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O Surrealismo na Revolução permanente

Afonso Machado

O Surrealismo na Revolução permanente

Afonso Machado

Caminhar no fundo de nós mesmos com uma vela acesa não é apenas um ato de extrema coragem e desprendimento espiritual. Existe no processo de iluminação de lugares ocultos do mundo interior, um aspecto libertário sem o qual não poderíamos conceber uma transformação política profunda da sociedade. Uma posição revolucionária diante da realidade implica num questionamento sobre o quanto temos de acesso a esta mesma realidade. Até que ponto nos é permitido pela ordem capitalista experimentar o real em suas profundezas? A voz surrealista ainda sussurra nos nossos ouvidos, indicando a passagem para a realização de um passeio proibido.

Um jovem militante marxista que concebe suas ações políticas apenas nos quadriculares limites da vigília, ficaria surpreso ao descobrir que a metade adormecida do ser também faz política. Ele ficaria extasiado ao constatar que no movimento desigual e combinado da realidade, nos quadros históricos que flagram a intensificação das lutas sociais, as transformações psicológicas dos indivíduos abrem passagem para uma insurreição interior: isto ocorre precisamente quando o pensamento liberto de qualquer controle exercido pela razão, propicia a produção de imagens da liberdade. Afirma o escritor francês André Breton no Primeiro Manifesto do Surrealismo (1924):

(...) o surrealismo baseia-se na crença na realidade superior de certas formas de associação até aqui negligenciadas , na onipotência do sonho, no jogo desinteressado do pensamento (...) Tal como o concebo, o surrealismo declara tão claramente nosso anticonformismo absoluto que não seria possível ocorrer a alguém cita-lo, no processo contra o mundo real, como testemunha de defesa (...) Viver e deixar de viver que são soluções imaginárias. A existência está em outra parte (...)

Beneficiando-se da revolução metodológica da psicanálise para realizar a investigação do inconsciente e reivindicando um lugar de destaque na rebelião romântica, o movimento surrealista apresenta questões que não podem ser negligenciadas por aqueles que estão empenhados na transformação da sociedade. A necessidade histórica de implodir as opressoras estruturas econômicas e sociais do capitalismo segundo um processo político internacional dirigido pela classe trabalhadora, é inseparável de um aprofundamento sensível do mundo circundante. No nosso entender, a teoria da Revolução permanente de Leon Trotski abre-se para as contribuições libertárias das ideias de Breton. Para tratarmos desta questão que remete a uma reflexão sobre as relações entre o surrealismo e o materialismo histórico, teremos como ponto de partida a articulação entre o mito grego de Prometeu, o pensador alemão Karl Marx e o poeta francês Arhur Rimbaud. Todos, sem exceção, ícones de uma postura revolucionária que alimentaria com sua seiva incandescente o surrealismo.

Roubar o fogo, mudar a vida e transformar o mundo

O humanismo radical de Marx localiza as ideias e as imagens revolucionárias para além das ideias do antigo estado de coisas, para além das ideologias das classes proprietárias. Ao evocar a figura mitológica de Prometeu, o jovem Marx em sua obra Diferença entre a Filosofia da Natureza em Demócrito e Epicuro, encontra na tragédia Prometeu Acorrentado, do dramaturgo Ésquilo, a imagem rebelada que não aceita a dominação de nenhum deus:

(...) O ímpio não é o que despreza os deuses da multidão, mas o que adere à ideia que a multidão tem dos deuses(...) Numa palavra, odeio todos os deuses!(...) Prometeu é o primeiro santo, o primeiro mártir do calendário filosófico (...)

Um pensador alemão do século XIX de nossa era extrai do texto de um escritor grego do século V a.c, a imagem fundamental que não admite a opressão e coloca o pensamento a serviço do homem. Nesta citação literária, a imaginação estética integra-se à luta pela emancipação humana: trata-se da necessidade de símbolos rebeldes, de imagens do pensamento que se opõem às imagens que dominam os homens. Segundo esta perspectiva a imagem artística não seria um fator de integração e adorno da cultura dominante, mas uma expressão rebelde que comunica a recusa de um modo de existência social. A imagem concebida enquanto expressão da linguagem do desejo, invalida a realidade estabelecida num gesto de algemas e correntes caindo pelo chão.

O traje de Prometeu seria vestido por artistas e poetas da modernidade, como Rimbaud. Não por acaso este último considera o poeta um ladrão de fogo, o comunicador de um conhecimento secreto, proibido, transgressor:

“ Portanto,
o poeta é um ladrão de fogo.
Ele é encarregado da humanidade, dos animais mesmo;
Ele deverá fazer sentir, apalpar, escutar suas invenções;
se o que ele traz de lá possui forma ,ele dá forma;
se é disforme (informe) ele dá a não forma (informe).
Achar uma língua “.

(Arthur Rimbaud)

Herdeiros de Prometeu, os poetas da modernidade que propiciam uma outra experiência com a realidade conduzem o choque com a cultura estabelecida pela classe dominante; ou seja, aquela que elege os deuses que dominam os homens ao controlarem seus pensamentos. A transgressão de todo o campo superestrutural surge na imagem inventada enquanto promessa de libertação, levantando a possibilidade histórica de uma intervenção política sobre as bases materiais das sociedades. A visão dominante é abalada por outras possibilidades de vida, de compreensão da realidade. Metaforicamente falando, o olho humano, domesticado pelos seus senhores e por suas fantasmagorias, é agredido, rasgado, tal como Luís Buñuel e Salvador Dali demonstram nas cenas iniciais do filme Um Cão Andaluz(1929). Os laços sanguíneos dos surrealistas do final dos anos de 1920 com Rimbaud e logo com Prometeu, fazem com que todos estes rebeldes adquiram um registro de paternidade filosófica na prosa que Marx desenvolveu ao longo de sua obra.

Outrossim, nem sempre foi possível a Marx reconhecer os filhos revoltados, os irmãos transgressores e os pais desobedientes que a história produziu, sejam eles mitos ou pessoas de carne e osso. Bertolt Brecht, escritor e dramaturgo alemão que desenvolveu aspectos estéticos fundamentais do materialismo histórico no âmbito do teatro político, chegou a afirmar em diálogo com Walter Benjamin que se Marx e Lenin tivessem lido Rimbaud, teriam percebido que o poeta francês foi expressão de um movimento histórico em que a fuga de uma classe, o vagabundear “ para fora “ de uma civilização, envolve a atitude de alguém que não suporta mais as barreiras da sociedade burguesa. Pode-se dizer que André Breton, fundador e principal teórico do movimento surrealista, procurou sistematizar esta tradição de ruptura verificada em autores como Rimbaud e Lautréamont. Enquanto genuíno exemplo do romantismo anticapitalista do nosso tempo, o surrealismo promove a fuga e a revolta contra a civilização capitalista.

Esta atitude rebelde de fuga, de furto do conhecimento proibido e ruptura com os valores burgueses, preconizada por Rimbaud, o movimento surrealista dos anos de 1920/30 procura dar continuidade. O surrealismo revela no âmbito da superestrutura formas oníricas que expressam as transformações das forças produtivas na era industrial: as novas realidades técnicas, que no contexto do trabalho alienado escravizam as massas, são fontes de desbravamento da imaginação. O relato poético dos surrealistas articula-se por exemplo com a fotografia e o filme, liberando em sentido dialético a imaginação, o desejo reprimido, a contestação do sagrado, o impulso de “ mudar a vida”. São imagens que sonham com outra realidade histórica negadora da moral, dos costumes e das tradições da classe que controla o Estado. A imagem surreal torna-se expressão da revolta, da luta para libertar-se da antiga ordem opressora. Neste caso em particular, a manifestação artística choca a multidão precisamente por voltar-se contra a cultura oficial que impõe a vontade divina, traje metafísico da classe exploradora.

Surrealismo e marxismo

A revolta do espírito conduzida pelos surrealistas se faz através de uma ação muito antiga: a poesia. Esta última é algo muito além da literatura. Para os surrealistas o verbo não consiste na matéria prima para convenções literárias . O verbo em suas propriedades alquímicas é um material a ser usado numa ação revolucionária sobre o corpo humano: a palavra possui um valor de sonda na investigação dos sonhos, das coincidências petrificantes, das situações em que as necessidades interiores são reveladas no encontro com a pessoa amada. A bussola do desejo, a busca do amor, a recusa das convenções burguesas... O surrealismo indica o caminho da passagem mágica para nos despedirmos da cultura estabelecida. E o marxismo com isso? O pensador e militante Michael Lowy, autor do notável livro A Estrela da Manhã: Surrealismo e Marxismo, afirmou corretamente que o surrealismo não pretende fornecer um programa ou uma estratégia para o marxismo. A fecunda contribuição que as ideias surrealistas traz para o materialismo histórico verifica-se nas manifestações subversivas no campo da cultura, ou melhor dizendo, na negação revolucionária de um tipo de cultura.

Enquanto posição definida mas não dogmática diante das coisas, o surrealismo atua por uma transformação integral da vida humana: entendido que a cultura dominante implica na repressão da vida, na humilhação do erotismo e na promoção do instinto de morte, o surrealismo trava um combate libertário contra a ordem burguesa. Perante as tendências autoritárias que cultuam a morte e desprezam a vida, algo evidente na nova extrema direita religiosa em suas taras belicosas, as ideias surrealistas podem contribuir politicamente no campo da cultura com a construção de um novo princípio de realidade no qual Eros prevaleça sobre Tânatos.

A história do movimento surrealista mostra o quanto foi problemática a sua aproximação das organizações políticas comunistas que passaram a viver sob o cabresto do stalinismo. A adesão de parte dos quadros do surrealismo ao materialismo histórico data desde, pelo menos, a invasão das tropas francesas no Marrocos em 1925: esta iniciativa imperialista trouxe indignação entre os artistas e intelectuais franceses de esquerda. Ao tomarem partido do movimento operário, os surrealistas exprimem a compreensão de que a concretização dos objetivos de libertação do humano depende diretamente da superação histórica do capitalismo. Todavia, os surrealistas pretendem participar da luta pela emancipação social sem abrir mão das premissas dos seus meios de investigação do mundo interior e das pesquisas artísticas que se desenvolvem a partir daqueles.

Mesmo hoje existe um certo estranhamento entre alguns marxistas sobre as pesquisas artísticas do surrealismo. Quando passa-se ao debate artístico dentro da esquerda, geralmente entre as correntes políticas nacionalistas, não é raro encontramos uma redução do campo cultural ao tema da arte social: tudo aquilo que não guarda uma relação direta com temas como a lutas de classes, torna-se algo menor. Evidentemente que a concepção histórica do marxismo influencia necessariamente na elaboração de uma arte de combate que toma partido das classes oprimidas, logo objetivando a participação artística na construção da consciência de classe dos trabalhadores. Cabe ao marxismo fornecer instrumentos de análise que auxiliam na elaboração das obras de arte que, a partir dos próprios meios de expressão inerentes ao processo criador, tratam dos problemas políticos e sociais. Esta perspectiva da arte política é fundamental, mas não é tudo: as contribuições dos surrealistas para a arte revolucionária não consistem na ilustração artística das lutas sociais mas num aprofundamento sensorial da realidade, na superação dialética das antinomias humanas numa direção norteada pelo desejo sem coleiras. Afirma Breton no Segundo Manifesto do Surrealismo(1930):

(...) Tudo leva a crer que existe um certo ponto do espírito de onde a vida e a morte, o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser percebidos como coisas contraditórias. Ora, seria falso atribuir á atividade surrealista qualquer motivação que não fosse a esperança de determinar esse ponto (...)

É politicamente previsível que a miopia intelectual colocada a serviço da opinião pública burguesa, leve ao juízo tacanho de que o surrealismo é um movimento artístico, acabando por neutralizar pelos caminhos institucionais a substância subversiva do movimento, tornando-o inofensivo. Os intelectuais conservadores ignoram que as inestimáveis contribuições que o surrealismo trouxe para a arte moderna, inclusive para a pintura, não se separam de uma postura contestadora. Sim, a crítica burguesa está no seu papel de neutralizar movimentos transgressores e conservar o mundo como ele é. Mas entre os militantes que lutam contra o capitalismo, ainda são poucos os que valorizam as contribuições do surrealismo. Não é admissível dentro da esquerda o desprezo pelo movimento surrealista que, apesar de não ser expressão filosófica direta do marxismo, traz contribuições fundamentais para o pensamento revolucionário. Novamente, no Segundo Manifesto do Surrealismo, Breton afirma:

(...) Como admitir que o método dialético só possa aplicar-se validamente á solução de problemas sociais? A ambição maior do surrealismo é fornecer-lhes possibilidades de aplicação de modo algum concorrentes no domínio consciente mais imediato. Em que pese certos revolucionários de espírito acanhado, não compreendo por que nos absteríamos de colocar, desde que os abordássemos do ponto de vista a partir do qual eles- e também nós- o fazem, que é o da Revolução, os problemas do amor, do sonho, da loucura, da arte e da religião. Ora,, não me temo de dizer que, antes do surrealismo, nada sistemático fora feito nessa direção e que, no ponto em que o encontramos, também para nós o método dialético, sob sua forma hegeliana, era inaplicável (...)

Não foi fácil para o movimento surrealista lidar com o a truculência e o autoritarismo que tomaram conta das organizações políticas orientadas pelo stalinismo a partir dos anos de 1930. Certo, Breton, que foi alvo tanto da opinião pública burguesa quanto do stalinismo, não é exatamente um exemplo democrático. Este brilhante escritor possui sérias contradições: seu autoritarismo na condução do movimento surrealista é simplesmente documental. Breton tinha dificuldades para compreender e aceitar a diversidade sexual, o que é particularmente grave para alguém que entende o desejo segundo uma perspectiva revolucionária, portanto fora da moral burguesa. Sua concepção do amor, embora poeticamente fecunda e legítima enquanto orientação/busca individual , apresenta traços românticos e corteses que não seriam perdoados pela crítica feminista da escritora existencialista Simone de Beauvoir. Mas descontando estas contradições e polêmicas que precisariam ser discutidas em um outro momento/texto, fica registrado aqui um aspecto fundamental para pensarmos a vida cultural dentro da esquerda : a conexão entre as ideias surrealistas e a Revolução permanente.

O internacionalismo de Trotski e sua compreensão heterodoxa, libertária e independente do papel que a arte desempenha nos quadros históricos de uma revolução, levaram surrealistas como Benjamin Péret a militarem nos anos de 1920/30 na Oposição Internacional de Esquerda. Todos sabemos que existe uma inegável intersecção histórica entre o surrealismo e o trotskismo. O encontro entre Trotski e Breton no México em 1938 , acompanhados pelo extraordinário pintor Diego Rivera, acarretou como se sabe no Manifesto Por uma Arte Revolucionária Independente, documento revelador de uma poderosa concepção marxista da arte. Para pensarmos agora em profundidade a atuação surrealista no espaço da revolução, se faz necessário localizar historicamente a maneira como a teoria política de Trotski pode encontrar-se com a poesia de Breton.

O poeta surrealista como agente da Revolução permanente

Trotski concebeu, no início do século passado, a luta operária segundo um processo histórico em que a revolução socialista ultrapassa a revolução nacional burguesa. De acordo com a liderança do proletariado internacional, os países capitalistas pobres encapam suas revoluções influenciando os trabalhadores dos países capitalistas ricos: estes devem impulsionar suas lutas revolucionárias. Nesta dinâmica política que consiste nos saltos dialéticos da história, a revolução nacional segue para o campo internacional e assume progressivamente a forma de uma guerra revolucionária em escala mundial. Até aqui qualquer conhecedor do pensamento político de Trotski não encontra nenhuma novidade. Entretanto, discute-se pouco as implicações culturais deste processo histórico revolucionário permanente. No interior destas lutas os componentes artísticos, comportamentais, bem como os costumes e logo a percepção estética, são profundamente alterados. É neste ponto de desvelamento da realidade, de crise da cultura estabelecida, que movimentos como o surrealismo trazem uma contribuição ímpar.

Contrariando aqueles que enxergam erroneamente o surrealismo como fenômeno exclusivamente francês ou europeu, podemos afirmar que os surrealistas souberam se colocar á altura do pensamento internacionalista de Trotski: seja no velho mundo ou no novo mundo, o surrealismo armou-se com tradições culturais que atuam como antítese da cultura burguesa colonizadora. Em sua trajetória o movimento surrealista valorizou as culturas africanas e pré-colombianas enquanto eixos culturais distintos do eurocentrismo, ressaltando os aspectos da magia e de realidades sociais cuja moral é um desafio aos padrões burgueses. Lembremo-nos que quando Benjamin Péret esteve no Brasil em 1929/31, e depois na década de 1950, o poeta francês realizou paralelamente ás suas atividades políticas militantes estudos sobre o candomblé, sobre os rituais de origem africana e também indígena. Péret também escreveu sobre episódios marcantes das lutas sociais na história do Brasil ( em 1956 o poeta redigiu um belo relato histórico sobre o Quilombo de Palmares). No contexto mais propriamente europeu, os surrealistas mergulharam fundo nos aspectos comunitários e “ pagãos “ da cultura pré-capitalista. Os poetas surrealistas enxergaram no Romantismo contemporâneo do capitalismo industrial, uma posição inconformista e ligada a um fazer poético em que ação e sonho, política e poesia, não possuem fronteiras. Todo este caldo cultural subversivo, em que poderiam ser acrescentados outros aspectos e referências, possui um inegável caráter internacionalista, logo avesso ao nacionalismo populista.

Opondo-se desde muito cedo á soluções políticas reformistas, recusando-se a aceitar a ilusória tentativa de conciliação entre burguesia e proletariado, o surrealismo trabalha a seu modo para que a “ sociedade mude de pele “(Trotski), impedindo com que as relações sociais atinjam no plano dos costumes e da moral um estado de equilíbrio(Trotski). Estas qualidades combativas do surrealismo fundem-se de maneira surpreendente com o marxismo: seja na exaltação de culturas em que inexistem o Estado e a propriedade privada, seja na instauração de uma poesia selvagem que se conecta com as lutas políticas revolucionárias. Como veremos mais adiante, isto é cristalino quando nos debruçamos sobre a história recente da França.

O surrealismo aparece como importante reforço para o materialismo histórico. O Primeiro Manifesto do Surrealismo apresenta um conceito radical de liberdade, acabando por dilatar a partir da imaginação , do inconsciente, o sentido político contestador das imagens históricas:

(...) A palavra liberdade é a única que ainda me exalta. Considero-a apta a sustentar, indefinidamente, o velho fanatismo humano. Ela responde, sem dúvida alguma, a minha única aspiração legítima (...)

O Surrealismo é definido no mesmo manifesto como sendo:

(...) Automatismo psíquico em estado puro mediante o qual se propõe exprimir, verbalmente, por escrito ou por qualquer outro meio, o funcionamento do pensamento. Ditado do pensamento, suspenso qualquer controle exercido pela razão , alheio a qualquer preocupação estética ou moral (...)

Ao ignorar as amarras morais e estéticas da sociedade burguesa, a prática poética dos surrealistas oferece formas de liberação do pensamento, gerando uma realidade virtual para além das aparências, uma super realidade em que as polarizações percebidas contraditoriamente pelo homem, educado na sociedade burguesa, são “superadas”: o sonho e a vigília, o externo e o interno, o alto e o baixo, a vida e a morte, a carne e o espírito etc. Se faz necessário, a partir das qualidades românticas revolucionárias do surrealismo, enxergar a sua possível participação na composição das narrativas revolucionárias. Ao rememorar, ao escavar a memória soterrada, o surrealista coloca á luz do dia conteúdos reprimidos pela história das sociedades de classes: o sonho, portanto a outra metade desconhecida da vida, a dimensão interior voltada para “ o paraíso”, ou se quisermos, para um passado histórico anterior ao surgimento da propriedade privada, do Estado e da religião. Ao basear sua narrativa no desejo, o surrealismo representa o passado e o presente num mesmo espaço mental, numa mesma imagem ou objeto que livre da sua aparência alienada revela as energias políticas subversivas: estamos diante de uma insurreição espiritual que remove o mundo das aparências e instaura pela imaginação a ordem do desejo.

Revolucionar as condições materiais de existência a partir da direção política operária, condiz também com a transformação da raiz material do corpo humano, exigindo-se assim o aprofundamento sensível na produção da imagem revolucionária, agora lavrada pelo desejo liberado. A ordem burguesa é a única responsável pelo soterramento da memória dos oprimidos e do desejo dos homens alienados. O estranhamento no campo da imagem, a revelação das forças ou atmosferas ocultas nos objetos, nas pessoas e nos lugares, dinamitam a linguagem funcional que atende á dinâmica capitalista, libertando o olhar humano das relações psicológicas e culturais estabelecidas pela classe proprietária. Liga-se assim por meio da imagem ou da poesia os fatores externos com o mundo interior, com o sonho primavero da humanidade.

A Comuna de Paris, o movimento surrealista e o Maio de 68

Podemos afirmar que o projeto surrealista está entre duas eras da história da França para se sonhar a revolução: a Comuna de Paris de 1871 e o Maio de 1968. O fracasso da Comuna, o primeiro governo operário da história, é um episódio certamente formador da sensibilidade revolucionária de todos os militantes de esquerda que vieram posteriormente. A Comuna combateu, de acordo com o desejo libertário de uma municipalidade socialista, o desenho urbano reacionário de Hausmann expresso nos boulevards, na abertura de longas avenidas( que facilitavam a repressão policial) e na sedimentação dos “telhados penteados com metralhadoras” . Em seus 72 dias de existência a Comuna, apesar de suas falhas militares que explicam o massacre realizado pelos exércitos francês e prussiano, revelou a possibilidade histórica real de um governo dos trabalhadores. Tamanha foi a repressão militar contra os communards numa tragédia que contou com mais de 20 mil trabalhadores fuzilados, que a quantidade exorbitante de sangue não era assimilada pelo encanamento da cidade de Paris.

Anos mais tarde, a revolta surrealista fornece em 1920/30 combinações poéticas para se sonhar acordado com outra cidade, não funcional, não submetida ao capital e portanto aberta ao encontro, ao desejo, ao ócio, ao devaneio e á rebelião contra o trabalho alienado e a moral burguesa, invocando assim a memória dos communards, dos assaltantes do céu que procuraram realizar politicamente os valores do sonho libertário assumido poeticamente pelo movimento surrealista. É precisamente isso que Louis Aragon demonstra no livro O Camponês de Paris(1926), obra que deixava Walter Benjamin com taquicardia, tamanho seu impacto poético. É o que encontramos também nos livros Nadja(1928), Os Vasos Comunicantes(1932) e O Amor Louco(1935) redigidos por Breton. Os passeios á deriva, as associações mágicas na grande cidade, os devaneios e a sublevação do olhar surrealista preparam uma vingança revolucionária em nome dos communards.

Os surrealistas ajudaram a construir uma postura poética que eclodiria durante as revoltas estudantis e operárias do Maio de 1968. Os grafites e cartazes dos enrangés apoiados em reivindicações como “ A imaginação no poder “ , integravam-se poeticamente ás novas barricadas, que invocaram no momento negro e vermelho da revolta, a memória de communards e surrealistas. Durante o Maio de 68 notamos nas estratégias estéticas do cartaz e do grafite a necessidade de expressar a rebelião política numa nova fase da modernidade: os signos do capital e a linguagem da classe dominante, ocupam espaços da cidade a partir das tecnologias de onde decorrem os anúncios publicitários, as imposições comerciais, a adoração imagética das multinacionais. As práticas artísticas dos enrangés subvertiam estes signos, recusando, nas palavras do filósofo alemão Herbert Marcuse, o caráter unidimensional do homem contemporâneo. De fato, os trabalhadores da era do capitalismo avançado constroem a sua consciência segundo uma cultura ancorada na técnica moderna. A poesia surrealista se opõe a este estado de coisas, ocupando o espaço público com versos e frases libertárias, tal como os estudantes franceses registraram em seus grafites. A poesia surrealista profana os signos do capital.

A validade subversiva do surrealismo
No contexto histórico do presente século, em que máquinas digitais são operadas, em que novas tecnologias alteram a construção de narrativas/ imagens e assaltam os sentidos humanos produzindo um efeito de eletricidade, a imagem pode comunicar um conteúdo revolucionário a partir do próprio choque que resulta no estranhamento do leitor/espectador. As imagens do mundo interior não surgem a partir do lucro mas de uma necessidade que nada tem a ver com o mundo governado pelas mercadorias. A iluminação profana (Benjamin) do surrealismo, mobilizadora das energias da embriaguez para a revolução (Benjamin), instaura o poder poético da Beleza convulsiva (Breton).

O olhar surrealista atravessa com indiferença a praça do comércio: os passos dados numa região em que o desejo é a lei, movimentam corpos que não querem comprar nada. E o que estes corpos buscam? Reinventar a vida, descobrir aquilo que os surrealistas consideram a chave das situações ou o lugar geométrico do desejo.


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