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"O fenômeno de jovens encantados com o Stálin que lhes é revelado é fruto da ignorância factual histórica". Entrevista com Angela Mendes de Almeida

Seiji Seron

"O fenômeno de jovens encantados com o Stálin que lhes é revelado é fruto da ignorância factual histórica". Entrevista com Angela Mendes de Almeida

Seiji Seron

Trazemos abaixo uma entrevista com Angela Mendes de Almeida, publicada originalmente na revista Revolução Permanente nº 3 (set-nov 2019), sobre seu livro Do partido único aos crimes do stalinismo, a ser lançado em breve.

Angela Mendes de Almeida é historiadora, fundadora do Observatório de Violências Policiais, que foi integrado ao Centro de Estudos de História da América Latina da PUC-SP. Foi militante do Partido Operário Comunista (POC), de orientação trotskista, foi presa duas vezes em 1968 pela ditadura militar, participando das mobilizações estudantis na Maria Antônia e no 30º Congresso da UNE, em Ibiúna, e era companheira de Luiz Eduardo Merlino quando ele foi preso, torturado e assassinado em 1971 pela ditadura militar no DOI-CODI sob o comando do coronel Brilhante Ustra, contra o qual move uma ação ao lado Regina Merlino, irmã de Merlino. Angela trabalhou com a história do comunismo na Europa; em seguida dirigiu suas pesquisas para a história da família, sobretudo no Brasil, atuando principalmente nos temas mulher, família, casamento, literatura e classe social. Dentro dessas pesquisas trabalhou com a violência na história do Brasil e tem trabalhado, ainda, com a violência dos agentes do Estado no período ditatorial e pós-ditatorial.

Revolução Permanente: Angela, em primeiro lugar, gostaríamos de agradecer por ter aceitado conversar conosco a respeito do livro que você acaba de escrever (Do partido único aos crimes do stalinismo, no prelo), que, como seu prefácio – “Refletindo sobre as grandes escolhas do comunismo” – bem anuncia, trata-se de um trabalho que “se debruçou sobre a vida de muitos dos assassinados e de seus parentes e amigos, tentando mostrar como uma morte repercute para bem além do morto” e também em que medida “os assassinos se tornaram, por sua vez, vítimas, pois que a repressão cega se transforma quase que em uma máquina de matar em moto-contínuo.” Me parece que, à medida que tem se desenrolado a crise capitalista mundialmente, muitos jovens revisitam a história da Revolução Russa e se impressionam com suas conquistas, como o desenvolvimento econômico sem precedentes para um país atrasado, com pleno emprego, e serviços públicos como educação e saúde de qualidade comparável a dos países capitalistas mais avançados, bem como a vitória do Exército Vermelho sobre o nazi-fascismo na Segunda Guerra Mundial, mas identificam nessas conquistas a liderança de Stálin e diminuem a importância que teve o processo de degeneração da Revolução e os crimes que o regime burocrático cometeu, inclusive contra os próprios revolucionários, como se o stalinismo tivesse sido um “mal necessário”. Um exemplo dessa tendência foi a defesa de Stálin feita, no evento de comemoração do centenário da Revolução Russa organizado pela editora Boitempo junto ao Sesc, por parte do já-não-tão-jovem José Paulo Netto, professor do Serviço Social da Universidade Federal Fluminense filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB).

Para essa entrevista, nos concentraremos no sétimo capítulo, em que você trata dos assassinados, dos assassinos e das testemunhas, e apresenta vários relatos, testemunhos de memórias de vítimas da perseguição stalinista, muitas das quais inclusive eram comunistas ou simpatizantes do regime soviético. A esmagadora maioria desses relatos é desconhecida pelos jovens, apesar de aprendermos na escola e de o atual governo fazer muita propaganda em relação ao “comunismo” soviético ter sido uma ditadura.

Pode nos contar um pouco sobre a relação entre o aparelho de perseguição stalinista e as políticas da Internacional Comunista (IC), primeiro, do “terceiro período” e do “social-fascismo” e, mais tarde, das frentes populares? E como foi essa relação no Brasil?

Angela Mendes de Almeida: As políticas da Internacional Comunista, desde a sua fundação, em 1919, sempre estiveram profundamente marcadas pela situação interna na União Soviética. Em 1928, no 6º Congresso da Internacional Comunista, ficou definida a caracterização do período que se iniciava, denominado de “terceiro período”, como o de agudização extrema das contradições capitalistas, período em que todas as organizações políticas do capitalismo se “fascistizavam” e, em primeiro lugar, o “social-fascismo”, isto é, na terminologia comunista, a social-democracia. Como se chegou a essas definições aberrantes é difícil explicar no contexto restrito desta entrevista. Mas meu trabalho procurou exatamente destrinchar o caminho percorrido, caminho em que muitas definições permaneceram ambíguas, quando não contraditórias, em especial a definição da social-democracia. Era um partido operário com o qual se deveria buscar fazer uma “frente única operária”, ou era um partido burguês no seio do proletariado? Claro que todas essas definições, ao longo da primeira década posterior à Primeira Guerra Mundial, eram influenciadas não apenas pela situação interna da URSS, mas também pelos acontecimentos da realidade do movimento operário internacional e, em especial, da Alemanha, onde se encontrava o maior partido social-democrata existente e onde o capitalismo mais avançara. A política posta em prática a partir da definição acima relatada era uma política ultrassectária, que fez os comunistas tornarem o combate ao “social-fascismo” o seu objetivo principal.

No contexto alemão, para o qual todos os olhos europeus e soviéticos estavam voltados, isso significou importantes concessões ao nazismo em ascensão, dentre as quais, a mais importante foi a posição adotada em 1931, por ocasião do referendo sobre a Prússia. Por orientação da Internacional, os comunistas votaram a favor de uma proposta dos nazistas, de dissolver antecipadamente o Parlamento daquela província alemã, bastião da social-democracia. O referendo não foi aprovado e o Partido Comunista Alemão ficou bastante desmoralizado. Os escritos de Trótski sobre a Alemanha, publicados no Brasil por Mário Pedrosa, em janeiro de 1933, republicados depois em 1968 e mais recentemente, representam um ponto de vista completamente crítico à linha comunista para a Alemanha nesse período. Esse aberrante posicionamento se concluiu com a ascensão ao poder do nazismo de Hitler, em fevereiro de 1933. E nem isso fez a Internacional mudar de posição. Ela continuou, por mais de um ano, considerando que a ascensão desse regime poderia ser considerada a “antessala do comunismo”, uma das ideias confusas que haviam proliferado durante o chamado “terceiro período”, ou que os nazistas se desmoralizariam rapidamente e cairiam.

Foi apenas em 1935, no seu 7º Congresso, que os comunistas mudaram sua posição, depois que, na prática, nos acontecimentos de fevereiro de 1934, na França, de luta contra os grupos fascistas, os comunistas e os socialistas franceses passaram a atuar em frente única, passando por cima da política ditada pelos soviéticos. No 7º Congresso, a linha foi radicalmente modificada. A partir de então, nas Frentes Populares, os comunistas eram chamados a fazer frente única não apenas com os socialistas (antigos “sociais-fascistas”), mas também, senão principalmente, com os partidos radicais burgueses. Nenhuma autocrítica foi feita. Alguns bodes expiatórios do Partido Comunista Alemão foram considerados culpados de uma aplicação inadequada da linha geral correta. Todo o sectarismo que tinha sido destilado em relação aos “sociais-fascistas”, voltou-se então contra os adversários à esquerda do comunismo: os trotskistas, bem como todo e qualquer militante que ousasse criticar a linha da Internacional, ou a situação na União Soviética.

Era um ódio caudaloso, que tinha sido, entretanto, alimentado dentro da União Soviética, na luta contra a Oposição de Esquerda, liderada por Trótski, depois contra a Oposição Unificada (Trótski-Zinóviev-Kámenev) e, posteriormente, pela liquidação de todas as oposições. Mas um fator novo tinha incrementado esse ódio: a crise na agricultura soviética, com a queda vertiginosa no fornecimento de trigo às cidades, levou o governo a implementar a coletivização forçada das comunidades camponesas, através de uma repressão sangrenta, que levou ao exílio forçado milhões de camponeses, à morte por fome e acidentes, bem como à fuga para as cidades, provocando um verdadeiro cataclismo no país. A definição catastrofista do “terceiro período” tem tudo a ver com o que se passava naquele momento da União Soviética.

A luta contra as oposições passou a ser de vida ou morte. Em dezembro de 1934, quase dois anos depois da ascensão de Hitler ao poder e antes do 7º Congresso, o assassinato de Kírov marcou o início de uma repressão sem precedentes, pelo seu caráter massivo, dentro da União Soviética. Foi nesse contexto que se realizaram os três chamados “Processos de Moscou”. A partir daí, a perseguição stalinista, que antes se fazia essencialmente através de mentiras, artimanhas e calúnias, passou a ser feita através de sequestros, assassinatos e desaparecimentos. Portanto, foi durante o período em que a Internacional Comunista teve a sua política mais “liberal”, aberta à sua direita, que mais se implementaram os crimes letais do stalinismo.

No Brasil, os militantes comunistas seguiram à risca as acusações mentirosas e caluniadoras contra o trotskismo e contra qualquer dissidente. A prática de crimes letais, no estilo stalinista, aconteceu durante o período trágico da repressão aos insurgentes de 1935. Acuados e fragilizados pela perseguição do governo de Vargas, alguns comunistas, por acreditar que estavam defendendo o socialismo e a sua “pátria”, a URSS, praticaram crimes letais. Depois a militância, desorientada, procurou abafar a verdade sobre isso durante décadas, elegendo, como sempre, bodes expiatórios.

RP: Na Rússia, sucessivas pesquisas têm mostrado que as opiniões favoráveis sobre Stálin têm crescido ao longo dos anos e, no Brasil, muitos jovens que se identificam com a esquerda também têm desenvolvido uma visão acrítica, ou mesmo positiva, de Stálin, como dizíamos acima, num momento em que temos um presidente de extrema-direita e em que se fala do “avanço do neofascismo” pelo mundo, visão para a qual também tem contribuído o sucesso das obras do recém-falecido filósofo italiano Domenico Losurdo. Na sua opinião, o que explica esse fenômeno de “reabilitação” ou “nostalgia” do stalinismo? O que gostaria de dizer a esses jovens que, também no Brasil, têm alguma simpatia por Stálin e seu regime?

AMA: Que na Rússia muitas pessoas sintam nostalgia do regime comunista, que identificam com Stálin, é compreensível. A maneira pela qual o capitalismo se reimplantou naquele país no momento da implosão da União Soviética foi catastrófica. Os trabalhadores de lá não puderam contar com as conquistas obtidas no Ocidente em quase dois séculos de lutas operárias e a exploração capitalista se instalou poderosamente.

No Brasil, acho que não se trata de “reabilitação”, pois a herança stalinista nunca foi aqui desmascarada. O que tem havido, nesses últimos anos de centenários de algumas efemérides, são as rememorações dos próprios stalinistas que procuram transmitir aos jovens a sua admiração pelas façanhas de Stálin.

Porém, repare: eles tocam um “samba de uma nota só”. As vitórias do Exército Vermelho contra as tropas nazistas que as fizeram recuar até o coração da Alemanha, a vitória na batalha de Stalingrado, em fevereiro de 1943, como ponto de inflexão em que teve início a derrota de Hitler, enfim, uma memória guerreira, forte, de imposição. Não reivindicam a deportação de milhões de famílias camponesas a partir do início dos anos 1930 para a Sibéria e o Cazaquistão. Não rememoram as execuções sumárias, sem julgamento, de centenas de milhares de comunistas, nos anos do Terror, entre 1936 e 1938. Não lembram a deportação de etnias inteiras durante a guerra, para as regiões asiáticas longínquas, como os tártaros da Crimeia e os alemães do Volga. E para ficar em memórias guerreiras, não rememoram a repressão à elite militar do Exército Vermelho, em 1936, que privou o país de generais como Tukhatchiévski e outros, bem como de cerca de 980 outros oficiais, presos, torturados ou fuzilados, que poderiam ter evitado as derrotas dramáticas e humilhantes do primeiro ano e meio da guerra.

E esses stalinistas não são obrigados a contestar tais fatos, porque os anti-stalinistas não divulgaram adequadamente os crimes do stalinismo. Ou seja, o fenômeno de jovens encantados com o Stálin que lhes é revelado é fruto da ignorância factual histórica. E há um outro elemento nesta história que seduz: a força da vitória. Em geral, são militantes que defendem lutas vitoriosas pelo seu caráter de vitória e de poder. Não são capazes de defender as lutas derrotadas, pelo valor e justeza de suas reivindicações. Por isso a vitória soviética na Primeira Guerra Mundial é o seu grande argumento, não importando o preço pago pelo povo soviético.

RP: Para finalizar, termino com a epígrafe que abre o seu livro. Trata-se de uma citação do dirigente trotskista italiano Pietro Tresso, extraída de uma publicação da Quarta Internacional, na qual se lê: “O stalinismo se apresenta como a única força que luta de forma resoluta e racional contra o fascismo no mundo. Quem não esteja disposto a lhe reconhecer esse título, a se submeter às suas declarações, quem tenha a audácia de lhe retirar a máscara e de mostrá-lo às massas tal como é, com sua depravação e sua hipocrisia revoltante, cai inexoravelmente sob os golpes de seu ódio sem limites e de suas calúnias insolentes.” (Pietro Tresso, “Stalinisme et Fascisme”, Quatrième Internationale, agosto de 1938). Você poderia comentar por que abrir o livro com essa citação?

AMA: A escolha desta frase de Pietro Tresso para abrir o trabalho tem a ver com o nível de consciência que ele demonstrou. Como militante trotskista italiano exilado na França, ele lutou com todas as suas forças contra o nazismo invasor, quando as tropas de Hitler ocuparam a metade norte daquele país. Tanto é assim que foi preso pela polícia da França de Vichy, aliada de Hitler. Mas não deixava de lado o combate ideológico contra as mentiras e manipulações do stalinismo, pois acreditava que a defesa da verdade era uma ferramenta indispensável na luta pelo socialismo. Depois de ser retirado da prisão através de uma fuga organizada pela Resistência francesa, foi levado, com mais outros três trotskistas – Jean Reboul, Maurice Sieglmann e Abraham Sadek –, para um acampamento guerrilheiro. E foi lá que os quatro foram brutalmente assassinados, no fim de 1943, por comunistas de uma das cúpulas guerrilheiras. Assassinados por serem trotskistas e pela fama da combatividade de Pietro Tresso. E na tradição stalinista, o crime foi negado e ocultado durante décadas pelos “companheiros”, seu esclarecimento só vindo à tona depois da implosão da União Soviética em 1991.


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Seiji Seron

Bacharel em Ciências Econômicas (PUC-SP), mestrando em Desenvolvimento Econômico (Unicamp)
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