dirigidas pelo PT e o PCdoB (como a CUT e a CTB), construindo polos classistas e anti-burocráticos que batalhem pela frente única operária no único terreno em que essa tática, na concepção marxista, se aplica: o das tarefas práticas de ação na luta de classes, unificando como um só punho os trabalhadores para resistir aos ataques, e abrir caminho para a influência dos revolucionários. Em pequena escala, conflitos como o da MRV de Campinas, da RedeTV em São Paulo, da Sae Towers em Betim, da Carris em Porto Alegre, e da Proguaru em Guarulhos são sintomas de que há disposição de combate na classe trabalhadora. A contracara da ausência de independência de classes em organizações como o PSOL e o PSTU é a convivência pacífica com essas burocracias, lugar-tenentes dos capitalistas no movimento operário. É necessário batalhar para unificar nossa classe contra as intenções dessas direções, que atendem aos interesses eleitorais de Lula.

No Brasil, essa batalha pela independência de classe começa na luta por impor uma Assembleia Constituinte Livre e Soberana, em que a população possa debater e decidir os grandes problemas que atingem as massas trabalhadoras e pobres do país avançando em sua auto-organização para levar adiante medidas como o não pagamento da dívida pública, a anulação de todas as reformas anti-operárias e uma reforma agrária radical que certamente teriam forte resistência dos capitalistas, e neste caminho seria possível avançar na luta por um governo dos trabalhadores de ruptura com o capitalismo.

Se há algo que precisa ser estudado com cuidado no exemplo argentino, de fato, é a atuação política da Frente de Esquerda (FITU). Como dissemos acima, sendo terceira força política nacional, a FITU conquistou posições e mais de 1 milhão de votos nas eleições primárias com uma política de independência de classes. Está estampada em toda a grande imprensa a possibilidade de emplacar quatro deputados federais nas eleições de novembro, com referências operárias como Alejandro Vilca, gari socialista que na província de Jujuy obteve 23% dos votos. Encabeçada pelo Partido de los Trabajadores Socialistas (que compartilha essa frente com o Partido Obrero, Izquierda Socialista e MST), é a única frente política de independência de classe no mundo, com um programa de governo dos trabalhadores de ruptura com o capitalismo. Para enfrentar a extrema direita nascente (Javier Milei e José Luís Espert) apresentou um programa anticapitalista como a redução da jornada de trabalho para 6 horas, 5 dias por semana, sem redução salarial, com a unidade entre empregados e desempregados para que haja emprego em condições dignas para todos, o não pagamento da dívida pública, a ruptura com o FMI, entre outros pontos. Esses resultados são fruto da penetração do PTS nas estruturas fabris e dos serviços em toda a Argentina, com uma grande força militante nos centros nevrálgicos da economia, tendo como eixo a intervenção na luta de classes (esteve presente em todos os conflitos recentes, como o da Saúde em Neuquén, os vitivinícolas de Mendoza, o setor do citrus em Tucumán, os portuários de Buenos Aires, entre outros).

Eis um grande exemplo para a esquerda brasileira. Não há nada parecido no Brasil com o que é a Frente de Esquerda argentina, que não atua subordinando-se às distintas variantes burguesas, mas combate tanto a direita macrista quanto o peronismo/kirchnerismo. Seu êxito lança luz sobre o conservadorismo da esquerda que apoia-se em Lula para resolver os problemas que somente a classe trabalhadora, organizada politicamente com um programa independente, pode fazer.


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São Paulo | @AcierAndy
Cientista político, doutorando pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é editor do Esquerda Diário e do Ideias de Esquerda, autor de estudos sobre China e política internacional.
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