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Nestes dias, queria que meu corpo fosse sismógrafo

Luno P.

Nestes dias, queria que meu corpo fosse sismógrafo

Luno P.

Experimento dramatúrgico: escrever uma confissão que pode ser endereçada para alguém real, fictício, ou para o mundo, ou para ninguém.

Essa é uma carta. E ela começa assim.

Eu te confesso.

Te confesso que nesses dias tenho sido engolido por meu quarto, que é mais frio que o resto da casa, que também é mais fria do que a minha rua, porém nos dias não deixa de ser barulhenta. São nesses dias que passo me debatendo entre a necessidade a vontade e a inércia de estar sendo engolido pelos cantos de minhas paredes. E talvez tenho em mim a tendência de me afundar sorrateiramente em uma hipótese? Tenho me afundando na hipótese de que não sei mais onde que termina meu quarto e suas extensões, seu cheiro, seus fios elétricos e sujeira, e onde começa meu corpo de carne ossos maxilares saliva e suor.

Já fazem dias que minha internet pouco funciona. Mas nestes momentos é que me dirijo a sala, e faço comida, algum exercício, saio de caso, pulo, eu canto, eu danço e deixo que minha boca, vire palco de grandes insurreições e das maiores ideias já existentes do mundo.

E então o som dos carburadores, das buzinas, com as latas de sardinhas, conversas e máscaras, salgados prontos e pratos feitos. Andando como quem resolve um quebra-cabeças. Se enfrentando com dragões de fogo e suas fumaças que distorcem a luz do sol. A rotina. O caminho. O trabalho. A pálpebra que treme involuntariamente. O diálogo sobre o tempo que passa.

Ele: (saindo da outra cena e indo em direção a extrema ponta do palco, ele esbarra com quem grava a vida): Opa! Com licença...desculpa pelo atraso. É que pra mim escrever é antes de tudo se enfrentar com um monstro de ideias. E falar do que escrevo é desferir todos os golpes na manga. E andar por essas ruas nesses últimos dias tem sido como se meus pés fossem quebra cabeças que caem ao chão. E enquanto vou catando os pedaços um a um pela rua até formar uma nova imagem, nesse meio tempo eu vou perdendo meu rosto, meu nome, meus fios de cabelo, minha carteira, meu dinheiro, minha identidade, minha roupa favorita...

(O tempo para interrompendo o fluxo de ideias)

Cobradora: Não tem nenhuma moedinha para facilitar no troco?

Ele: Oi?

Cobradora Moeda? Pro troco

Ele: Ah, desculpa, tenho sim.

(O tempo volta)

Cobradora: Tem aqueles dias que aparentemente todos falam de dores diferentes e dores tão comuns que eu entendo tudo. E em mim, tudo sai embolado. E nessa tontura toda voz me soa inaudível. E como diz o poeta: misturando feijão com farinha e pedaços de carne assada e dizem coisas tão reais como o ônibus que atrasou, a tosse da tia no quarto, o verão de 30° graus e o garoto que se acidentou de bicicleta na estrada.

(O tempo para interrompendo o fluxo de ideias)

Tudo isso até chegar a noite, quando tudo muda e a cidade vira silêncio.

Quando eu olho para a cidade assim, vazia e sem ninguém nas ruas, depois de dias e mais dias de trânsito carburadores e buzinas, penso comigo que ela deixou de existir, e logo me corrijo porque ela não só existe como também pulsa em sua contradição, prestes a explodir, prestes a queimar. Nestes dias, parece que algo está em suspenso. Parece que as coisas não deveriam ser assim, mas o fato é que são e que não deveriam ser, e isso me traz um ódio que é tão imensurável e que não é raiva, porque raiva passa, e meu ódio continua sendo alimentado todos os dias. E o faço como quem alimenta a vontade de engolir o mundo e a vida de olhos bem abertos, arregalados eu diria. Alimento esse ódio em todos os preços do mercado, em todos os segundos de intervalo entre cada morte, cada buzina, cada grão de feijão, cada lágrima guardada que vira mar, cada sorriso, em cada "alô tudo bem como vai", em toda a miséria nas ruas contrastando com os grandes prédios cinzas demais desta cidade. Cidade que a mim é cada vez mais minha, mesmo sendo estrangeira, confesso, mas que conheço tudo e sei que cada operário que faz as coisas, assim como as coisas o fazem, e que faz também as rodas desse mundo gigantesco em sua pequenez girarem, sabe tão quanto mais que eu e qualquer outro. E tem em suas mãos também a forja e o fogo necessário para que essa cidade exploda em suas contradições. E com ela queimem os nossos algozes, o concreto, as estátuas deles e os patrões. E que sobre espaço para varrer os escombros do lugar que será palco do novo mundo. Assim como minha boca é palco para insurreições, para os meus desejos, e as tuas vontades. Nestas noites de cidade suja banhada às máquina de carvão, sem você aqui, são nesses momentos que eu gostaria que meu corpo fosse um sismógrafo, para sentir o chão vibrar, pois sei que vibra. Com o som de mil patas de elefantes em guerra, como em Neuquén. Confesso que sei que vibra.


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Luno P.

Professor de Teatro e estudante de História da UFRGS
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