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SEMANÁRIO

O XX Congresso do Partido Comunista e a corrida dinástica de Xi Jinping

André Barbieri

O XX Congresso do Partido Comunista e a corrida dinástica de Xi Jinping

André Barbieri

O crítico literário Leo Spitzer considerava Cervantes o criador de um universo próprio. Xi Jinping não pode almejar semelhante estatura, mas quer estampar sua marca na edificação de uma China própria. A partir de 16 de outubro, as grandes figuras do Partido Comunista Chinês se reunirão no Grande Salão do Povo, em Pequim, para o 20o Congresso quinquenal. Nem uma xícara de chá estará fora do lugar; nem um sussurro de protesto será audível. O Partido Comunista sempre foi obcecado pelo controle. Mas sob Xi Jinping, essa obsessão se aprofundou. A reeleição de Xi para um terceiro mandato marcará o auge de sua incansável centralização de poder na última década.

Ao assumir um terceiro mandato como líder do partido, Xi elimina de facto o sistema creditado para as transições ordenadas de liderança de 2002 e 2012. Em 2002, Hu Jintao sucedeu Jiang Zemin como secretário-geral do partido. Em 2012, Hu deu lugar a Xi Jinping. Xi preparou o palco para sua entronização de 2022 já no 19o congresso do partido, em 2017, quando não nomeou um sucessor da próxima geração para o Comitê Permanente da Politburo. Tanto Jiang quanto Hu tinham feito isso cinco anos antes de renunciarem ao poder.

Trata-se, portanto, de um Congresso diferente dos demais. Com efeito, o resultado será indubitavelmente o fortalecimento da posição de Xi Jinping como líder supremo da enorme máquina burocrática do PCCh, escolhendo a dedo o corpo de funcionários nos mais altos cargos para levar adiante o “grande rejuvenescimento da nação chinesa”.

Isso passa por desafiar certas posições do imperialismo norte-americano no tabuleiro global, a fim de melhorar as posições da República Popular na hierarquia do sistema capitalista. Tendo-se tornado a segunda maior economia do mundo, o capitalismo chinês (distinto do modelo ocidental, pela influência do dirigismo estatal comandado pelo PCCh) se tornou oficialmente um “rival estratégico” das potências capitalistas ocidentais.

Colocando de lado a “estratégia dos 24 caracteres” de Deng Xiaoping, que pregava a circunspecção e o baixo perfil da China nos assuntos estrangeiros, sempre ocultando sua verdadeira força, Xi Jinping quer mostrar assertividade. O Partido Comunista Chinês projeta poder internacionalmente, em especial na arena asiática, preparando a reincorporação de Taiwan e a integração territorial do Mar do Sul da China,
buscando desafiar as posições encasteladas de Washington na região da Ásia-Pacífico desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Os rápidos avanços tecnológicos e a modernização das Forças Armadas – a China possui hoje a maior frota de guerra do mundo – servem ao propósito do “Sonho Chinês”.

Esses objetivos estão todos subordinados à centralização de todos os poderes em Xi Jinping, que sairá ungido como secretário-geral pelo terceiro mandato, rodeado por instabilidades econômicas, geopolíticas e na luta de classes.

Um Congresso de centralização de poderes em Xi

O partido tem mais de noventa milhões de membros e está organizado em uma estrutura piramidal. Perto do topo está o Bureau Político, ou Politburo, que é formado por 25 oficiais, entre militares, líderes provinciais e funcionários centrais do partido. Deste grupo sai o Comitê Permanente do Politburo, composto por sete membros, que toma a maioria das decisões cruciais. O chefe do Comitê Permanente é o secretário geral do partido, Xi Jinping. Em cada congresso, alguns membros do Politburo e do Comitê Permanente do Politburo se aposentam ou são afastados. Alguns partem porque ultrapassaram os limites de idade informais do partido; a maioria se aposenta aos 68 anos. Outros partem por razões mais opacas, em especial por não fazerem parte da corte mais próxima do secretário-geral. Noves fora determinados exercícios de adulação por aficionados do governo em Pequim, como Elias Jabbour, é patente que a organização burocrática do Congresso se impõe pelo alto, e a última palavra está com Xi, que centraliza poderes à maneira imperial.

Essa centralização de poderes vai além da renovação dos títulos de secretário-geral, chefe da Comissão Militar Central, e eventualmente de presidente do país. Em novembro de 2021, na reunião de cúpula mais importante do PCCh antes do 20o Congresso, Partido Comunista Chinês havia aprovado sua primeira “resolução histórica” em 40 anos, que na prática preparava o caminho para que Xi Jinping permaneça no cargo até pelo menos 2028, ou de forma vitalícia. A resolução, apenas a terceira adotada desde 1945, declarou que a liderança de Xi era “a chave para o grande rejuvenescimento da nação chinesa”, convocando “todo o partido, todo o Exército e as pessoas de todos os grupos étnicos a se unirem ao redor do
Comitê Central com o camarada Xi Jinping como seu núcleo, para pôr em marcha a nova era de socialismo com características chinesas”.

Mao Zedong e Deng Xiaoping, os dois líderes mais reverenciados na hierarquia burocrática, usaram resoluções semelhantes para assegurar seu domínio sobre o poder em 1945 e 1981, respectivamente. Em 1945, Mao justificou um expurgo de seus inimigos, culpando-os por erros passados para poder se posicionar como o líder inquestionável. Em 1981, a resolução de Deng dizia que Mao havia cometido erros graves e que a Revolução Cultural de 1966-76 havia sido um “grave engano”, por ter aberto caminho a uma situação caótica no país. Deng fora exilado como parte da
Revolução Cultural, que a facção de Mao havia lançado com o objetivo originário de recuperar prestígio depois do fracasso do Grande Salto Adiante. Ao criticar Mao, embora cautelosamente, Deng reconstruiu o apoio público e passou a operar as reformas pró-capitalistas. Jiang Zemin e Hu Jintao presidiram ambos transições pacíficas e ordenadas de poder, com seus sucessores identificados com cinco anos de antecedência. Nenhum sucessor de Xi aparece remotamente à vista. Parte da centralização de poderes é a sacralização da sua “filosofia” política, oficialmente conhecida como “Pensamento de Xi Jinping sobre o Socialismo com Características Chinesas para uma Nova Era”. Apesar de amplo e vago, foi inserido na constituição, o que posicionou Xi em uma liga superior a de seus predecessores imediatos, Hu Jintao e Jiang Zemin. Suas filosofias também foram consagradas na carta – mas sem seus nomes anexados. O nome de Deng Xiaoping foi inserido somente depois de sua morte, e seu pensamento é meramente chamado de “teoria”. Xi foi o primeiro líder vivo desde Mao a ser nomeado como um guia para o bom comportamento chinês. Alguns observadores acreditam que também será abreviado na constituição, para “Pensamento de Xi Jinping”, evocando a fórmula breve da filosofia do fundador, “Pensamento de Mao Zedong”.

A entronização de Xi como uma nova espécie de “grande timoneiro” no regime bonapartista do PCCh não reduz a importância de administrar os interesses de uma geração de novos funcionários que luta por ver assegurados seus privilégios. Um dos principais aspectos do 20o Congresso, além da confirmação do terceiro mandato de Xi, será a verificação do novo corpus de funcionários que ascenderá. Figuras de confiança como o vice-presidente Li Keqiang e o “tsar” econômico do governo, Liu He, vão provavelmente se aposentar, chegando ao limite de 68 anos. Pelas características do regime, as novas figuras deverão combinar a predominância da tecnocracia com a mais absoluta fidelidade a Xi Jinping. Nos bastidores já se desenha a substituição de Liu He por He Lifeng, antigo companheiro de Xi Jinping durante os 17 anos de carreira em que foi responsável pela província de Fujian. O substituto de Li Keqiang – que provavelmente será colocado como novo presidente do Congresso Nacional do Povo, em março – não está claro, sendo os dois principais contendentes Wang Yang (do Comitê Permanente do Politburo) ou Hu Chunhua (o mais jovem funcionário a ser elevado ao Politburo).

Os laços pessoais com Xi são cruciais na definição dos mandatos, especialmente os que compartilharam com ele tarefas partidárias em Zhejiang, Fujian ou Xangai. Os protegidos de Zhejiang incluem Li Qiang e Chen Min’er, agora chefes do partido de Xangai e Chongqing. Ding Xuexiang, que chefia o Escritório Geral do partido, serviu Xi em Xangai. Todos os três já são membros da Politburo, e líderes para promoção posterior.

De todo modo, os novos candidatos a promoções virão da “sexta geração” de líderes do PCCh. Uma característica marcante da sexta geração, nascida em sua maioria após 1960, é que foi a primeira a chegar à idade adulta em meio ao curso da restauração capitalista, num momento de relativa estabilidade após as turbulências da Revolução Cultural, e de reaproximação com os Estados Unidos (já iniciada com o encontro Nixon-Mao em 1972). Isso afetou especialmente o tipo de educação recebida por esses membros partidários. Como a maioria da “quinta geração”, Xi Jinping foi retirado da escola nos anos 60 e enviado para trabalhar no campo. Os membros da sexta geração, pelo contrário, não tiveram acesso restrito à universidade, e nela ingressaram depois do início das reformas pró-capitalistas de Deng iniciadas em 1978. Muitos desses funcionários tiveram períodos de educação universitária nos EUA ou na Europa. Outra característica da sexta geração é a predominância de tecnocratas, a maioria engenheiros e cientistas, vários dos quais lideraram empresas estatais. Sete ou oito dessas figuras poderiam se juntar ao Politburo, que será provavelmente marcado pela hierarquia da corrida tecnológica com os Estados Unidos. É provável que nenhum membro da sexta geração seja
considerado herdeiro do Xi no momento. Ele tem evitado ungir um sucessor desde que rompeu com a convenção de manter-se no poder por apenas dois mandatos. A maioria dos seus favoritos atuais será velha demais para substituí-lo se ele permanecer por mais uma década.

Outra modificação se dará na diminuição do poder que tradicionalmente manuseiam os “anciãos” partidários. Por mais de três décadas após a morte de Mao em 1976, os anciãos do partido exerceram um poder considerável. Entre 1982 e 1992, eles se reuniam em um órgão consultivo formal, podendo ter acesso aos documentos secretos mais importantes do partido e a reuniões regulares com dignitários estrangeiros. Em meio à instabilidade política gerada pelos acontecimentos de Tiananmen e suas repercussões, reuniam-se frequentemente com os líderes governamentais em exercício na costa de Beidaihe para discutir as diretrizes políticas do PCCh. Deng permaneceu extremamente influente até sua morte em 1997. Essa velha camada, que é composta ainda por Jiang Zemin e Zhu Rongji, teve influência preponderante sobre a burocracia governamental. No entanto, a partir da ascensão de Xi Jinping em 2012, muitos dos benefícios dessa geração mais velha foram reduzidos. Xi fez o possível para evitar o destino de seu antecessor, Hu Jintao, que sofreu uma interferência quase constante de seu próprio antecessor, Jiang Zemin. Jiang (cujo governo havia sido ofuscado pelo velho Deng) renunciou ao cargo de líder do partido em 2002, mas permaneceu chefe militar até 2004 e continuou a dominar nos bastidores muito tempo depois. Xi deixou claro que não toleraria qualquer interferência desse tipo. Numa advertência a Jiang em 2015, o jornal oficial Xinhua aconselhou aos líderes aposentados observarem o ditado “quando as pessoas saem, o chá esfria”, e evitarem tentar promover aliados para prolongar sua influência.

Anticorrupção e dinastia

Com exceção de Xi Jinping, a posição oficial de um líder do partido chinês não é um indicador de seu verdadeiro poder de influência. Li Keqiang, por exemplo, tem sido um primeiro-ministro notavelmente fraco apesar de sua posição de número dois no partido. Durante o primeiro mandato de Xi como líder do partido de 2012 a 2017, o segundo homem mais poderoso da China foi Wang Qishan, que coordenou a campanha anticorrupção de Xi, e que está em sexto lugar na hierarquia do partido. Uma posição crítica a ser observada é quem emerge como chefe da Comissão Central de Assuntos Políticos e Legais do PCCh. Esse posto é responsável por supervisionar o vasto aparato de segurança interna da China. Entre os principais candidatos a este cargo estão dois funcionários que trabalharam próximos a Xi há duas décadas quando ele subia nas fileiras nas províncias de Fujian e Zhejiang: Chen Yixin e Wang Xiaohong.

A campanha anticorrupção de Xi teve como alvo vários aliados de Jiang Zemin e Hu Jintao, sendo a mais marcante a queda de Zhou Yongkang, que em 2015 se tornou o primeiro ex-membro do Comitê Permanente do Politburo a ser condenado por corrupção. Desde que assumiu a liderança do partido em 2012, a repressão à corrupção tem sido um discurso permanente de Xi, alvejando “tigres e moscas”, funcionários civis e militares de alto e baixo escalão, sendo simbólicos os casos de Bo Xilai, Guo Boxiong e Xu Caihou. Uma das chaves da nova varredura “anticorrupção” atende a esses requisitos. Na preparação para o 20o Congresso, os tribunais da China orquestraram uma série de julgamentos por corrupção de alto nível de quadros superiores da polícia e do aparelho de segurança do estado.

Sentenças de morte – que podem ser comutadas em prisão perpétua após dois anos – foram proferidas na semana passada a Fu Zhenghua, ex-ministro da justiça de Xi; Sun Lijun, ex-vice-ministro da segurança pública; e Wang Like, ex-funcionário de alto escalão em Jiangsu. Também foram emitidas penas de prisão de mais de 10 anos para três outros ex-chefes de polícia e segurança. Entre eles está Liu Yanping, um ex-chefe anticorrupção, que é acusado de participar do grupo de Sun Lijun. Victor Shih, professor de economia política chinesa na Universidade da Califórnia, afirma que a campanha é um aviso “contra atos ostensivos de fracionalismo e desobediência aos diktats de Xi Jinping no período que antecedeu o 20o congresso do partido, e mais além”. Embora as sentenças fossem principalmente por corrupção, as autoridades observaram que todos os casos estavam relacionados a uma “gangue política” desleal ao presidente chinês.

Isso tem consequências na direção do partido. Em sua década no poder, Xi Jinping alterou a composição do Comitê Central chinês como nenhum outro líder havia feito desde 1997. Os expurgos liberaram espaço para que leais seguidores do novo mandarim ocupassem cargos vitais de responsabilidade administrativa e política no PCCh. De acordo com dados de Victor Shih e Junyan Jiang, pelo menos 36 membros do Comitê Central foram removidos em 10 anos, postos preenchidos por apoiadores de Xi que com ele compartilharam serviços em Fujian, Zhejiang e Xangai. Essas vagas colhidas pela campanha anticorrupção, somadas àquelas oriundas da aposentadoria dos funcionários aos 68 anos, deram a Xi ampla margem de atuação: 65% dos 270 membros do Comitê Central foram substituídos desde 2017, e 66% dos 25 membros do Comitê Permanente do Politburo também o foram. É inquestionável que a corrupção graça como fogo na estepe no interior do PCCh. Mas justamente porque o fenômeno é demasiado generalizado, circunscrever os objetivos de Xi ao “acabar com a corrupção” não é convincente. A política do novo grande timoneiro é construir uma direção política à sua imagem e semelhança.

Assim fez com o próprio Politburo e seu Comitê Permanente. Todos os 6 membros do Comitê Permanente do Politburo (Li Keqiang, Li Zhanshu, Wang Yang, Wang Huning, Zhao Leji, Han Zheng) que compartilham o organismo com Xi são leais servidores deste. Dos 15 membros promovidos ao Politburo por Xi em 2017, 5 membros saltaram posições de antiguidade na hierarquia do PCCh (Cai Qi, Ding Xuexiang, Huang Kunming, Yang Xiaodu e Li Xi), todos com carreiras que interagiram com a do secretário-geral. Ding Xuexiang poderia, pela idade, servir duas vezes como primeiro-ministro (atual posição de Li Keqiang), a segunda de maior peso no PCCh.

Como lembra François Bougon, em “Inside the Mind of Xi Jinping”, Xi defende que a história do Partido devia ser considerada como um todo, sublinhando que as eras de implementação do socialismo e de reforma e abertura seriam complementares. Não deveriam ser separados um do outro, muito menos opostos um ao outro. Xi não quer uma história cheia de erros e contradições, nem uma que levante questões sobre o domínio unipessoal da China (algo que o PCCh considera ter sido fatal para a dissolução da União Soviética). Seu papel é mais do que um ponto de junção. Mao ajudou o povo chinês a “se levantar” após um século de humilhação por potências estrangeiras. Deng colocou a China em um caminho de “enriquecimento”, depois de séculos de pobreza. Agora, Xi está ajudando a China a “se tornar forte”. Esta última fase sera reafirmada no XX Congresso. Mas os desafios são enormes.

As circunstâncias turbulentas do Congresso

O Congresso está envolto em problemas internos e externos para a administração Xi. Em primeiro lugar, a disputa estratégica com os Estados Unidos deixou as relações bilaterais no pior estado desde 1979. Dias antes do início do Congresso, Joe Biden divulgou o primeiro documento de estratégia de segurança nacional para o seu governo. A China foi destacada como o principal rival estratégico dos Estados Unidos. “A China abriga a intenção e, cada vez mais, a capacidade de remodelar a ordem internacional em favor de uma ordem que incline o campo de jogo global em seu benefício”, escreveu Biden em uma introdução ao documento de 48 páginas. De acordo com a estratégia de segurança nacional, os EUA enfrentam dois desafios estratégicos: uma competição pós-Guerra Fria entre grandes potências e desafios transnacionais que vão desde a mudança climática até questões de saúde global. Falando sobre a estratégia, o conselheiro de segurança nacional Jake Sullivan descreveu a China como o “desafio geopolítico mais consequente”: embora a Rússia represente uma ameaça “imediata e contínua”, ela “carece das capacidades multifacetadas da
República Popular da China”.

Ao apresentar a China como o desafio mais sério, o documento afirma que os EUA agiriam para garantir que os EUA preservaria sua supremacia contra a China “nos domínios tecnológico, econômico, político, militar, de inteligência e de governança global”. Com efeito, Washington declarou guerra aberta contra o avanço tecnológico da China. Sob os novos controles de exportação anunciados em outubro de 2022, semicondutores fabricados com tecnologia norte-americana para uso em inteligência artificial, computação de alto desempenho e supercomputadores só podem ser
vendidos à China com uma licença de exportação. O objetivo é aumentar a dificuldade para as empresas chinesas obterem ou fabricarem microchips de computação avançados, desenvolver supercomputadores com aplicações militares que vão desde a modelagem de armas nucleares até o desenvolvimento de armas hipersônicas, além de retardar seu progresso no ramo da inteligência artificial. Empresas ianques como Lam Research, Applied Materials e KLA Corporation, junto com a holandesa ASML – as principais companhias de design e manufatura de equipamentos para fabricação de semicondutores – anunciaram bloqueios de exportação dessas ferramentas críticas para as principais empresas chinesas, como o Semiconductor Manufacturing International Corp, o Yangtze Memory Technologies Co e o ChangXin Memory. As restrições também proíbem cidadãos e empresas estadunidenses de fornecer apoio direto ou indireto às empresas chinesas envolvidas na fabricação avançada de chips. Ainda mais importante que barrar a importação desses equipamentos é a determinação de que pesquisadores e cientistas com cidadania norte-americana estão proibidos de auxiliar o desenvolvimento tecnológico chinês.

Trata-se de um importante revés para a aceleração dos planos de Xi sobre a liderança tecnológica chinesa em nichos de ponta, apontado no Made in China 2025. Reflexivamente podemos dizer que a medida não vai barrar o desenvolvimento tecnológico da República Popular, que ganha novo estímulo para acessar capacidades endógenas; tampouco a liderança norte-americana poderia ser mantida apenas com a obsolescência do aparato técnico chinês, como afirma a pesquisadora Esther Majerowicz. A desaceleração na fissura da fronteira tecnológica será sentida pela China mas também pelos EUA, com perdas bilionárias para suas empresas. Entretanto, a medida é dura e exigirá do governo políticas drásticas de Pequim para evitar asfixiamento de insumos.

Esse desenlace atrapalha a China em outro objetivo estratégico, o de reincorporar Taiwan. O problema de Taiwan é o mais importante item da pauta da reunificação nacional inconclusa da China. É certo que Xi demonstrou poder de dissuasão e pressão com a resposta militar inédita à visita de Nancy Pelosi à Tsai Ing-wen, em agosto, ao encenar um exercício militar com lançamento de mísseis reais que sobrevoaram a ilha (e também parte de regiões sob controle do Japão). Entretanto, o governo de Taiwan vem estreitando laços cada vez maiores com Washington, com uma população que enxerga cada vez mais sua identidade nacional em oposição à China continental. Sob pressão do Pentágono, o treinamento militar do Exército
taiwanês se incrementou, para aumentar a capacidade de dissuasão frente a uma possível invasão. Não é o único no leste asiático. Fumio Kishida, primeiro-ministro do Japão, está redesenhando a estratégia de segurança nacional de acordo com o crescimento do poderio bélico chinês. O governo já planeja aumentar seu orçamento de defesa em cerca de 11%, para mais de ¥6tn (US$41 bilhões) ao ano, até março de 2024. Kishida está considerando desenvolver capacidades de contra-ataque contra bases inimigas e quer adquirir mísseis de cruzeiro com alcance de mais de 1.000 km, permitindo-lhe atingir alvos dentro da Coréia do Norte ou da China. “Precisamos fazer um exame minucioso para saber se a capacidade de defesa do
Japão é adequada ou não. Estaremos totalmente preparados para responder a qualquer cenário possível no leste asiático para proteger a vida e a subsistência de nosso povo
”. Em 2021 o AUKUS – plano de rearmamento nuclear da Austrália, com a cooperação dos EUA e do Reino Unido – completa os contornos de uma situação mais complexa de defesa da China, embora os avanços do Exército de Libertação Popular ocorram a passos largos.

Outro problema grave é a economia chinesa. A China apresentou um crescimento do PIB de 0,4% no segundo trimestre em relação ao ano anterior, e seguiu desacelerando em julho, com a atividade fabril e varejista espremida pela política “Covid-zero” e uma crise imobiliária persistente. A produção industrial de julho cresceu 3,8% em relação ao ano anterior, um pouco abaixo dos 3,9% de junho, segundo dados do National Bureau of Statistics (NBS). O FMI prevê que a segunda maior economia do mundo se expandirá em 3,2% em 2022, abaixo de sua estimativa anterior de 3,3%. Roland Rajah e Alyssa Leng, do Lowy Institute, revelaram um relatório pessimista, segundo o qual o crescimento geral ainda desacelerará para cerca de 3% até 2030, e 2% até 2040. Com a desaceleração econômica, os problemas sociais mais sentidos, como o desemprego e a desigualdade, retornam. A taxa de desocupação entre os jovens de 18 a 24 anos é de 20%, um recorde, embora o desemprego urbano tenha decrescido como média geral.

Conter a taxa de desemprego e a desigualdade social foi a principal razão da política de prosperidade comum, que nada tem a ver com um suposto afastamento do conteúdo social capitalista do Estado chinês. Como explicamos aqui, a “prosperidade comum” de Xi Jinping tem como objetivo evitar explosões sociais que minem a estabilidade política num momento delicado do conflito entre Pequim e Washington; expandir a capacidade de consumo da nova classe média e o potencial mercado interno chinês; dividir as fileiras operárias, registrando determinados direitos salariais e laborais para um setor em detrimento dos demais; disciplinar determinados grandes monopólios aos desígnios políticos do PCCh. Essas metas se tornam mais difíceis num cenário de desaceleração econômica e crise do setor imobiliário, que responde a quase 25% do crescimento chinês.

Essa situação agrava os humores da população sobre políticas impopulares como a Covid-zero. A histeria da política de contenção da pandemia levou a lockdowns em série nas maiores cidades da China, incluindo Xangai, Tianjin, Chengdu e Shenzhen, centros econômicos, comerciais e tecnológico-industriais. O desespero toca setores que até agora se beneficiaram das reformas, a base social central do regime que lhe permite exercer maior opressão e silenciamento sobre a classe trabalhadora, urbana e migrante. Escassez de alimentos, períodos insuportáveis de isolamento e enfermidades de saúde mental fizeram surgir nas redes sociais chinesas associações com a fome durante o “Grande Salto Adiante” (1958-1962), as mesmas redes que se impregnaram de notícias sobre os membros de classe média que decidiam procurar no Google os melhores meios de deixar o país. Como diz Juan Chingo, “Poderíamos afirmar que o regime ‘oriental’ da China baseado em uma grande centralização estatal – onde se concentra seu caráter repressivo – é complementado por uma dimensão disciplinar semelhante à la Foucault, ou seja, configurações de poder e saber que moldam o sujeito”. A forma de governar por campanhas administrativas, uma herança da era maoísta, causa fissuras sociais difíceis de refazer – embora o exercício diário de difusão de ideologia nacionalista seja um ímã para manter coesa a pequena burguesia abastada dos grandes centros.

Externamente, a guerra na Ucrânia e o envolvimento direto da Rússia, é uma dor de cabeça para Xi. De um lado, os Estados Unidos teve êxito até aqui em hegemonizar a Europa através da OTAN, como argumenta Wolfgang Streeck, e escanteando a pueril noção da “soberania estratégica” do Velho Continente. Esse fortalecimento das posições de Washington na Europa é acompanhado por uma relação de parceria mais estreita entre Xi e Putin. Mas estreitamento não significa ausência de atritos. Para além de todas as vicissitudes da guerra, Putin está recolocando na mesa a noção da intervenção de um Estado na soberania e interesses nacionais de outro Estado. Os EUA e as potências imperialistas europeias são especialistas em
destruir outras nações interferindo em sua soberania; a China começa a aprender como operar o expediente de maneira mais sutil. Entretanto, não quer ver os dedos de Washington e Tóquio sobre seus interesses, em especial Taiwan. Desde a década de 1950 a República Popular adota o lema do “respeito mútuo” e da “não-interferência” em assuntos internos. A fórmula padrão para as ameaças de Pequim ao imperialismo norte-americana está fundada nesse lema. O prolongamento da guerra da Ucrânia vai tornando o tema da violação e perda de territórios algo mais presente no léxico geopolítico, depois de década da Guerra Fria. Ademais, Biden espera que um revés militar de Putin tenha um impacto negativo na China e
enfraqueça essa aliança eurasiática.

Isso torna mais complexa a relação entre Xi Jinping e Putin. A cúpula da Organização de Cooperação de Xangai em Samarcanda, no Usbequistão,
retratou um mal-estar indissimulável entre Xi e Putin, com o mandatário russo reconhecendo as “preocupações” do mandarim chinês acerca da guerra. O encontro se deu logo depois da contra-ofensiva ucraniana que retomara a região de Kharkiv. A China precisa de um aliado que lute, não que seja esmagado em campo de batalha. Apesar da imprevisibilidade do cenário da guerra, Putin apresenta vantagens à China. Apoiador estóico da política chinesa sobre Taiwan, Putin compartilha com Pequim o objetivo de frear os interesses norte-americanos na Europa e na Ásia. A China celebra com a Rússia exercícios militares e navais conjuntos, o que permite ao ELP entrar em contato com a moderna tecnologia bélica russa. Os ganhos comerciais da China, ademais, são evidentes: adquire gás e petróleo russos a preços diminutos, o que incrementou em 31% o intercâmbio comercial bilateral. Geopoliticamente, a fragilização da Rússia a torna sócia-menor, de maneira ainda mais palpável, na parceria em que a República Popular joga o papel dominante. Isso já se expressa nas novas relações de Pequim com os países da Ásia Central (Cazaquistão, Usbequistão, Tadjiquistão, Turcomenistão e Quirguistão), historicamente submetidos ao governo russo.

Entretanto, a China tem de tomar muitos cuidados para não piorar suas relações com o Ocidente, já bastante deteriorada e longe de estar livre da dependência tecnológica prejudicial que a fragiliza diante de Washington. O governo de Xi Jinping trata de manter um equilíbrio entre o apoio a Putin, mas sem apostar publicamente sua sorte no apoio firme que as potências ocidentais adotaram em prol da Ucrânia. A questão da defesa da soberania territorial e dos interesses nacionais da China será um ponto contencioso no 20o Congresso, mergulhado no espinhoso tema da guerra, que só andará pelos bastidores...

Um mundo com menos margens de manobra

O curso do Congresso deixará mais claro quais são as prioridades do próximo quinquenato. As perguntas mais difíceis ao regime bonapartista chinês virão depois da sagração do terceiro mandato de Xi. A desaceleração da economia chinesa, a crise demográfica e a concentração dos Estados Unidos em atrapalhar a corrida militar-tecnológica da China são desafios de monta. A crise da Evergrande foi a constatação de que o ramo imobiliário não pode mais ser o principal motor dinâmico da China, como nos últimos 40 anos. Depois de 30 anos em que milhões de trabalhadores deixaram suas aldeias rurais para as cidades, a maior migração da história humana agora diminuiu substancialmente. Ao encolhimento das cidades e à redução populacional, se liga a mudança do padrão de crescimento chinês, que pós-2008 passou a transitar para centrar-se no mercado interno e na produção
de alta tecnologia, afastando-se da dependência do investimento estatal em iniciativas industriais baseadas em trabalho intensivo, orientadas à exportação.

Longe de ser um ator subversivo da ordem imperialista, a República Popular de Xi Jinping quer galgar postos de privilégio nela. A China quer liderar uma “reforma da governança global” e se aproximar do centro do palco. Nunca antes a China teve condições de pleitear uma posição como essa, e mais que nunca surgem perguntas sobre se essas condições acumuladas são suficientes. Múltiplas forças estruturais estão operando na China em meio aos festejos na Praça da Paz Celestial. Algo semelhante se deu na China imperial de Qianlong. No final do século XVIII, a China dominava mais de um terço da população mundial, possuía a maior economia do mundo e, por área, era um dos maiores impérios de todos os tempos. Porém,
no final da vida de Qianlong, a economia chinesa começou a declinar devido a corrupção e desperdício em sua corte e a uma sociedade civil estagnada. As medidas repressivas às revoltas camponesas não puderam mudar o curso descendente da dinastia Qing. O mundo é muito mais complexo hoje do que na época do mandatário manchu.

A guerra na Ucrânia, as crises alimentar e energética, a alta da inflação e o desemprego, projetam instabilidades persistentes. A luta de classes é um fator que voltará com peso no inverno europeu, como anuncia a França com a greve dos petroleiros. Na China, a alta do desemprego entre a juventude trabalhadora, a insatisfação com a política da Covid-zero e a desigualdade social galopante podem ser o estopim de processos de luta de classes já vistos por Xi Jinping na última década, com o biênio operário de 2015-16. As aspirações imperiais do burocrata do PCCh vão se ver atiradas no turbilhão da crise mundial.


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André Barbieri

São Paulo | @AcierAndy
Cientista político, doutorando pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é editor do Esquerda Diário e do Ideias de Esquerda, autor de estudos sobre China e política internacional.
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