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O espectro de Trótski em Pequim

André Barbieri

Ilustração: Isadora de Lima Romera | @garatujas.isa

O espectro de Trótski em Pequim

André Barbieri

Neste artigo, retomamos alguns traços da influência da história chinesa do século XX para o desenvolvimento teórico do trotskismo, e a importância do trotskismo na tradição endógena do marxismo chinês, uma combinação fundamental para pensar o socialismo chinês no século XXI, para além das fantasias dos portavozes de Xi Jinping no Brasil.

"Camaradas! Os erros atuais do partido não são problemas parciais ou acidentais: como no passado, eles são a manifestação de toda a política oportunista conduzida por Stálin na China. Os chefes responsáveis do Comitê Central do Partido Comunista Chinês, que estão dispostos a ser bonecos de ventríloquo de Stálin, nunca demonstraram nenhuma consciência política e estão ficando cada vez piores: eles não tem salvação. [...] Cada comunista chinês tem a obrigação de salvar o partido. Devemos voltar ao espírito e à linha política do bolchevismo, unir-nos solidamente, e ficar ao lado da Oposição Internacional liderada pelo camarada Trótski, ou seja, sob a bandeira do verdadeiro marxismo, e lutar de forma decisiva, persistente e profunda contra o oportunismo da Internacional Comunista de Stálin e do Comitê Central do partido chinês"

As palavras que constam do último parágrafo da Carta a Todos os Camaradas do Partido, escrita pelo fundador e ex-dirigente do Partido Comunista Chinês, Chen Duxiu, em 10 de dezembro de 1929, são reveladoras da importância do trotskismo na história do movimento operário chinês. É uma tradição perseguida e asfixiada tanto pelo governo nacionalista burguês quanto pela burocratização maoísta; entretanto, tem raízes profundas que demonstram a vitalidade do porvir. Chen, que havia sido o principal fundador do Partido Comunista Chinês em Xangai, em 1921, era parte de uma ampla camada de intelectuais progressistas que enraizaram sua influência na história nacional durante o Movimento 4 de Maio de 1919, no combate aos desmandos de um governo republicano entreguista saído das entranhas da dinastia Qing. Sua participação na modernização da vida cultural chinesa ficou marcada na revista Nova Juventude, lançada em fevereiro de 1917, o ano da Revolução Russa, tendo como consigna a “revolução literária e cultural” na China. Junto com importantes intelectuais e literatos progressistas – Lu Xun, Li Dazhao, Qian Xuantong, Shen Yinmo, Gao Yihan, Liu Bannong – Chen Duxiu formara uma frente única cultural para abolir o obscurantismo da escrita chinesa, franquear aos extratos mais baixos da população o acesso negado pela hierarquia confuciana à educação, e transformar a própria língua falada e escrita no país. A simbologia da guerra total contra o “feudalismo nas artes” foi o Diário de um louco, de Lu Xun, que teve muita influência nos círculos de vanguarda. Em 1920, dois anos depois do vernáculo ser adotado pela Nova Juventude como nova linguagem literária, passava ao desuso a linguagem clássica chinesa.

Com todas as contradições derivadas de um movimento cultural policlassista, tratava-se de uma primeira expressão da “nova era” da Revolução Russa que soprava num país entre o “já não mais” da Primeira Guerra Mundial e o “ainda não” de sua autodeterminação nacional. Esse papel cultural, que levou a literatura estrangeira e em particular a russa depois do Outubro de 1917 até a China, não é de menor importância para entender a mudança no pensamento das alas mais radicais do PCCh diante dos acontecimentos revolucionários que se sucederiam.

Retomando o fio dos acontecimentos revolucionários, Chen Duxiu havia dirigido a política oportunista do stalinismo que levara à derrota da segunda Revolução Chinesa, de 1925-27. Sua taxativa declaração de balanço é sintomática sobre a evolução política de muitos comunistas chineses depois da derrota da revolução em 1927. Ao entrar em contato com os escritos de Trótski sobre o tema, severamente críticos a Chen, este considerou Trótski “100% correto” em toda a sua luta política contra Stálin, e a sua forma de encarar estrategicamente o balanço da revolução. A carta a seus camaradas de partido tinha como objetivo defender o trotskismo e abrir as portas da construção da Oposição de Esquerda oficialmente na China no início dos 30.

É comum pensar que na história da China houve apenas aderentes das políticas de Stálin, pela propaganda dos próprios stalinistas, enamorados com o regime de produção capitalista restaurado e encabeçado pelo PCCh de Xi Jinping. Mas nada podia estar mais longe da verdade. Uma importante coluna de dirigentes e quadros do PCCh, ao conhecerem as divergências que opunham Trótski à linha catastrófica do Stálin, se converterem em trotskistas, e deram origem à Oposição de Esquerda trotskista na China, a 1º de maio de 1931, com quase mil militantes. Cinco dias depois, 81 antigos comunistas que tinham responsabilidades de direção no PCCh tornaram público um texto intitulado Nossa Posição Política. Esta declaração saiu abertamente a favor de Trótski: “Se tivéssemos tido a direção política de Trótski, antes de 1927, talvez tivéssemos sido capazes de liderar a Revolução Chinesa no caminho da vitória”. Esta nova corrente, que nasceu do seio do Partido Comunista, era a expressão de uma autêntica corrente em pleno desenvolvimento político. A partir de Xangai, desenvolveu-se para outras regiões e estabeleceu filiais em Pequim, Tianjin, Wuhan, Sichuan, e Ningpo, bem como em Shantung e Anhui. Isso colocou o stalinismo em uma severa crise na China, fazendo com que Stálin ordenasse uma série de investidas repressivas para acabar com o trotskismo nascente.

Grandes dirigentes como Peng Shuzhi, Chen Bilan, Wang Fanxi, Luo Han, entre outros, emergiram como as cabeças do proletariado chinês, e em polêmica com o stalinismo passaram a publicar um jornal, “Faísca” (Iskra). Essa primeira geração de jovens trotskistas tinha sido parte das levas de estudantes que visitaram Moscou a partir de 1927 e entraram em contato com os documentos da Oposição, trazendo esses documentos pra China a fim de iniciar um trabalho pioneiro. Em suas memórias, o jovem comunista Wang Fanxi recordava nessa época o primeiro contato com as justas indicações de Trótski e dos oposicionistas contra a orientação de Stálin que levara à derrota em 1927:

“O primeiro documento da Oposição que li foi as Teses de Zinoviev sobre a Revolução Chinesa. Um pouco mais tarde, li “A Revolução Chinesa e as Teses do camarada Stálin”, de Trótski, e depois disso a Plataforma da Oposição Unificada do Partido Comunista da URSS. Eles tiveram um enorme impacto sobre mim, por causa de sua lógica inatacável e também por seu soberbo estilo. Eles eram um verdadeiro contraste com os documentos sem vida e insípidos do Comitê Central [do PCUS, dirigido por Stálin]. Os argumentos e advertências da Oposição, especialmente aqueles preocupados com a Revolução Chinesa, eram tão obviamente verdadeiros que eu não pude deixar de acenar vigorosamente em acordo com eles. Percebia então que em todas as questões fundamentais os líderes do Partido Comunista Chinês tinham agido sob ordens de Stálin; que as políticas mal concebidas que tinham levado à derrota da Revolução Chinesa estavam muito longe de ser os erros de Chen Duxiu; e que esses erros tinham sido advertidos com antecedência e poderiam ter sido evitados.”

Wang Fanxi foi quem traduziu clandestinamente ao idioma chinês o documento de Trótski, Crítica ao Projeto de Programa da Internacional Comunista, de 1928. Como narra Damien Durand em seu The birth of the Chinese Left Opposition, a respeito da criação da oposição trotskista chinesa em Moscou:

“A criação do comitê de liderança foi um passo decisivo na formação da Oposição chinesa em Moscou. A partir deste momento, sua influência continuou a crescer entre os estudantes chineses. A existência desta organização tornou-se rapidamente um segredo amplamente compartilhado pelos alunos da Universidade dos Povos do Oriente. Os documentos da Oposição foram discutidos abertamente, mesmo na presença de estudantes que ainda não haviam aderido à Oposição. Uma cópia mimeografada da Crítica ao Projeto de Programa da Internacional Comunista foi traduzida por Wang Fanxi e lida pelos oposicionistas chineses, depois de ter circulado entre os oposicionistas russos. Wang fez parte desta tradução no apartamento de um oposicionista russo, Poliakov, que foi preso pela GPU, juntamente com todo o comitê secreto de Moscou da Oposição Russa. A Oposição estava sendo reprimida ferozmente, mas os oposicionistas chineses não ficaram alarmados. Entre os militantes que foram presos, ninguém traiu os laços entre os oposicionistas russos e os chineses, ou as atividades dos oposicionistas chineses. Esta indicação de força está relacionada a dois fatores: a confiança dos estudantes e dos oposicionistas na linha política da Oposição nas questões chinesas, e a dificuldade que os stalinistas encontraram em dominar este meio estudantil, que estava em melhor posição para se pronunciar sobre a política de Stálin na China”.

Esse primeiro núcleo de trotskistas, numa situação sumamente difícil que se seguiu à invasão japonesa e o estouro da Segunda Guerra Mundial, desempenhou um papel crucial na reflexão sobre os caminhos que a revolução na China tomaria, longe de qualquer aliança com uma suposta “burguesia anti-imperialista”, encontrando na teoria da revolução permanente um guia estratégico para a ação. Escreve Edison Urbano sobre a apropriação do trotskismo pelo melhor dos quadros comunistas chineses que: “[…] O posicionamento de Chen Duxiu e de muitos outros quadros importantes do PC chinês, como o jovem Peng Shuzi, foi de compreender que o problema estava na estratégia política ditada pelo Kremlin – e que em 1925 os comunistas chineses ainda não haviam suficiente clareza marxista para contrapor. A questão fundamental estava no balanço do beco sem saída a que a falta de independência política da classe operária tinha levado antes e durante a revolução. E por isso, a conclusão só poderia ser uma: a aplicação rigorosa das conclusões da revolução russa de 1917, adaptadas ao terreno chinês. Essa conclusão levou imediatamente a que Chen Duxiu e Peng Shuzi começassem, por conta própria, a aproximar-se das conclusões que Trotski iria tirar do mesmo processo. Quando na sequência do processo, em 1928, os comunistas dessa ala esquerda chegam a conhecer o balanço que o fundador do Exército Vermelho (Trótski) estava fazendo de toda a política levada a cabo na China, a identificação foi imediata”.

Ver também: Esther Majerowicz: "A acumulação capitalista no campo é a principal via de proletarização na China"

Cumpre passar em revista, em breves pinceladas, o drama revolucionário chinês, a fim de encontrarmos a resultante combinada na influência da história chinesa do século XX para o desenvolvimento teórico do trotskismo, e a importância do trotskismo na tradição endógena do marxismo chinês, uma combinação fundamental para pensar o socialismo chinês no século XXI, para além das fantasias dos portavozes de Xi Jinping no Brasil.

A segunda revolução chinesa e a luta dos trotskistas

Depois da primeira Revolução chinesa de 1911, que levou à destruição da dinastia Qing, surgiu um governo burguês de transição, conhecido como Governo Beiyang (1912-28). A China passou a ser comandada por uma série de ex-generais Qing que, ao ser desmantelado império, se dividiram para controlar cada uma das províncias da China. Esses ex-generais foram chamados de “senhores da guerra”, governadores militares feudais que dominavam determinada zona de influência. Não existia uma China centralizada enquanto “nação”; cada província chinesa, de acordo com seu “senhor da guerra”, tinha leis próprias. O Partido Nacionalista burguês, o Kuomintang (KMT), fundado por Sun Yat-sen, tinha como objetivo acabar com o regime dos senhores da guerra e unificar territorialmente a China nos marcos de uma república burguesa. Seu governo estava sediado na província de Guangdong, no extremo sul da China. Sun Yat-sen odiava a revolução russa e os bolcheviques, mas tinha um problema: era militarmente muito fraco para enfrentar os senhores da guerra, e o Ocidente não fornecia armas para os nacionalistas. O KMT foi obrigado então a recorrer à ajuda da URSS. Como a URSS também tinha o objetivo de derrotar o regime dos senhores da guerra, passou a entrar em negociações com o KMT, ao mesmo tempo em que auxiliava o fortalecimento do PCCh.

Entre o final de 1923 e o início de 1924 o PCCh ingressa nas fileiras do KMT. Isso acontece exatamente durante o período em que Stálin, junto com Bukharin e Zinoviev, iniciam a campanha contra Trótski e o internacionalismo proletário, opondo à teoria da revolução permanente a ideia do socialismo num só país. Lênin faleceria em janeiro de 1924, quando preparava uma luta política fulminante contra Stálin, por ter buscado subordinar forçosamente os comunistas georgianos ao comando da União Soviética, pisoteando o direito à autodeterminação dos povos. No V Congresso da Internacional Comunista, realizado em 1924, Stálin, sob o argumento de que era necessário evitar uma intervenção militar na URSS e “atacar pela retaguarda” o inimigo imperialista, ordena que os partidos orientais aprofundem suas relações com os partidos nacionalistas burgueses, considerados igualmente inimigos do imperialismo. Sob essas diretrizes é que o PCCh recebe a orientação de dissolver-se no Kuomintang.

Assim, é decisivo para o desenlace dos acontecimentos no Oriente que os anos da segunda revolução chinesa (1925-27) sejam também os anos da consolidação do stalinismo na URSS, como reflexo do atraso econômico, do isolamento internacional e das derrotas da onda expansiva da revolução proletária na Europa central e ocidental. O processo de burocratização da Internacional Comunista privava o Estado-Maior da revolução mundial de uma direção como a de Lênin e Trótski após sua fundação em 1919, sendo Trótski cada vez mais afastado dos organismos diretivos da IC pela troika Stálin-Zinoviev-Kamenev. Trótski e Stálin opunham-se pelo vértice na avaliação estratégica dos acontecimento, e nos prognósticos a seguir, desde o balanço da derrota de 1923 na Alemanha até a oposição de Trótski ao ingresso do PCCh ao KMT. Trótski defendia que o PCCh tivesse completa independência política e organizativa do KMT, o que significava que, mesmo que houvesse ação militar comum com os nacionalistas contra os senhores da guerra, o PCCh devia combater politicamente o KMT como inimigo do proletariado. Stálin, pelo contrário, defendia a renúncia da independência política e organizativa do PCCh, tornando-o um refém no interior do KMT.

Múltiplos conflitos entre os comunistas e o KMT se dão no curso desses anos. Um dos mais importantes ocorre nesse mesmo ano de 1924, com a grande greve geral em Cantão e Hong Kong, em que a ação independente dos trabalhadores contra os senhores da guerra enfrenta também o nacionalismo burguês, que passa a frear os grevistas e censurar os comunistas. Pierre Broué escreve que nessa greve na província de Guangdong teria surgido o primeiro soviet chinês, o comitê de delegados grevistas eleito pelos próprios operários, que dispõe de estrutura de poder próprio com piquetes armados, tribunais operários, ditando e executando leis com responsabilidade sobre o sistema de transporte, abastecimento, entre outros. Em outubro de 1925 o PCCh busca dirigir de maneira independente o movimento operário – que através de sindicatos mafiosos padecia da influência dos nacionalistas – e para isso propõe seu desligamento do Kuomintang. A resposta do Comitê Executivo da IC é contundente: manda que os comunistas evitem a deflagração da luta contra os nacionalistas burgueses do KMT, abstenham-se de criticar a doutrina de Sun Yat-sen e contenham as insurreições camponesas. Bukharin chegava a associar o KMT a uma organização do tipo dos sovietes russos, obrigando os comunistas chineses a intervir em seu seio com o objetivo fantasioso de transformá-lo em um organismo eletivo de massas. Em 1926 o Kuomintang é aceito como “partido associado” da IC, e Chiang Kai-shek, general que se tornara líder do KMT em 1925, “membro associado” do Comitê Executivo da IC.

A situação insólita em que a direção do PCCh, com Chen Duxiu à cabeça, reivindicava independência do KMT enquanto o governo de Stálin e Bukharin em Moscou o obrigava a nele permanecer, estava fundada em determinada política que tentava se justificar mediante uma interpretação deturpada das “Teses gerais sobre a questão do Oriente”, de 1922. As Teses diziam com clareza que as burguesias nacionais das colônias e semicolônias eram incapazes de conquistar a independência nacional e a resolução do problema agrário; mas não ficava claro nas Teses que, para conquistar tudo isso, a classe trabalhadora deveria dirigir a revolução, como ocorreu na Rússia em 1917. Mas o seu objetivo estratégico era o desenvolvimento independente dos partidos comunistas no Oriente, tendo na independência de classe um princípio fundamental. As Teses se opunham, por exemplo, a qualquer ideia de dissolução dos PCs nos partidos burgueses como o KMT. Ao desvirtuar essas Teses para o Oriente (em si mesmas aderindo a um certo semi-etapismo, incongruente com a época e com a condução na Rússia), Stálin cria uma divisão mecânica entre países maduros e não maduros para a revolução, segundo a qual a China não tinha o direito de fazer uma revolução socialista, e a forma organizativa pra “ditadura democrática de operários e camponeses” seriam “partidos operário-camponeses” e não partidos comunistas independentes. Sob a categoria de “partidos operário-camponeses” caía o próprio KMT (outras vezes considerado em termos soviéticos, como vimos em Bukharin, por deter base camponesa ainda com uma direção burguesa).

Os incidentes seguem. A 20 de março de 1926, Chiang Kai-shek intervém em Cantão e aprisiona dirigentes sindicais comunistas, exigindo que o PCCh entregue a lista de todos os seus membros ao órgão repressivo do Kuomintang, ligado ao Exército nacionalista. Na mesma data, Chiang fez um pronunciamento público para que trabalhadores e camponeses apoiassem sua ditadura militar, a antessala para o que ficou conhecida como “Expedição ao Norte”, de julho de 1926, que abriu um período de guerra civil até o final de 1928, quando os senhores da guerra terminaram se submetendo ao governo central. Stálin e Bukharin exigiram que o PCCh cumprisse todas as demandas do KMT.

À luz desses movimentos, em abril de 1926 Trótski protesta ao Comitê Central russo e à Internacional Comunista pela total independência dos comunistas chineses diante do aparato de Chiang. Em novembro de 1926, o Stálin discursou em defesa do caráter apenas “antiimperialista, mas não antiburguês” da luta na China, e enfatizava que o PCCh deveria deter as insurreições camponesas contra os latifundiários, com o objetivo de não afastar os generais nacionalistas, que ficariam assustados se vissem suas terras expropriadas. Mao Zedong (em outra grafia, Mao Tsé-Tung) era o implementador dessa política stalinista de contenção das insurreições camponesas nas províncias de Hubei e Hunan, a fim de preservar a aliança com os grandes latifundiários. Mao assinou uma declaração que garantia a posse da propriedade rural dos generais do KMT, além de bloquear o surgimento de sovietes operários e camponeses em Wuhan, para “proteger o governo de esquerda do KMT”, dirigido por Wang Ching-wei.

Em 1927, o desenlace sangrento. A Revolução chinesa se desenvolvia no contexto da guerra civil e da expedição militar de unificação nacional. Apesar das proibições de Chiang, a campanha militar ao Norte despertava revoltas e insurreições camponesas e operárias, muitas das quais precediam a passagem da marcha militar nacionalista. Como em Xangai, onde eclodiu a 19 de março de 1927 uma greve geral de 600 mil trabalhadores urbanos e rurais contra os senhores da guerra locais. A cidade é tomada por milícias operárias armadas e organizadas pelo Partido Comunista e pelos sindicatos. Os comunistas tinham grande influência sobre as organizações sindicais por ramo na cidade. A União Geral dos Trabalhadores em Xangai, dirigida pelo PCCh, organizava mais de 500 sindicatos e quase 1 milhão de trabalhadores, dotados de uma milícia operária de 3000 trabalhadores armados. O historiador britânico Jonathan Spence afirma que os trabalhadores em Xangai “compunham uma força formidável, possivelmente capaz de estabelecer um governo operário como na Rússia bolchevique, formando sovietes urbanos que se expandissem para outras regiões do país”. Spence relata como Trótski batalhava em Moscou contra a linha stalinista, defendendo a formação imediata de sovietes operários, e as milícias, além de lutar já havia muito tempo pela saída do PCCh do interior do KMT, porque era impossível organizar uma insurreição operária sem independência política. Tão tarde como 5 de abril, Stálin preconiza que o Kuomintang é uma espécie de “parlamento revolucionário” e que Chiang só poderia lançar seu exército contra os imperialistas. Advertido pelos comunistas chineses de que Chiang queria desarmar as milícias operárias, a política quietista da fração stalinista ordena que se “enterrem as armas”. De acordo com José Castilho Marques Neto:

“Em 31 de março de 1927, Trótski protesta por escrito, solicitando informações ao Comitê Central do partido russo, e questionando por que não se lança a palavra de ordem de construção dos sovietes e não se impulsiona a revolução agrária. Em 3 de abril, ele escreve um artigo, que não será publicado, no qual acusa a Internacional Comunista de deixar o Partido Comunista Chinês refém do Kuomintang. Em 5 de abril, em outro artigo, prevê em sua análise que Chiang prepara um golpe militar e que só a organização dos sovietes poderia detê-lo. Em 12 de abril, responde ao economista Martinov, antigo menchevique que defende a revolução por etapas na China e as orientações de Bukharin e Stálin” (NETO, 2022, p. 92).

O Partido Comunista Chinês desata o plano insurrecional, desarmando a polícia e multiplicando o armamento dos trabalhadores, e desse ponto de vista a insurreição de Xangai tinha sido triunfante. Mas, ao invés de romper com a burguesia e impulsionar sovietes, na noite do dia 22 de março o PCCh abriu os portões de Xangai às tropas expedicionárias de Bai Chongxi, do Kuomintang. A ordem do Exército nacionalista é que os comunistas entreguem as armas pacificamente, o que é feito nos dias seguintes pelo PCCh por instrução de Stálin. Quando os operários são desarmados, desencadeia-se a repressão contra os trabalhadores de Xangai. A 12 de abril, a Gangue Verde (uma organização criminosa da burguesia nacionalista) ataca os sindicatos, e milhares de trabalhadores são fuzilados pelo Exército nacionalista. Proíbem-se as greves e a organização sindical, enquanto Chiang negocia com os senhores da guerra a unificação pactuada do país, sem terra aos camponeses.

“Em 24 de maio de 1927, no Comitê Executivo da Internacional Comunista, Trótski acusa os dirigentes soviéticos de serem responsáveis pelo massacre de Xangai e apela para que se constituam imediatamente os sovietes, apoio inadiável para a revolução agrária. Nesse momento, Stálin o interrompe e afirma que a “ala esquerda do Kuomintang desempenha na presente revolução democrática chinesa aproximadamente o mesmo papel que os sovietes russos em 1905” (NETO, 2022, p. 93).

Stálin se refere ao governo de Wang Ching-wei, líder de Wuhan e do chamado “Kuomintang de esquerda”, que inicialmente havia se oposto ao golpe de Chiang. Wuhan passa a ser considerada pela IC como o “centro da revolução chinesa”. Stálin e Bukharin sustentam a correção de sua orientação que levou ao massacre de Xangai. E provocam um novo em Wuhan. Diante da efervescência dos camponeses na tomada de terras, estoura uma rebelião de generais nacionalistas contra os comitês camponeses, que ficou conhecida como Golpe em Changsha, de 21 de maio de 1927. Foi uma retaliação dos generais do Exército nacionalista contra os comunistas e camponeses que haviam expropriado os latifundiários, e milhares de camponeses foram presos e assassinados como vingança. Wang Ching-wei aprova o massacre. A 15 de julho, Wang aplica pessoalmente uma nova agressão, prendendo e assassinando militantes revolucionários e sindicalistas.

A fim de esconder o fracasso completo da linha oportunista de subordinação ao KMT, quando fica claro que a revolução foi destroçada pela política da IC, Stálin ordena um giro de 180º e orienta o lançamento imediato de “insurreições armadas” em todo o país, a mais famosa das quais ocorreu em Cantão, uma das sedes do governo do KMT, e que agora estava sob a supervisão do mesmo Wang Ching-wei, que havia acabado de destruir as forças comunistas em Wuhan. Stálin precisava ostentar alguma vitória na China às vésperas do XV Congresso do PCUS, e fez isso sacrificando os trabalhadores em uma aventura insensata. Em Cantão, o Partido Comunista desencadeia a insurreição a 11 de dezembro de 1927. Em poucas horas os serviços governamentais e o arsenal passam às mãos dos insurretos, e ao contrário do que foi feito em Xangai, imediatamente são erguidos sovietes, que passam a organizar a economia: uma série de decretos institui a nacionalização da terra, o confisco das grandes fortunas da cidade, a nacionalização da grande indústria, dos bancos e das ferrovias. Mas a situação já havia mudado com a derrota em Xangai. A comuna de Cantão dura só dois dias. As tropas do Kuomintang entram na cidade e fuzilam milhares de comunistas, derrotando a insurreição.

A tradição da permanente em lições

Os efeitos da batalha de Trótski contra Stálin na revolução chinesa ecoam já em 1927 na direção do PCCh, que retoma seus argumentos para avaliar que a “Revolução chinesa era do tipo da que Marx chamara de revolução permanente”. Chen Duxiu diz em seu balanço: “A fonte da política oportunista que destruiu a revolução chinesa foi a Terceira Internacional de Stálin. […] Batalhar contra essa linha, como o camarada Trótski tem feito, resultaria inevitavelmente em uma grande ajuda para a revolução e não teria feito da revolução um fracasso tão vergonhoso”. Gianni Sofri cita uma das surpreendentes declarações dos responsáveis comunistas na China:

“A Revolução Chinesa tem um caráter permanente, já que a burguesia chinesa é incapaz de realizar uma revolução democrática capaz de derrubar o governo dos militaristas feudais; a Revolução chinesa, em sua evolução, não pode se deter no estágio democrático (conforme a chamada “teoria das duas revoluções”); a Revolução Chinesa, que teve início com a solução de problemas democráticos, começa inevitavelmente a enfrentar problemas socialistas”.

Nessa contundente demonstração do poder de atração da teoria de Trótski sobre os comunistas chineses se encontram alguns dos aspectos que o revolucionário russo utilizará para generalizar a revolução permanente, tal como havia concebido para o cenário russo em 1905. Com efeito, Trótski utilizará a experiência da Revolução Chinesa pra superar as inadequadas “Teses do Oriente” e abranger de maneira dialética o compasso da dinâmica revolucionária em seus nexos internos também nas sociedades orientais. Nas teses sobre a teoria da revolução permanente, de 1930, Trótski conclui que “Para os países de desenvolvimento burguês atrasado e, em particular, para os países coloniais e semicoloniais, a teoria da revolução permanente significa que a resolução íntegra e efetiva das suas tarefas democráticas e de libertação nacional somente pode ser concebida por meio da ditadura do proletariado, que se coloca à cabeça da nação oprimida e, primeiro de tudo, das suas massas camponesas. […] Sem a aliança entre o proletariado e os camponeses, as tarefas da revolução democrática não podem ser realizadas; nem sequer podem ser seriamente colocadas. Mas a aliança destas duas classes não poderá realizar-se a não ser através duma luta implacável contra a influência da burguesia liberal nacional. […] Quaisquer que sejam as primeiras e episódicas etapas da revolução nos diferentes países, a aliança revolucionária do proletariado e do campesinato só é concebível sob a direção política da vanguarda proletária organizada em partido comunista. O que significa, por sua vez, que a vitória da revolução democrática só é concebível por meio da ditadura do proletariado, que se apóia na sua aliança com o campesinato e que, em primeiro lugar, decide das tarefas da revolução democrática. […] A ditadura do proletariado, que sobe ao poder como força dirigente da revolução democrática, se encontra muito rápida e inevitavelmente colocada perante tarefas que a forçarão a fazer incursões profundas no direito de propriedade burguês. No decurso de seu desenvolvimento, a revolução democrática transforma-se diretamente em revolução socialista e torna-se assim uma revolução permanente. […] Entre o regime de Kerensky e o poder bolchevique, entre o Kuomintang e a ditadura do proletariado, não existe nem pode existir nenhum regime intermediário, isto é, nenhuma ditadura democrática dos operários e dos camponeses”.

Ver também: Valéria Ribeiro: "Temos que analisar o investimento chinês na África tão criticamente quanto o europeu"

Ouvimos ecos dos nexos internos que poderiam conduzir a um mais genuíno socialismo no século XXI na China...Ou seja, dito em poucas palavras, Trótski generaliza para todos os países de desenvolvimento capitalista atrasado a dinâmica da revolução de Outubro de 1917. Na China, a burguesia não poderia cumprir nenhum papel revolucionário. Diante da deserção contrarrevolucionária da burguesia nacional, a classe operária mostrou que podia tomar em suas mãos a resolução das tarefas democrático-burguesas (libertação do imperialismo, terra aos camponeses). Em aliança com os camponeses, sob sua hegemonia em Partido Comunista, deveria enfrentar o imperialismo e a burguesia nacional. Os trabalhadores, ao tomarem o poder, entrelaçariam as tarefas democráticas com as tarefas socialistas contra a propriedade capitalista, tornando a revolução permanente.

“Balanço e perspectivas da Revolução Chinesa”, “A Questão Chinesa depois do VI Congresso”, e outros materiais relacionados, ricos documentos estratégicos sobre o trabalho de reconstrução pós-derrota na China, incluídos no seu trabalho Stálin, o Grande Organizador de Derrotas: a Internacional Comunista depois de Lênin, são indispensáveis para o aprendizado político “dos países do Oriente e da IC como um todo”, como diz o próprio Trótski.

Mao Zedong tomou conclusões completamente pelo avesso das de Trótski e dos trotskistas chineses. Seguiu apoiando a linha de Stálin como a correta. E isso vai ficar claro na década de 1930, especialmente a partir de 1935, quando Mao se converte no principal dirigente do PCCh, aceitando toda a orientação estratégica do VII Congresso da Internacional Comunista, a das “Frentes Populares”, que exigia aos partidos comunistas em todo o mundo fazerem alianças com suas próprias burguesias nacionais, inclusive as burguesias imperialistas (como na Europa), em nome das “coalizões antifascistas”. Do ponto de vista da estratégia política, sua visão continuou sempre fiel ao novo “dogma” stalinista, que dizia que a aliança com a burguesia nacional era o ponto fundamental para a política comunista nos países atrasados como a China. Por isso Mao manteve, mesmo nos momentos de maior perseguição sofrida pelos exércitos “nacionalistas” de Chiang, a linha de “bloco das quatro classes”, e só a contragosto e depois de ser deixado sem outra saída, tomou o poder em 1949.

A marca do trotskismo naquela geração de comunistas que tirou todas as conclusões da segunda revolução chinesa ficou indelevelmente fixada nas duríssimas batalhas em que se forjavam e dissolviam os núcleos da IV Internacional na China, e também nas elaborações de seus dirigentes. Como conta Pierre Broué, “Peng Shuzhi, que até então não tinha vínculos com a oposição trotskista na URSS, naturalmente invocou a ’revolução permanente’ e suas implicações em sua crítica da revolução por etapas de Stalin-Bukharin. Assim é que (...) o debate dentro do partido chinês foi conduzido nos termos do debate fundamental dentro do partido russo desde 1923: stalinismo versus trotskismo”.

Mao, já fundada a República Popular como Estado operário burocraticamente deformado em suas origens, escrevia que “na atualidade, já temos conformada uma frente única com a burguesia nacional nos campos político, econômico e organizativo”, segundo a teoria da aliança estratégica com a burguesia chinesa. Peng Shuzi, em contraponto com a revolução por etapas de Mao, escreve em defesa da teoria da revolução permanente em 1951:

"Trótski e os trotskistas chineses insistiram que a derrubada do regime do Kuomintang não poderia ser alcançada contando apenas com as forças armadas camponesas, mas só poderia ser realizada pela classe trabalhadora urbana que liderava as massas camponesas em uma série de revoltas. Ainda hoje, esta concepção ainda é inteiramente válida. Ela deriva da teoria marxista fundamental de que sob o sistema capitalista moderno – inclusive nos países atrasados – é a classe urbana que lidera as massas camponesas. Esta é também a conclusão tirada de numerosas experiências, especialmente a da revolução de outubro. Esta é precisamente uma das concepções fundamentais da revolução permanente, à qual devemos nos agarrar firmemente, apesar da atual vitória do PCCh. […] A “sistemática” e dogmática “Nova Democracia” de Mao Zedong nada mais é do que uma expressão ideológica e politicamente aprofundada e cristalizada do estalinismo; ou seja, é a expressão de se agarrar obstinadamente à “revolução por etapas” em oposição direta à revolução permanente. […] Mas como sabemos que nossa linha trotskista da revolução permanente é a linha mais adequada à lógica objetiva dos desenvolvimentos revolucionários na China, se nos mantivermos firme e corajosamente dentro deste movimento, dentro das lutas das massas, explicando-lhes com cautela e paciência para convencê-las, a evolução dos acontecimentos nos ajudará passo a passo a ganhar a confiança das massas. Com uma nova conjuntura, em uma nova ascensão da maré revolucionária, seremos elevados à posição de liderança e direcionaremos as massas no caminho da vitória".

Em março de 1969, o mesmo Peng, no auge da Revolução Cultural maoísta, combatia a estratégia guerrilheira exibida pelo castrismo em Cuba, e que passava a ter influência nas organizações trotskistas internacionais, que teorizavam sobre a conveniência do método da guerrilha nos países de capitalismo atrasado, como na América Latina, na África e na Ásia. Peng defendia a estratégia trotskista contra o guerrilheirismo castrista, argumentando que o trotskismo não era apenas a continuação direta do marxismo, mas também o herdeiro das tradições do bolchevismo que havia triunfado em 1917. Como tal, o trotskismo representava o desenvolvimento da teoria da revolução permanente, bem como uma análise marxista do fenômeno de um estado degenerado dos trabalhadores. Para Peng, Trótski havia sido o primeiro a analisar concretamente o fenômeno do fascismo e a tirar as necessárias conclusões das graves derrotas sofridas pelo movimento operário mundial nos anos 20 e 30, lições concretizadas no Programa de Transição. Problematizando o ultraesquerdismo que animava a política da guerrilha, e que levava ao abandono do Programa de Transição e da revolução permanente nos países atrasados, Peng chamava os trotskistas a entender as lições da Revolução Chinesa de 1925-27 para pensar o futuro – um aspecto muito interessante da historiografia do movimento operário no século XX, já que os debates das décadas anteriores tinham plena vigência. Em “Retorno ao caminho do trotskismo”, escreve:

“Segundo Lênin, uma revolução deve se basear nas massas operárias e camponesas, e a primeira tarefa é a construção de um partido revolucionário que prepare as massas para a revolução. No caso de uma situação revolucionária, o partido então toma como sua tarefa fundamental a preparação das massas para a tomada armada do poder. Se por outro lado não existe uma situação revolucionária, qualquer organização de luta armada imediata só pode levar a uma derrota desastrosa. Esta foi, de fato, a estratégia e o resultado da política aventureira que Stálin impôs ao PC chinês após a derrota da segunda revolução chinesa. Como é bem sabido, Trótski atacou muito seriamente Stálin por suas políticas aventureiras na época, como pode ser visto em muitos artigos, especialmente em A Questão Chinesa após o Sexto Congresso”.

A situação de cruéis dificuldades na China, entre o enfrentamento à repressão dos nacionalistas de Chiang e a perseguição do stalinismo, provou-se superior às forças existentes para o desenvolvimento da Oposição de Esquerda, e mais tarde da IV Internacional. O próprio Chen Duxiu abandonou a IV Internacional no final da década de 30, estando encarcerado e falecendo em 1942. Apesar disso, esses fios de continuidade do trotskismo, levados adiante por figuras como Peng Shuzhi, Chen Bilan, Wang Fanxi e outros, contra a burocracia de Mao e do PCCh, mostram a tenaz vivacidade de uma tradição que defendeu a teoria da revolução permanente contra a “teoria” do socialismo num só país e a colaboração com a burguesia nacional, que levou a China ao retrocesso histórico da restauração capitalista. Uma tradição que ganhou pleno direito de existência no interior da história de um movimento operário jovem que, hoje, tem características muito distintas daquele do século XX, e que viveu não apenas a restauração capitalista dirigida pela burocracia do Partido Comunista, mas a ascensão da República Popular como uma potência capitalista em rota de colisão com a superpotência imperialista norte-americana.

Trótski em mandarim

A burocracia de Xi Jinping se esforça por fazer crer que ela seria a única agente da história chinesa. Em sua busca pelo inédito terceiro mandato, Xi faz propaganda do “grande rejuvenescimento da nação chinesa” que, na esteira de Mao (que “teria posto a República Popular sobre seus pés”), de Deng Xiaoping (que teria “enriquecido a China”), estaria entrando na fase do “Sonho Chinês” que significaria deixar uma Cina forte e assertiva no panorama global. A modernização da tecnologia, da indústria e das forças armadas chinesas seria parte desse plano de projeção de poder internacional, na competição estratégica com os Estados Unidos. Nada fora desse horizonte seria imaginável.

Entretanto, isso não atende à verdade. Especialmente diante de uma poderosa classe trabalhadora que ainda não deu sua última palavra na história, em choque com a falcatrua do “socialismo com características chinesas”, um eufemismo para o capitalismo selvagem chinês no linguajar oficial de Pequim. É em meio às contradições sociais e geopolíticas que se acumulam sobre a base da desaceleração da economia chinesa, fruto da crise mundial, que aquela grande tradição do trotskismo pode recobrar seu vigor. Num país asfixiado pelo monolitismo ideológico e político orquestrado pela repressão do regime bonapartista do PCCh, a duras penas as condições para o reverdecer do marxismo – que no século XXI é o trotskismo – e sua fusão com a vanguarda dos trabalhadores e da juventude pode surpreender os herdeiros de Mao no governo.

A atividade grevística dos trabalhadores é um ponto singular de apoio. Mobilizações de greve são comuns na China, embora rapidamente reprimidas. O auge de greves entre 2005 e 2015, antes e depois da era Xi Jinping, marcaram a primeira entrada em cena, os primeiros exercícios de um proletariado jovem, sem experiências reformistas cristalizadas, cujo ensaio de convivência urbana coincidiu com a socialização no infernal meio fabril. A emblemática greve de 2010 na fábrica de carros Nanhai Honda, no Sul da China, foi um ponto de inflexão para o movimento operário do país – mostrando pela primeira vez que uma jovem força de trabalho migrante poderia se levantar e lutar com sucesso por seus direitos. A linha de produção foi paralisada por Tan Guocheng, de 23 anos, que gritou: “Não trabalhe por salários tão baixos! Não trabalhe por salários tão baixos”, trazendo à tona a insatisfação de trabalhadores que nutriam a mesma raiva da exploração capitalista. Vestidos com uniformes brancos e bonés vermelhos da Honda, centenas de jovens trabalhadores encheram o pátio da fábrica, entoando consignas sobre seus direitos.

A greve duraria 19 dias e cresceria para incluir quase todos os trabalhadores da fábrica, paralisando seu cronograma de produção e forçando a administração e os funcionários do governo a cederem às exigências dos grevistas em uma rara vitória decisiva para os trabalhadores. Esse caminho foi seguido pelos 50.000 trabalhadores que paralisaram a produção de uma das maiores fábricas de calçados do mundo, a Yue Yuen, em 2014. A administração Xi viu em seu governo o recorde de greves no período recente na China, entre 2015 e 2016, com mais de 2500 greves anuais em média. Contando com os elementos “ocidentais” de Estado integral (a burocracia sindical ligada ao PCCh) numa estrutura socio-econômica de tipo oriental, o governo estendeu uma nova rede de vigilância e repressão para diminuir os efeitos das greves, como ocorreu na emblemática repressão da greve da Jasic Technologies, em 2018, em que os trabalhadores exigiram inclusive o direito de sindicalização independente e passaram a desenvolver elementos de autoorganização.

Todos esses ensaios se tornam mais interessantes quando postos à luz da necessária combinação entre a autoorganização e a unidade das fileiras dos distintos segmentos da classe trabalhadora chinesa. Com a modernização das cidades chinesas, o relaxamento de medidas de restrição da mobilidade operária (como o hukou, sistema de registro domiciliar utilizado para reduzir o valor da força de trabalho) e o aumento relativo da média salarial, trabalhadores com registros urbanos e aqueles com registros rurais passam a ter mais direitos comuns a defender. A superexploração capitalista na China está baseada na divisão das fileiras operárias, entre trabalhadores urbanos e migrantes rurais, efetivos e precários, com contrato e sem contrato, com direitos dependentes de distintas províncias, etc. Essa divisão permite uma flexibilidade às autoridades centrais para separar as demandas de cada fábrica e de cada setor dos serviços, sustentada na proibição do direito de greve desde 1982, o que torna a situação dos que querem lutar sumamente instável, diante da perspectiva de demissão certa. Um panorama que vem sendo alterado pela diminuição do crescimento da população absoluta no país, e pela redução relativa das migrações laborais. A nova geração de trabalhadores que se rebelou contra o regime de trabalho imposto pela Alibaba, chamado 996 (das nove horas da manhã às nove da noite, seis dias por semana), é a mesma que se solidarizou com os setores de classe média que tiveram suas poupanças roubadas no episódio da fraude bancária em quatro instituições financeiras em Zhengzhou, capital da província de Henan.

Uma eventual aliança entre distintos setores da classe trabalhadora chinesa, atraindo a simpatia das camadas empobrecidas da pequena burguesia rural e urbana (incluindo aqui, por evidente, o campesinato chinês), poderia dar novos ares a um sujeito histórico que tem em sua trajetória inúmeros exemplos de autoorganização, uma preocupação grave ao regime bonapartista de Xi.

A burocracia não pode fechar a chave o curso da história. Há mais coisas entre o céu e a terra, parafraseando um certo príncipe dinamarquês, do que as disputas de uma China capitalista em ascensão contra o imperialismo estadunidense. Por sinuosos caminhos a luta de classes penetra pelos poros abertos da crise mundial, sem se deter nos desvãos da Grande Muralha. E dentro dela, o espectro do trotskismo, a tradição da permanente, podem reencontrar seu ponto de fusão com o proletariado de toda a Ásia, e não menos com o da China.

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Bibliografia

BROUÉ, Pierre. El Partido Bolchevique. Ediciones Alternativa, 2007.

DURAND, Damien. The birth of the Chinese Left Opposition. Disponível em: https://www.marxists.org/history/etol/document/china/china03.htm.

SOFRI, Gianni. “O problema da revolução socialista nos países atrasados”. In: HOBSBAWN, Eric J. História do Marxismo VIII (O marxismo na época da Terceira Internacional: o novo capitalismo, o imperialismo, o terceiro mundo). 2ª edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

SPENCE, Jonathan. Em Busca da China Moderna. Companhia das Letras, 1996.

NETO, José Castilho Marques. Solidão Revolucionária: Mário Pedrosa e as origens do trotskismo no Brasil. Martins Fontes, 2022.

TRÓTSKI, Leon. Stálin, o Grande Organizador de Derrotas: a Internacional Comunista depois de Lênin. Editora Iskra, 2020.


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André Barbieri

São Paulo | @AcierAndy
Cientista político, doutorando pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é editor do Esquerda Diário e do Ideias de Esquerda, autor de estudos sobre China e política internacional.
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