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O Feminismo para os 99%, uma alternativa anticapitalista ao feminismo liberal

Redação

O Feminismo para os 99%, uma alternativa anticapitalista ao feminismo liberal

Redação

Autora, junto com Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser, do “Feminismo para os 99%: Um manifesto” [em português, Boitempo, 2019], Cinzia Arruzza é professora de filosofia na New School of Social Research [Nova escola de pesquisa social, em tradução livre] de Nova York. Ela responde às questões elaboradas por Josefina Martínez acerca do que seria, segundo ela, as principais apostas desse feminismo da maioria.

Quais são o objetivo e a tese principal do “Feminismo para os 99%: Um manifesto”?

O feminismo para os 99% é a alternativa anticapitalista ao feminismo liberal, que se tornou hegemônico ao longo das últimas décadas em razão do baixo nível de lutas e de mobilizações em todo o mundo. Nós compreendemos o “feminismo liberal” como um feminismo centrado nas liberdade e igualdade formais, que procura certamente eliminar a desigualdade de gênero, mas através de meios que estão disponíveis apenas para mulheres da elite. Pense o feminismo encarnado por mulheres como Hilary Clinton ou aquele que vem se tornando na Europa um aliado das políticas islamofóbicas de determinados Estados, “em nome dos direitos das mulheres”, como explica Sara Farris em sua recente obra “In the name of women’s rights: the rising of Femonationalism” [Em nome dos direitos das mulheres: o crescimento do Femonacionalismo, em tradução livre].

Para ser exata, é um tipo de feminismo que visa a igualdade de gênero internamente a uma classe específica, aquela dos(as) privilegiados(as), deixando de lado a grande maioria das mulheres.

O feminismo para os 99% é uma alternativa ao feminismo liberal, primeiramente porque ele é abertamente anticapitalista e antiracista: ele não separa a igualdade formal e a emancipação da necessidade de transformar a sociedade e as relações sociais em suas totalidades, de superar a exploração do trabalho e a pilhagem da natureza, do racismo, da guerra e do imperialismo. Finalmente, ele posiciona-se diretamente como parte integrante do “transfeminismo”, defendendo também os direitos e as necessidades das trabalhadoras do sexo e buscando alianças sociais e políticas com todos os movimentos que lutam por um mundo melhor para os 99%.

Você acredita que o novo movimento de mulheres que está se desenvolvendo ao redor do mundo poderia ser a vanguarda de um retorno mais generalizado da luta de classes?

Esta é minha experiência e minha aposta. Primeiramente, esta nova onda feminista é a única mobilização transnacional existente que reúne milhões de mulheres e homens do mundo inteiro. Além disso, em alguns países, já muito difícil distinguir claramente a luta declasses do movimento feminista: principalmente na Argentina, é claro, mas também na Espanha ou na Itália.

Eu acredito que aquelas e aqueles que estão sinceramente interessados em reviver a luta de classes deveriam desistir de uma vez por todas das atitudes desdenhosas e divisionistas em relação a essa nova onda feminista; deixar de ver as mobilizações feministas como uma antítese da luta de classes ou, no melhor dos casos, um complemento externo a ela.

Prefiro convidar a pensar a nova onda feminista como um processo de radicalização e de politização no qual a subjetividade das trabalhadoras – frequentemente jovens, precárias, mal pagas, não remuneradas, exploradas e abusadas sexualmente em seus locais de trabalho – está emergindo como uma subjetividade combativa e potencialmente anticapitalista.

Parece que, na lutas atuais e futuras da classe operária, as mulheres vão desempenhar um papel protagonista. Isso já está ocorrendo?

É preciso levar em consideração um fenômeno interessante: nós somos testemunhas de um aumento significativo das greves e mobilizações nos locais de trabalho que estão dentro do âmbito da reprodução social. Por exemplo, as greves de professoras nos Estados Unidos (greves ilegais, que estão mudando significativamente a dinâmica do movimento operário), a greve das trabalhadoras da saúde na Índia ou de professoras no Brasil. São greves nas quais as trabalhadoras são maioria e têm um papel chave. Embora não exista um vínculo explícito entre essas greves e a Greve Internacional de Mulheres dos últimos anos, acredito que o movimento feminista está desempenhando um papel no empoderamento dessas mulheres, demonstrando que a rebelião é possível e necessária.

Durante as mobilizações feministas (no Estado Espanhol ou na Argentina) ouvimos cada vez mais “Patriarcado e capital, aliança criminosa”. O debate sobre a relação entre a opressão de gênero e o capitalismo está sendo reaberto?

BEm, eu acredito que a razão reside no fato de estarmos voltando a pensar em fenômenos estruturais e na complexidade das relações sociais, enquanto nas últimas décadas a maior parte do feminismo estava imerso no chamado “giro linguístico”, centrando principalmente em temas de língua, cultura e relações interpessoais de poder.

Desse ponto de vista, é um sinal muito positivo que as jovens ativistas e pensadoras feministas se interessem a compreender a conexão estrutural entre opressão de gênero e o capitalismo, a entender as profundas causas da nossa situação atual.

Em diversos artigos, você polemiza com as teses do “sistema dual” que definem o capitalismo e o patriarcado como sistemas autônomos. Por que você considera essa teoria como incorreta e quais as consequências práticas ela tem para o movimento de mulheres?

Existem diferentes versões da teoria do “sistema dual”, que possuem consequências políticas diferentes. A mais clássica, influenciada pelo feminismo materialista francês, termina – de uma forma ou de outra – conceitualizando a opressão racial e de gênero como sistemas de relações de exploração; portanto acabam conceitualizando o sexo como classe. Estou simplificando bastante aqui; a teoria teve vários desenvolvimentos ao longo das últimas décadas e chegou a conclusões mais matizadas em alguns autores.

No entanto, tenho duas objeções principais. Primeiro, se compreendemos o sexo como classe, então devemos também interpretar a opressão sexual e de gênero como antagonismos de classe, o que basicamente descarta as possibilidades de alianças e lutas comuns (entre mulheres e homens). Para simplificar: não faria uma aliança com meu patrão.

Segundo, se sexo, raça e classe expressam três sistemas autônomos que se entrecruzam ou se combinam, não fica claro, absolutamente, porque eles agem assim: qual é a razão? De fato, a verdade é que, em alguns casos, as formas tradicionais de opressão de gênero entram literalmente em conflito com os interesses capitalistas.

Em contraposição às teorias “duais”, você defende a importância do conceito de “Reprodução social” para uma teoria feminista marxista…

A forma como interpreto esta relação – junto com autores como Nancy Fraser, Tithi Bhattacharya, Sue Ferguson, Sara Farris, David McNally e outros – se baseia na noção de reprodução social. Em poucas palavras, se refere às atividades e ao trabalho que implica a reprodução biológica, cotidiana e geracional da força de trabalho.

Mas sejamos claros: reproduzir a força de trabalho significa reproduzir as pessoas e a vida. Isso não se limita à mera subsistência ou às necessidades de sobrevivência, como também à satisfação de necessidades mais complexas e a reprodução de habilidades que contribuem a converter a força de trabalho nessa mercadoria especial que pode se vender no mercado capitalista.

Estamos, portanto, falando da socialização dos filhos, da educação, mas também da saúde e dos serviços sociais. A mão de obra nesse tipo de atividades é fortemente feminizada em dois sentidos: a grande maioria das trabalhadoras (assalariadas e não assalariadas) são mulheres, e suas condições de trabalho estão entre as mais exploradas.

Qual é a relação que liga a opressão e a exploração à esfera da reprodução social?

A chave para compreender a relação entre a reprodução social e a opressão de gênero (e, em parte, a opressão de raça) é que, no sistema capitalista, a reprodução social está necessariamente subordinada à produção em função dos lucros.

O paradoxo é que o capitalismo necessita que haja reprodução social e que seja relativamente funcional, porém não quer pagar o custo por ela. Especialmente porque todas as atividades da reprodução social supõe baixa tecnologia e demandam intensa mão de obra, o que significa que elas custam caro. A maneira pela qual os capitalistas (e os Estados) conseguem manter esses custos os mais baixos possíveis varia, mas podemos identificar alguns fenômenos comuns: o aumento do uso de mão de obra imigrante mal remunerada e não organizada em setores privados (por exemplo, os(as) imigrantes que cuidam de pessoas dependentes ou de idosos); os cortes de gasto social e nos serviços sociais que obrigam as mulheres e as pessoas feminizadas a realizar esse trabalho gratuitamente dentro de casa; a mercantilização dos aspectos mais rentáveis do trabalho reprodutivo social – cadeias de restaurantes, lavanderias etc – empregando novamente uma mão de obra imigrante barata.

Nós podemos concluir que a exploração de classe, as opressões de gênero e de raça, formam uma totalidade complexa no capitalismo..

Há muito mais a dizer sobre esses processos, a teoria da reprodução social não explica tudo, mas nos proporciona as ferramentas teóricas para ver como fenômenos aparentemente desconectados têm lugar em um contexto de relações sociais de produção e reprodução que aprisionam a vida e as pessoas, que limitam enormemente as opções disponíveis e que organizam e restringem a temporalidades de nossas vidas.

Publicação original na revista online Contexto [https://ctxt.es/es/20180815/Politica/21197/Cinzia-Arruzzo-feminismo-intelectual-99-anticapitalismo-Josefina-L-Martinez.htm]

Tradução: Lina Hamdan


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