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SEMANÁRIO

O fim dos “ventos favoráveis” da globalização neoliberal desde o final dos anos 1970

Juan Chingo

Ilustração: Juan Atacho

O fim dos “ventos favoráveis” da globalização neoliberal desde o final dos anos 1970

Juan Chingo

As tendências à inflação não são conjunturais, mas sim um desequilíbrio e uma mudança significativa da economia mundial, que se soma e retroalimenta das fortes tensões geopolíticas, incluindo as guerras como a da Ucrânia.

Não é mais uma crise conjuntural, mas o reverso das contratendências que permitiram o ciclo neoliberal

Como explicamos em várias ocasiões, a saída da crise capitalista mundial dos anos 1970, expressa na queda da taxa de lucro da economia das principais potências imperialistas, não foi produto de uma forte destruição de forças produtivas, como ocorreu na Grande Depressão e depois da Segunda Guerra mundial (ambas na primeira metade do século XX), mas por um aprofundamento e intensificação do que Marx chamou, em O Capital, de contratendências a essa lei tendencial, que considerava a principal lei da produção capitalista.

De fato, a fraca tensão geopolítica sob a égide do imperialismo norte-americano, cuja hegemonia reforçou-se depois da Guerra Fria e da vitória militar contra o Iraque em 1991; a extensão do capitalismo à regiões onde a lei do valor não dominava, como na ex-URSS, Leste Europeu e sobretudo China, gerando não apenas uma ampliação do mercado, mas também uma incorporação massiva de nova força de trabalho; a internacionalização do processo de produção capitalista, criando cadeias de valor mundiais que desvalorizaram mundialmente o preço da força de trabalho e das mercadorias, gerando tendências deflacionárias a nível internacional; a externalização da contaminação ambiental consubstancial a produção capitalista; a privatização de empresas ou domínios que estavam em posse do Estado; a liberalização das economias mais atrasadas da periferia capitalista e, sobretudo, a ofensiva regular contra o conjunto das conquistas do mundo do trabalho; todos esses elementos permitiram uma recuperação da taxa de lucro e uma retomada da produção capitalista depois da crise de acumulação dos anos 1970.

Os novos elementos da economia mundial que se acumulam e dos quais o crescimento da inflação é o mais visível e inédito depois de décadas, longe de ser uma crise conjuntural ligada apenas a fenômenos pontuais como a guerra ou, antes, a pandemia, estão indicando provavelmente a reversão das contratendências, ou dos “ventos favoráveis”, sem que as causas de fundo do crescente estancamento da economia capitalista mundial, dominada há décadas por uma queda da produtividade, tenham sido resolvidas. Nisso concordamos com o economista marxista Michael Roberts, quando afirma que “[...] a restrição da oferta não se deve apenas aos bloqueios de produção e de transporte, ou à guerra na Ucrânia, mas, em minha opinião, sobretudo a uma diminuição subjacente a largo prazo no crescimento da produtividade das principais economias”. E agrega:

“A chave para um crescimento sustentável do PIB real a longo prazo é uma produtividade do trabalho alta e crescente. Mas o crescimento da produtividade desacelerou-se até zerar nas principais economias durante mais de duas décadas e particularmente na Larga Depressão desde 2010. O crescimento da produtividade do trabalho dos EUA está agora em seu nível mais baixo em 40 anos. A crise de produtividade é impulsionada por dois fatores: primeiro, a desaceleração do crescimento do investimento nos setores produtivos (que acrescentam valor) em comparação com os setores improdutivos (como os mercados financeiros, a propriedade imobiliária e o gasto militar). Como porcentagem do PIB, o investimento produtivo nos EUA tem caído constantemente, tanto no investimento civil privado quanto no público. Segundo, por trás dessa diminuição do investimento produtivo está a diminuição a longo prazo da lucratividade de tais investimentos em comparação com o investimento em ativos financeiros e imóveis. A lucratividade do investimento nos principais setores de criação de valor está próxima dos mínimos posteriores à 1945”. [1]

De seu ângulo, alguns economistas burgueses começaram a ver que, além da crise do custo de vida, existem tendências mais amplas em jogo. Agustín Carstens, diretor do Banco de Pagamentos Internacionais, que atua de fato como banqueiro dos bancos centrais, explicou aos banqueiros centrais do mundo como chegamos a esse ponto no recente retiro anual celebrado em Wyoming no mês passado. Citaremos um pouco extensamente algumas passagens de seu discurso nesta reunião, pois é bem significativo. Lá ele disse: “Nas três décadas que precederam a pandemia, quatro ventos favoráveis cruzados fizeram a oferta agregada altamente dependente das mudanças da demanda agregada: um entorno geopolítico relativamente estável, os avanços tecnológicos, a globalização e uma demografia favorável”. Mas, por trás desses ventos favoráveis, estavam se acumulando importantes fragilidades. Carstens disse:

“Os ventos favoráveis da oferta produziram um ciclo econômico distinto ao do pós-guerra. Com uma inflação baixa e estável, a política monetária teve menos necessidade de se endurecer durante as expansões que no passado [...] A política fiscal também teve maior margem de manobra, já que as taxas de juros nominais e reais caíram a seus níveis mais baixos desde que se tem registros. Mas, embora as condições macroeconômicas tenham permanecido benignas, surgiram falhas. O baixo crescimento da produtividade foi um importante sinal de alerta. Nas economias avançadas, caiu durante a Grande Crise Financeira (GCF), o crescimento da produtividade caiu e nunca se recuperou totalmente, como parte de um declínio mais longo que remonta pelo menos ao final da década de 1990. Nas economias de mercado emergentes, o impulso da produtividade da integração nas redes mundiais e das reformais estruturais se mostrou efêmero. A desaceleração posterior da GCF foi a mais acentuada e prolongada das últimas três décadas.”

O pior é que o despertar é rude, “quando os ventos favoráveis se tornam ventos contrários”. Sobre a grave situação atual, afirma:

“Mesmo se as interrupções específicas da oferta, causadas pela pandemia e pela guerra, desaparecerem, é provável que a importância dos fatores da oferta para a inflação permaneça elevada. Isso ocorre porque a economia mundial parece estar à beira de uma mudança histórica, já que muitos dos ventos favoráveis da oferta agregada, que mantiveram a inflação sob controle, parecem prestes a se converterem em ventos contrários. Se assim for, o recente aumento das pressões inflacionárias pode se mostrar mais persistente [...] Mesmo antes da guerra na Ucrânia, o ambiente político era cada vez mais tenso e menos favorável ao princípio da cooperação internacional. Essa reação reflete, em parte, [...] que a globalização vem perdendo força. Outros fatores, mais estruturais, também pesam na integração comercial mundial. À medida que as economias de mercado emergentes convergem com suas contrapartes comerciais mais ricas, a vantagem comparativa com base nos salários se reduz. Os avanços na robótica e tecnologia da informação e comunicações, que diminuem a importância relativa da mão de obra nos processos de produção, também podem favorecer a produção local e desencorajar o comércio mundial de bens. Os últimos acontecimentos podem acelerar ainda mais essa tendência. A pandemia expôs a fragilidade das cadeias de suprimentos globais que priorizam a redução de custos acima de tudo. A guerra na Ucrânia agitou os mercados de matérias primas e ameaçou a segurança energética e alimentar. Também acelerou o reajuste das alianças geopolíticas. Como resultado, o acesso às redes de produção global e aos mercados financeiros internacionais não podem mais ser dado como garantido. Seguir-se-á uma reconfiguração das cadeias de valor globais. Alguns desses desenvolvimentos podem ser justificados. Mas não devemos imaginar que não terão nenhum custo.

Enquanto isso, os ventos favoráveis demográficos estão prestes a se inverter, e a mão de obra pode não ser tão abundante como antes. A geração baby boom está se aposentando. A pandemia pode deixar uma marca persistente tanto na quantidade quanto na qualidade dos trabalhadores. As taxas de participação da população ativa permanecem inferiores aos níveis anteriores à pandemia em muitos países, o que indica uma possível mudança de atitude em relação ao trabalho. A perda de escolaridade e a interrupção dos serviços sanitários habituais durante a pandemia podem ter reduzido o capital humano. A mobilidade internacional da mão de obra também enfrenta obstáculos crescentes. Além disso, mesmo que estes ventos favoráveis não se convertam em ventos contrários, novos ventos contrários estão surgindo. Em particular, as ameaças das mudanças climáticas exigem uma realocação de recursos sem precedentes, induzida por políticas. Isso intensificará os gargalos de alimentos e energia induzidos pela guerra.”. [2]

A crise de 2008-9 mostrou os limites e as vulnerabilidades do ciclo neoliberal. Mas o fenomenal apoio prolongado por parte dos bancos centrais e dos governos, especialmente na América do Norte, Europa Ocidental e Japão, evitou uma destruição significativa de capital nos setores industrial, financeiro ou comercial, ao mesmo tempo que também houve uma ausência de destruição de capital fictício [3]. Pelo contrário, o volume desse último seguiu aumentando com muita força, graças as políticas de “Quantitative Easing” que proporcionam um fluxo permanente de liquidez aos bancos, em particular, e aos mercados financeiros, em geral. Hoje, todas essas medidas passadas reduzem as margens das políticas intervencionistas, ao mesmo tempo que criam um pesado fardo sobre os ombros cada vez mais debilitados da economia mundial, como veremos no ponto seguinte.

Assim, se o ciclo neoliberal perdeu força desde a crise de 2008-9, as massivas intervenções estatais e o papel da China como motor da economia mundial no início da década passada permitiram a manutenção da globalização neoliberal no terreno econômico, com uma grande parte do crescimento artificial, graças às baixíssimas taxas de juros, desembocando na crise de acumulação que estamos entrando nesse momento. Isso tudo ocorre simultaneamente à um salto na perda da base de sustentação política desse modelo, como mostrou radicalmente o trumpismo nos Estados Unidos, para nomear o fenômeno político mais importante, o aumento das tensões geopolíticas e protecionistas e a guerra comercial. É um longo período em que a economia anda aos trancos, o que não descarta recuperações parciais, assim como crises cíclicas mais agudas, mas no cenário de aceleração da crise, em particular onde o sistema capitalista mundial é mais vulnerável, até que se consiga uma saída, ainda que parcial, para o aguçamento de suas contradições. Essa saída dependerá, em última instância, da luta de classes, como foi o caso da imposição do neoliberalismo depois da derrota/desvio dos processos revolucionários do final da década de 1960 e 1970, assim como a restauração capitalista da ex-URSS, Leste Europeu, China e Vietnã.

Rumo a uma crise de acumulação potencialmente mais explosiva que a década de 1970

A rapidez da mudança das condições econômicas é um dos elementos surpreendentes do atual enfraquecimento da situação econômica. Chris Marsh, principal assessor da Exante Data e antigo economista do Fundo Monetário Internacional, fez alguns cálculos e descobriu que o preço do petróleo se multiplicou por 14 entre 1973 e 1979. Nos últimos 23 meses, multiplicou-se por 21. Neste ano, o preço do gás se multiplicou por 8. Isso é mais da metade dos aumentos combinados do petróleo e do gás dos anos 1970 em menos de um terço do tempo. Entretanto, o preço real do petróleo ainda não alcançou os picos daquele período. A inflação global também tem uma base muito menos ampla que a da década de 1970. Isso é especialmente certo no caso da inflação “básica”. No entanto, pode ser assim porque nos encontramos em um estágio inicial do processo inflacionário [4]. É provável que a inflação se amplie quanto mais persistente ela for.

No imediato, o risco de uma recessão global está aumentando. Para a diretora-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), Ngozi Okonjo Iweala, “é de se esperar uma recessão mundial, não apenas em alguns poucos países” [5]. Os fenomenais riscos do mercado financeiro mundial se fizeram presentes de novo essa semana no Reino Unido, à medida que a desalavancagem global se acelera. Por sua vez, a alta do dólar tem causado estragos em todas as moedas, não apenas da dos países semicoloniais. O iene está em um mínimo em 24 anos, o euro está na maior baixa em 20 anos e a libra esterlina está flertando com a paridade com o dólar, agravando ainda mais o peso de suas importações, especialmente em um momento de elevados preços do gás, do petróleo e dos alimentos. O yuan, apesar do superavit comercial sem precedentes da China, está sob forte pressão de depreciação em relação a moeda estadunidense, reabrindo os temores da fuga de capitais, em um momento em que o aumento da preocupação com a dívida e a alavancagem é um mal presságio para a China e para o resto da Ásia. Porém, como um bumerangue, um dólar em alta poderia prejudicar também os benefícios das empresas estadunidenses com importantes operações no exterior.

Por sua vez, os bancos centrais continuam aumentando suas taxas, aumentando o custo dos empréstimos para os consumidores e as empresas, o que levará as empresas mais frágeis à falência, reduzindo a demanda em todos os âmbitos. Pelo que dissemos anteriormente das mudanças ligadas a oferta, é duvidoso que consigam liquidar a inflação, mesmo correndo o risco de agravar as tendências à depressão. Isso significa que as principais economias poderiam entrar em um período de estagflação, não vista desde finais da década de 1970, quando as taxas de inflação se mantêm altas, mas a produção estanca.

Os ventos de crise já golpeiam duramente algumas economias, como é o caso do Reino Unido, o que obrigou o Banco da Inglaterra a intervir massivamente no mercado de títulos diante do risco à estabilidade financeira. Na quarta-feira passada, um alto banqueiro com sede em Londres, descrevendo o momento em que se deu conta que não havia compradores da dívida pública britânica de longo prazo, disse: “em algum momento desta manhã, fiquei preocupado que este fosse o princípio do fim. Não foi um momento Lehman, mas se aproximou” [6]. É que o anúncio de enormes cortes de impostos para as corporações britânicas e para os altos rendimentos, ou seja, uma tentativa de reativar o crescimento econômico a custa de mais dívida pública, fez com que a libra esterlina sofresse uma queda livre que a levou a sua menor taxa de câmbio da história em relação ao dólar estadunidense. Mas, por trás desse risco financeiro, que assustou os bancos centrais de todo o mundo, o problema estrutural que surge é que os aumentos nas taxas de juros que devem controlar a inflação significam a ruína de muitos proprietários e negócios. É que a continuidade de uma grande parte de modelos de negócios do Reino Unido depende de baixas taxas de juros. O mercado imobiliário tem se apoiado nos esquemas de compra para locação (o boom do Airbnb, que duplicou os preços dos imóveis em algumas zonas), que deixaram de ser viáveis de um dia para o outro. Ao longo do próximo ano, assistiremos ao vencimento de muitas hipotecas que foram fixadas nos bons tempos das taxas de juros próximas a zero. Com as taxas de juros básicas e hipotecárias que os mercados projetam para o próximo ano, espera-se muitos vendedores forçados tentando descarregar sua carga de dívida. Muitas famílias terão que lidar com os pagamentos da hipoteca, um choque financeiro que é comparativamente maior para eles que o choque do preço da eletricidade. Essa situação, segundo os analistas, afeta quase 600 mil lares em que a taxa fixa vence no final do ano e quase 1,8 milhões de lares cuja taxa fixa vence no próximo ano. O mesmo pode ser dito de outros investimentos que aparentemente funcionaram bem no contexto do ciclo anterior (taxas zero, abundância de liquidez e respaldo confiável dos bancos centrais aos mercados), como os planos de pensões que se estão prestes a explodir, diante de uma forte desvalorização dos ativos e da perspectiva de insolvências generalizadas. As bolhas especulativas acabam estourando e é um processo de ajuste inevitável e muito perturbador, não apenas no Reino Unido, mas globalmente, como veremos. Na Grã-Bretanha, está levando a tensões inéditas entre o Partido Conservador e a City de Londres. Como uma mostra da gravidade da situação, o FMI, como em 1976 quando estava à beira da falência, interveio para criticar a inconsistência do plano do novo primeiro-ministro.

Mas, além do fato do ano de 2023 se mostrar problemático, a situação global pode ser pior que a da década de 1970, década que marca o fim do boom da pós-guerra, ao menos nos países centrais. Mesmo naquele tempo distante do ponto de vista econômico, a dívida havia aumentado pouco. Apenas os países semicoloniais tinham grandes passivos. O aumento das taxas de juros da Federal Reserve norte-americana foi catastrófica para eles. Nos anos seguintes, ocorreram mais de cem reestruturações da dívida. Na América Latina, se desenvolveu o que se conhece como a “década perdida”.

Hoje em dia, a dívida tornou-se colossal. Jaques de Larosière, ex-diretor administrativo do FMI (1978-1987) e ex-governador do Banco da França (1987-1993), em seu último e recente livro, afirma:

“Em 1970, a dívida global era de 100% do PIB mundial. Em 2020 foi de 250%, um aumento em termos reais de 2,5 vezes em cinquenta anos. Seu valor – 230 bilhões de dólares – se divide em três componentes: 24% do total para os lares (ou sejam 55% do PIB mundial); 36% para as empresas financeiras (ou seja, 83%); 40% para a dívida pública (ou seja, 92%). Mas também é preciso levar em conta que a dívida mundial perdeu muita qualidade nos últimos anos. Enquanto a cota da dívida das empresas não financeiras com qualificação BBB (ou seja, a última entre as empresas com grau de investimento) representava 25% do mercado na Europa e 40% nos Estados Unidos em 2011, as cifras agora são de 50% em ambas as regiões. Isso significa que a qualidade dos emissores se deteriorou rapidamente na Europa nos últimos dez anos. A gravidade dessa deterioração qualitativa da dívida mundial pesa sobre a fragilidade do setor financeiro: quanto mais aumenta a dívida, e quanto mais se endividam os mutuários – algum dos quais estão superexpostos –, mais prováveis e graves serão as crises futuras.” [7]

Em outras palavras, o retorno da inflação aumenta fortemente as vulnerabilidades financeiras. Se, como naqueles anos, os bancos centrais decidirem subir fortemente as taxas, poderá provocar uma crise da dívida muito maior que naquela época, limitada aos países periféricos. Por exemplo, na zona do euro pode ser especialmente vulnerável. O novo governo italiano dirigido pela extrema-direita está na mira, ainda que a inusitada crise britânica o tenha roubado o “vedetismo” desta semana.

No momento, os aumentos da taxa de juros são atualmente limitados em comparação com o endurecimento monetário do final dos anos 1970: entre 1979 e 1981, a Reserva Federal (FED) subiu suas taxas de juros em 9 pontos percentuais. Porém, os bancos centrais, que agora apostam em um aumento sustentado nos preços, podem endurecer fortemente a política monetária [8]. Pelo menos, essa foi a mensagem do atual presidente do FED na reunião de Jackson Hole. As ações posteriores a confirmam. Em setembro, e pela terceira vez consecutiva, a FED subiu agressivamente a taxa de juros dos fundos federais em 75 pontos básicos, o maior aumento da taxa básica de juros em um período de 4 meses desde o início de 1982. Desse modo, a taxa norte-americana permanece na faixa de 3% e 3,25%, o que deixou sua taxa no nível mais alto desde a crise do subprime. Como se não bastasse, deu um forte sinal de que são esperadas altas de mais de 125 pontos-base nas duas últimas reuniões de política monetária do ano.

A especificidade dessa crise pode ser potencialmente explosiva. Isso é o que alerta o economista Nouriel Roubini, que afirma:

“Existem muitos motivos para acreditar que a próxima recessão será marcada por uma aguda crise da dívida estagflacionaria. Como porcentagem do PIB global, os níveis da dívida privada e pública são muito mais altas hoje do que no passado... Nessas condições, uma rápida normalização da política monetária e as crescentes taxas de juros farão que muitos lares, empresas, instituições financeiras e governos zumbis altamente endividados quebrem ou se tornem inadimplentes. As próximas crises não serão como as que precederam. Nos anos 1970, tínhamos estagflação, mas não crise maciça de dívida, porque os níveis da dívida eram baixos. Depois de 2008, tivemos uma crise de dívida seguida por uma inflação baixa ou deflação, porque a crise de crédito gerou um choque de demanda negativo. Hoje, enfrentamos choques de oferta em um contexto de níveis de dívida muito mais altos, o que implica que caminhamos a uma combinação de estagflação ao estilo dos anos 1970 e crise de dívida ao estilo de 2008 – ou seja, uma crise de dívida estagflacionária.” [9]

As consequências sociais ameaçam ser terríveis

No ponto anterior dissemos como os países semicoloniais são um dos elos fracos da futura crise estagflacionária. Hoje, sua dívida em moeda estrangeira representa 25% de sua dívida pública, ante a 15% em 2009. Isso sem falar de sua dívida privada que ascendia a 142% do PIB em 2020, ante apenas 32% ao final dos anos 1970.

Uma nova crise da dívida pode ser o golpe de misericórdia para muitos deles que vem com as contas públicas pressionadas pela pandemia [10]. Suas margens estreitas já se expressam no fato de que, no final de agosto, o volume de empréstimos desembolsados pelo Fundo Monetário Internacional ascendia a 140 bilhões de dólares em 44 programas distintos, um recorde segundo o Financial Times. A cifra, que deve aumentar ainda mais nos próximos meses à medida que a alta das taxas de juros aumente os custos do endividamento, é superior a quantidade de crédito pendente no final de 2020 e 2021, quando os níveis atingiram máximos anuais.

Esses “resgates” são obtidos em troca do “equilíbrio orçamentário” e da “redução dos gastos públicos”: redução que afeta sobretudo os gastos sociais, os subsídios aos preços dos produtos de primeira necessidade, assim como a massa salarial e o emprego do setor público. A natureza reacionária dessa pressão imperialista e de seu caráter inumano pode ser vista no salto brutal da miséria que ela traz consigo, com risco crescente de fome. Mais do que nunca, isso coloca na ordem do dia a mobilização massiva das massas operárias e populares dos países da periferia capitalista, apoiados pelo proletariado internacional, em especial os trabalhadores dos países imperialistas, para pedir aos governos de seus respectivos países a anulação da dívida.

Mas se os países semicoloniais forem duramente atingidos pela crise, não serão os únicos. A crise arrisca atingir fortemente os países imperialistas, em especial na Europa, como o caso britânico antecipa. É o que diz Thomas Grjebine, um dos autores da L’economie mondiale 2023. Segundo este economista, desde 2010 “a economia mundial experimenta a maior, mais rápida e mais sincronizada onda de endividamento dos últimos 50 anos”.

“O aumento da dívida pública é um perigo real para os países que se endividam em moeda estrangeira. Esse é o caso da eurozona, porque a moeda europeia é como uma moeda estrangeira para os países membros que se endividam em uma moeda que não controlam. Não se pode descartar a fragmentação da eurozona.” [11]

A preocupação é sobretudo com os países do Sul, que tem níveis de dívida pública muito elevados (200% do PIB na Grécia, 150% na Itália, 123% na Espanha).

As consequências sociais são dramáticas. Elas foram delineadas pelas recentes declarações de Guido Crosetto, aliado da futura primeira-ministra italiana, Georgia Meloni, e possível ministro em um futuro governo da coalizão de direita, encabeçado pela primeira vez pela extrema-direita. De uma forma brutal que assustou seus sócios da coalizão, em uma entrevista com Avvenire, declarou:

“Estamos prestes a entrar em uma guerra diferente, mas monstruosamente implacável. Será um outono terrível: a pobreza vai disparar, muitas atividades econômicas fecharão... E se a Itália quiser se salvar, se realmente quer sobreviver, terá que combinar todas as melhores energias. E todas significam todas”.

É que, de fato, a crise atual vem depois de anos de degradação das condições de vida e de trabalho como resultado da ofensiva neoliberal, diferentemente da crise dos anos 1970, em que se veio das condições de vida que significaram um colchão social para uma importante camada dos trabalhadores do “boom”. Também porque, embora seja verdade que havia então uma espiral inflacionária, essa não se transformou em crise social, pois, graças a luta e a existência de um baixo desemprego e precarização do trabalho, os trabalhadores conseguiram compensar fortemente as perdas. Assim, na França, “o poder aquisitivo do salário-mínimo aumento 130% entre 1968 e 1983. Ao mesmo tempo, o salário médio aumentou aproximadamente 50%” [12]. Não por acaso, uma das principais decisões da ofensiva neoliberal foi romper esse círculo, que se materializou pela desindexação dos salários na década de 1980. A crise que se avizinha, diferentemente das anteriores e mesmo da crise de 2008/9, corre o risco de um empobrecimento geral da população, um aumento significativo da miséria. A crescente crise fiscal dos estados, a incapacidade de sustentar os lares como em certa medida na pandemia, especialmente nos países imperialistas, os furos cada vez maiores do chamado “Estado benfeitor” fazem com que essas previsões não sejam apenas uma metáfora. O medo da pauperização volta a Europa, aproximando-nos de alguma forma da condição dos explorados nos momentos em que foram escritos o Programa de Transição. Daí a vitalidade e atualidade de algumas de suas demandas no momento presente, quando sustenta que:

“Nas condições do capitalismo em decomposição, as massas continuam vivendo a triste vida dos oprimidos, que, agora mais do que nunca, estão ameaçados pelo perigo de serem lançados no abismo do pauperismo. São obrigadas a defender seu pedaço de pão, pois não podem aumentá-lo nem melhorá-lo [...] A IV Internacional declara uma guerra implacável a política dos capitalistas, que é, em grande parte, a de seus agentes, os reformistas, tendentes a fazer recair sobre os trabalhadores todo o fardo do militarismo, da crise, da desordem dos sistemas monetários e demais calamidades da agonia capitalista. Reivindica o direito ao trabalho e uma existência digna para todos. Nem a inflação nem a estabilização monetária podem servir de consignas ao proletariado, porque são as duas caras de uma mesma moeda. Contra a carestia de vida que, à medida que a guerra se aproxima, se acentuará cada vez mais, só é possível lutar com uma consigna: a escala móvel de salários. Os contratos coletivos de trabalho devem assegurar o aumento automático dos salários correlativamente com a elevação do preço dos artigos de consumo.” [13]

Esse perigo de pauperização que paira sobre as classes populares também atinge a classe média baixa. Esse setor social se encontra sob pressão. Como mostra um estudo da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e a Fundação Bertelsmann na Alemanha, ainda que o perigo de deterioração social seja menor para a metade superior da sociedade que nos anos 1990, ele aumentou para a metade inferior. Como disse Der Speigel: “o fato de que toda a classe média ter diminuído de 59% a 53% da população entre 1995 e 2018 se deve quase por completo ao declínio da classe média baixa”. “Ainda temos uma classe média ampla e estável”, disse Spannagel, “mas está se desgastando na extremidade inferior”. A sensação que prevalecia antes de que com uma formação profissional adequada você tinha um meio de vida segura e talvez pudesse comprar uma casa algum dia se dissipou”. As pessoas da metade inferior, disse, “se deram conta de que, embora a economia esteja crescendo e elas estejam trabalhando como escravos, não estão seguindo adiante”. É um sentimento que muitas vezes se manifesta como um medo difuso do declínio. “A inflação galopante está atuando como um acelerador” [14].

Todos esses elementos são um sintoma de que está se iniciando uma época caótica, com mudanças estruturais que arriscam agravar qualitativamente a condição de vida e de trabalho dos explorados, ao mesmo tempo que podem gerar saltos na luta de classes. Os explorados partem de uma forte divisão e fragmentação da força de trabalho, subproduto do caráter “dualizante” da ofensiva neoliberal, bem como uma fuga da classe média à meritocracia e ao esforço individual (ideologia que também contagia os trabalhadores) para evitar o destino dos setores mais vulneráveis do proletariado. Objetivamente, o caráter inflacionário da crise, expressado na desvalorização dos salários, na carestia de vida e na expropriação crescente das poupanças da pequena burguesia tendem a potencialmente unificar os setores baixos e altos da classe trabalhadora, todos os quais se beneficiam de um aumento emergencial do salário, assim como da escala móvel de salários. Mas, hoje em dia, mesmo quando os grupos multinacionais com lucros recordes se negam a reajustar minimamente os salários dando, na melhor das hipóteses, “bonificações” e não aumentos ao nível da inflação, essa luta não é apenas uma luta distributiva, mas adquire em sua generalização um caráter político de enfrentamento ao conjunto da classe capitalista, seu estado e seus governos. Neste contexto, mais que nunca se faz necessário uma política audaz para romper o peso conservador e de conciliação de classes de todas as alas da burocracia sindical, inclusive as mais contestadoras, que, como no início da ofensiva neoliberal, deixaram passar os ataques. Apenas uma política que lute para arrancar as organizações operárias desse peso morto para a luta, desenvolvendo todas as tendências a auto-organização do conjunto dos explorados sindicalizados ou não, pode mostrar uma perspectiva aos setores pauperizados das classes médias e, assim, impedir que essas sejam ganhas pelo caminho sem saída da extrema-direita e seus bodes expiatórios contra os imigrantes. São essas as bases que tornam urgente passos sérios na construção de partidos revolucionários com um claro norte estratégico e programático. Diante da crise e a redobrada ofensiva do capital, as saídas neorreformistas, que tem como único horizonte reformas cosméticas do capitalismo quando este não está em condições de oferecer anda, apenas desarmam o proletariado frente aos verdadeiros combates a se dar. Mais do que nunca, são eles ou nós.


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FOOTNOTES

[1“Will global inflation subside?”, thenextrecession, disponível em: <https://thenextrecession.wordpress....>

[2Todas as citações de Carstens são de “A story of tailwinds and headwinds: aggregate supply and macroeconomic stabilisation”, Speech by Mr Agustín Carstens, General Manager of the BIS, at the Jackson Hole Economic Symposium, 26 ago. 2022.

[3Na crise financeira de 2008-9, os investidores sofreram uma destruição de capital de uns 9 bilhões de dólares. Mas as perdas dos investidores em ações e títulos hipotecários foram aliviadas por uma impressionante recuperação da dívida pública da OCDE.

[4Por exemplo, o aumento anual de 14% nos preços de produção não energética na Alemanha é impactante. Os bens intermediários sobrem uns 17,5% impulsionados principalmente pelo aumento dos custos dos metais. É preciso levar em conta que os preços de produção são indicadores antecipados da inflação futura, que se medem em base aos preços de consumo. A outra categoria que impulsiona a inflação são os preços dos alimentos, que subiram 22%.

[5“Une récession mondiale se profile”, Les Echos, 28 set. 2022.

[6“Britain’s almost-Lehman moment”, Financial Times, 29 set. 2022.

[7En finir avec le règne de l’illusion financière, Paris, Odile Jacob, 2022.

[8O discurso de Poweel em Jackson Hole foi breve e contundente. Sem papas na língua, afirmou: “reestabelecer a estabilidade de preços levará algum tempo e requer utilizar nossas ferramentas com força para equilibrar melhor a demanda e a oferta. É provável que a redução da inflação exigirá um período sustentado de crescimento abaixo da tendência... Embora o aumento das taxas de juros, a desaceleração do crescimento e a flexibilização das condições do mercado de trabalho reduzam a inflação, também trarão alguns problemas para os lares e as empresas. Estes são os desafortunados custos da redução da inflação. Mas não restaurar a estabilidade dos preços significará um problema muito maior”. Dessa maneira, o presidente do Federal Reserve demonstrou uma resolução inflacionista inflexível, emulando Paul Volcker de acordo com alguns analistas.

[9“Una crisis de deuda estanflacionaria al acecho”, Project Syndicate, 29 jun. 2022.

[10Um estudo que saiu semana passada alerta que 55 dos países mais pobres do mundo devem enfrentar pagamentos da dívida por volta de 436 bilhões de dólares entre 2022 e 2028, dos quais 61 bilhões vencem esse ano e no ano que vem, e quase 70 bilhões em 2024. Disponível em: <https://www.v-20.org/resources/publ...>

[11“L’économie mondiale au bord du précipice”, Les Echos, 7 set. 2022.

[12Según Thomas Gjrebine, op. cit.

[13Subrayado nuestro.

[14“Inflation, Bankruptcies and Fears of Decline: Germany on the Brink”, Der Spiegel, 22 set. 2022.
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Juan Chingo

Paris | @JuanChingoFT
Integrante do Comitê de Redação do Révolution Permanente (França) e da Revista Estratégia Internacional. Autor de múltiplos artigos e ensaios sobre questões de economia internacional, geopolítica e lutas sociais a partir da teoria marxista. É coautor, junto com Emmanuel Barot do ensaio "A classe operária na França: mitos e realidades. Por uma cartografia objetiva e subjetiva das forças proletárias contemporâneas (2014) e autor do livro "Coletes amarelos: A revolta" (Communard e.s, 2019).
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