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SEMANÁRIO

Neoliberalismo: Uma Ameaça Nefasta às Universidades Públicas como Espaços de Democracia

Simão Costa Germano

Neoliberalismo: Uma Ameaça Nefasta às Universidades Públicas como Espaços de Democracia

Simão Costa Germano

A vertente neoliberal é uma fase especialmente cruel e mórbida do capitalismo, sendo também aquela que tragicamente se tornou dominante em âmbito global a partir da década de 1980. Essa política tem como uma de suas características a mercantilização irrestrita e ilimitada da totalidade da vida: recursos naturais, força de trabalho e todo e qualquer âmbito da cultura, do fazer e do criar humanos

OPINIÃO

É especialmente alarmante o fato de que a motivação para a aposta da burguesia brasileira na campanha de um indivíduo de calibre tão baixo quanto o atual ocupante da presidência da república em nosso país foi um projeto de implementação radical do amplamente questionado programa neoliberal. Trata-se de um programa cujos únicos resultados dos quais há evidência histórica são a usurpação extrema da riqueza socialmente produzida para as mãos de pouquíssimos, a mais escandalosa desigualdade, a exploração mais desnudada do trabalho humano e a devastação tanto das possibilidades de sociabilidade sadia quanto do meio ambiente.

Em seu insaciável e grotesco vampirismo, o capitalismo neoliberal se assenta ao menos em parte no convencimento ideológico dos trabalhadores de que a única apreensão possível do valor de seu trabalho, e até do valor de sua própria existência subjetiva, é através da quantificação de sua produtividade. Trata-se de uma ideologia insidiosa, reducionista e ilusória, através da qual conhecimentos e capacidades, talentos, relevância e impacto coletivo do trabalho humano são ocultados por trás de indicadores numéricos de produção. Esses números expressam na verdade tão somente a dinâmica, própria ao capital, de fetichização de tudo que é transformado em mercadoria, em um processo através do qual se tornam invisíveis o(a)s trabalhador(a)s como os reais sujeitos de toda a operosidade humana. A mistificação por esses números de produtividade tem o poder de conduzir à alienação do trabalho até mesmo de trabalhadores que ainda gozavam da sorte de escapar dos processos mais radicais de divisão e de mecanização da atividade laboral, o que historicamente caracterizou o nefasto avanço do capital como ordenador da sociabilidade humana. Este é o caso, por exemplo, da realidade de trabalho de muitos docentes do ensino superior brasileiro, inclusive nas instituições públicas de ensino superior.

Tal como salientado por Roberto Leher em um livro que analisa os ataques do governo de Jair Bolsonaro às universidades públicas brasileiras (Autoritarismo Contra as Universidades – O Desafio de Popularizar a Defesa da Educação Pública, Editora Expressão Popular e Fundação Rosa Luxemburgo, 2019), desde sua campanha eleitoralo atual presidente do Brasil escolheu as universidades públicas brasileira como inimigas. Para tal, em diversas oportunidades Bolsonaro se colocou como a voz que em primeira pessoa sugeriu que os campi universitários públicos brasileiros seriam uma espécie de quartel general do pensamento de esquerda no país.Os seguidores do presidente nessa guerra anti-universidade costumam apoiar-se na narrativa do combate a um fantasma do“marxismo cultural”, do qual as universidades públicas brasileiras seriam agentes promotores importantes, se não os principais.

A denominação “marxismo cultural” é tão somente um rótulo da extrema direita,sendo que ele absolutamente não se refere a qualquer conjunto de ideias ou proposta teórica dentro do marxismo. A circulação de tal rótulo tem suas origens nas perseguições a intelectuais vinculados ao Instituto de Pesquisa Social (a “Escola de Frankfurt”) pelos nazistas,na Alemanha da década de 1930. Desde então, esse rótuloressurge como bandeira da extrema direita no ocidente global para a nomeação de ideias democráticas às quais seus adeptos se opõem, como por exemplo a defesa do multiculturalismo e dos direitos de imigrantes na Europa. Na acepção do rótulo que no Brasil é colocada em circulação por apoiadores do bolsonarismo, o “marxismo cultural” que eles desejam fazer crer que floresce nas universidades públicas do país estaria manifesto em uma alegada promoção de ideias e comportamentos que atacam valores tidos como “tradicionais” da família brasileira. Porém, os “valores”para cuja defesa os bolsonaristas dizem se alvoroçarsão a expressão e a opressão derivadas de machismo, depatriarcalismo, demisoginia, deheteronormatividade e denegação da sexualidade e do desejo como características básicas do psiquismo humano.

É um fato inquestionável que as universidades públicas brasileiras se consolidaram como centros de estímulo à livre expressão de pluralidade, de pensamento crítico, do debate aberto de ideias, do desenvolvimento da racionalidade e da construção de conhecimento sobre bases evidenciais. E por essa vocação das universidades, não haveria razões para que elas deixassem de ser espaços onde se dá o florescimento de estudos em economia política, em teorias críticas, em análises sociológicas e antropológicas pautadas pela fortuna teórica, filosófica e da práxis de orientação marxista. Porém, qualquer declaração sugestiva de que nossas universidades públicas possam ser demarcadas como quartéis generais comunistas ou centros de formação de revolucionários, ou que os membros das comunidades dos campi universitários os transformem em “comunas”,é no mínimo fantasiosa, ou mais provável e corretamente uma falsidade produzida em má-fé.

Na verdade, ainda que sejam instituições públicas, as universidades federais e estaduais brasileiras não escapam em sua organização de aspectos que, ora mais, ora menos, se encaixam nos moldes de sociabilidade que carregam as assinaturas próprias da forma do sistema capitalista instalado no Brasil. Isto se torna evidente quando se leva em consideração as transformações na história recente das condições do trabalho docente, por exemplo. Aqui cabe ressaltar que tal história recente é marcadamente uma história de intensificação do trabalho do docente-pesquisador, que é o perfil de trabalhador prioritariamente buscado na composição dos quadros do professorado nas universidades públicas, há vários anos. Um livro informativo sobre tal tema é O Trabalho Intensificado nas Federais – Pós-Graduação e Produtivismo Acadêmico, de Valdemar Sguissardi e João dos Reis Silva Júnior (Navegando Publicações, 2018), livro este baseado em pesquisa embasada por dados sobre as trajetórias formativas do professorado nas universidades federais brasileiras, assim como sobre a natureza e o impacto de seu trabalho sobre a vida da(o)s professora(e)s.

O atual ocupante do cargo de Ministro da Educação do governo de Jair Bolsonaro, o Sr. Abraham Weintraub, teve mais de uma vez presença na mídia direitista brasileira para fazer alegações sobre uma suposta falta de ocupação do professorado as universidades públicas, apoiando-se em cálculos mentirosos para tentar construir a falácia de que esses servidores públicos seriam excepcionalmente bem remunerados, para ministrar poucas horas-aula. Contrariamente às declarações de Weintraub, contudo, o estudo relatado no livro de Sguissardi e Silva Júnior demonstra tanto o peso quanto o impacto subjetivo das exigências de produtividade científica na carreira docente. O estudo demonstra também o processo de intensificação dessas exigências nas últimas duas décadas, revelando, por exemplo, que somente no período entre os anos de 1998 e 2005 houve um aumento de 124% da produção intelectual (ou seja, comunicação de produção de conhecimento na forma de publicações e comunicações em eventos científicos) dos docentes das universidades federais brasileiras que atuavam em cursos de pós-graduação, contra um aumento de apenas 44% desse segmento de trabalhadores nelas empregados.

As posições assumidas pelo Ministro da Educação são ecos indefectíveis da ideologia neoliberal. É relevante notar que o Sr. Abraham Weintraub fez parte ele próprio do corpo docente de uma universidade federal brasileira. Lamentavelmente, porém, esse senhor não necessariamente se encontra sozinho em seu posicionamento de adesão à lógica que promove a fetichização e mercantilização do trabalho docente na universidade brasileira, em insidiosa tentativa de conversão do ensino superior às estruturas de exploração do nefasto credo neoliberal.

Os editores deste Esquerda Diário receberam denúncias de uma situação de clara e intencional exploração da força de trabalho em uma universidade federal de porte médio no estado de Minas Gerais. Em meados da década passada, essa universidade obteve a possibilidade de abrir concurso público para o preenchimento de duas vagas para ingresso na carreira docente, com vistas a atuação na área de ensino de línguas adicionais (ou línguas estrangeiras), em regime de dedicação exclusiva (são contratos que preveem jornadas de trabalho em regime de 40 horas semanais, distribuídas entre ensino de graduação e pós-graduação, pesquisa, extensão e posições na gestão universitária). Porém, na abertura do concurso público os gestores dessa universidade transformaram essas duas vagas em cinco vagas para contratos de trabalho em regime de 20 horas, um regime de trabalho para o qual a remuneração é expressivamente inferior aos salários para a atuação em dedicação exclusiva. O objetivo dessa manobra foi maximizar a carga horária em sala de aula dos concursados, inflando assim o número de alunos a serem atendidos pelos concursados.

Por trás dessa manobra de gestão está uma lógica de barateamento do trabalho executado por esses professores.Ou seja, nessa instituição optou-se por uma lógica claramente análoga aos estratagemas para o aumento da extração de mais-valor relativo do trabalhador dos quais comumente se valem as empresas de serviços educacionais capitalistas, que se orientam sistematicamente pelo aumento do número de alunos por docente (geralmente multiplicado quando entram em cena dispositivos de educação à distância, que costumam ser apresentados na publicidade como unicamente fruto da busca por inovação pedagógica). Trata-se, ainda, de uma lógica bastante estranha em relação a uma cultura de valorização da carreira de professor que ainda sobrevive nos campi de universidades públicas.

Porém, a estratégia de gestão relatada nas denúncias teve impactos além da não menos essencial questão salarial. Segundo os relatos aos quais tivemos acesso, tal manobra se desdobrou em impedimentos ou manobras com vistas à imposição de dificuldades de várias ordens para que os trabalhadores em educação contratados através desse concurso público “otimizado”tivessem pleno acesso às possibilidades de progressão e avanço na carreira docente, incluídas aí a impossibilidade de reconhecimento de trabalho voltado para a produção de novos conhecimentos. As denúncias indicam que essa cultura de gestão com clara tonalidade neoliberal permanece viva nesse campus universitário em particular, com a continuidade até o presente de dificuldades para que os docentes concursados no esquema acima relatado alterem seu regime de trabalho para atuação plena em ensino, pesquisa e extensão universitária na instituição, mesmo com suas qualificações e formação educacional sendo compatíveis com os requisitos normalmente exigidos para tal atuação.Um outro aspecto que aponta para uma cultura de gestão universitária fortemente alinhada a preceitos próprios da exploração capitalista é que no atual contexto da pandemia de covid-19, segundo os relatos, para justificar perante as chefias imediatas a validade de seu trabalho remoto e preservar-se no necessário distanciamento social, os professores da universidade em questão têm sido convocados a preencher relatórios onde precisam delimitar“metas de produtividade” semanais que atendam a indicadores quantitativos a partir dos quais sua realização é avaliada.Essas denúncias apontam para o que parece ser uma imitação pantomímica de práticas da gestão empresarial, transpostas de maneira forçosa ao contexto da educação em nível superior.

A guerra declarada ao ensino superior público pelo atual governo federal certamente não é desconhecida dos leitores deste Esquerda Diário. E provavelmente tampouco escapa aos leitores que essa guerra não encontra sua motivação última na mera afiliação dos dois indivíduos que até o presente ocuparam os cargos de Ministro da Educação no governo de Jair Bolsonaro às ideias obscurantistas propagadas pelo talvez astrólogo, mas certamente não filósofo, Olavo de Carvalho. Esse desbocado ideólogo da extrema direita brasileira, que sabidamente promove campanhas potencialmente criminosas em prol da ignorância e da anti-ciência, é um notório detrator das instituições universitárias. Porém, por trás dos ataques ideológicos encabeçados pelo próprio Sr. Abraham Weintraub, assim como por trás das inúmeras ações do atual governo que visam exclusivamente a precarização do ensino e a destruição da pesquisa nas instituições universitárias públicas,o que se encontra é sobretudo uma investida capitalista sobre o ensino superior mantido pelo estado brasileiro.

Nessa investida capitalista, busca-se a retirada do acesso à universidade como direito de todos os cidadãos e, decorrentemente, a sua transposição total à condição de mais uma mercadoria em circulação nos mercados. Busca-se também a submissão completa da produção de conhecimentos científicos, culturais e artísticos aos interesses do mercado e à lógica do lucro acumulado por pouquíssimos. Infelizmente, a investida capitalista sobre o ensino superior é um fenômeno do neoliberalismo em escala global, não uma peculiaridade brasileira. Tal fenômeno se verifica internacionalmente, pela diminuição do investimento do público e pela passagem à cobrança de mensalidades em sistemas de ensino superior que até o início do século XXI eram totalmente públicos e gratuitos.Este é o caso da Inglaterra, por exemplo, país onde universidades passaram a funcionar como empresas que disputam ferozmente matrículas tanto em âmbito nacional como em mercados emergentes, como os países asiáticos.

A cobrança de mensalidades pelo ensino superior é sobretudo uma medida que atende aos interesses do capital financeiro. Os capitalistas do setor bancário têm interesse na abertura de linhas de crédito para o fornecimento de empréstimos estudantis. Trata-se de um círculo ideologicamente ardiloso, onde se propaga em alto e claro tom a mítica do“capitalismo intelectual” a vigorar em um suposto “admirável mundo novo” da alta tecnologia, ao qual só é possível acender-se através da obtenção de titulação universitária, ao mesmo tempo em que se retira o ensino superior da esfera dos direitos de cidadania e do investimento público suficiente para mantê-lo acessível a todos e com alto nível de qualidade, transformando-o assim em mercadoria a ser comprada, para a qual leva mais quem paga mais. E lá estão os bancos e financeiras para o “auxílio”, através de linhas de crédito, para quem não consegue pagar. Essa realidade cruel está posta em vários países do mundo, e conduz a situações de endividamento extremo principalmente dos filhos e filhas da classe trabalhadora. Em países como os EUA, por exemplo, o crédito para a educação superior escraviza egressos da educação ao trabalho mais profundamente explorado e precário, na busca desesperada desses jovens para quitar suas dívidas.Não é difícil perceber que essa é uma política que ao fim apenas garante lucro aos capitalistas financeiros, na posição de fiadores de crédito educativo, assim como a manutenção de reserva de massas de ex-estudantes endividados, que dependerão da venda de sua força de trabalho como mercadoria pela qual os detentores dos meios de produção terão o poder para pleitear pagar acintosamente menos que o valor que para eles será produzido.

Nessa lógica de mercantilização da educação superior, há ainda relatos abundantes da transformação mundo afora de instituições de ensino outrora públicas e gratuitas em verdadeiros centros comerciais, em virtude da progressiva retirada do investimento público. Essas universidades-shopping competem por estudantes-clientes,com o desvio de recursos das atividades de ensino e produção de conhecimentos para a construção, por exemplo, de praças de alimentação e espaços de lazer de grife, cuja divulgação é priorizada nas peças publicitárias dessas universidades.Concomitantemente, vê-se na cena internacional a substituição em escala cada vez maior dos postos de trabalho de professores em dedicação exclusiva por professores horistas, mais baratos e submetidos a condições de trabalho inviabilizadoras da plena liberdade de cátedra e da produção de novos conhecimentos.Todos esses processos de transformação espúria das universidades, que o capitalismo vem instalando por todo o mundo já há alguns anos,costumam ser capitaneados por reitores e diretores cooptados a condições análogas a de“CEOs”ou de gestores empresariais de marketing, inclusive com recompensas financeiras estratosféricas e escandalosamente desproporcionais aos salários pagos aos trabalhadores que sustentam a verdadeira atividade fim de uma instituição de ensino, pesquisa e extensão de serviços acessíveis às comunidades em seu entorno.

As denúncias que chegaram ao Esquerda Diário, sobre as condições de trabalho em que foram colocados professores em uma universidade federal brasileira, em nosso entender devem ser entendidas como um alerta a todos que veem o ensino superior como um direito. Elas apontam para práticas que, ainda em menor escala, refletem no mínimo uma tendência à aceitação, internamente a uma instituição pública brasileira, de formas de organização do trabalho docente que se alinham perfeitamente à matriz ideológica capitalista e neoliberal, que promove a mercantilização da educação superior em todo mundo.

Esta possibilidade de mercantilização encontra-se posta, politicamente, no Brasil atual. Não nos esqueçamos de em julho de 2019 o Ministério da Educação de Weintraub apresentou à sociedade uma proposta de programa para o aumento de verba privada no orçamento das universidades federais denominado Future-se. O evento realizado para essa apresentação foi um chamado à matriz ideológica capitalista e neoliberal, tanto em seu conteúdo substantivo quanto em sua estética. Em um cenário com efeitos de iluminação que pareciam evocar os eventos de doutrinação que empresas de marketing multinível promovem para premiar seus “colaboradores”, as apresentações aludiram à proposta de abertura de concessão de na mingrights (espaços das universidades, como por exemplo bibliotecas, poderiam levar o nome de empresas como bancos e financeiras), aludindo também à promessa de que a profissão de professor universitário poderia ser o “melhor” emprego do Brasil, dada sua devida submissão ao todo-poderoso mercado.

Ao contrário das falácias retóricas com as quais o atual governo busca construir a imagem de que as universidades públicas brasileiras são espaços onde ideais socialistas dominam inabaláveis, as universidades são espaços de saudável debate de ideias e, exatamente por isso, espaços para o embate político. Mas devemos não nos esquecer que as instituições universitárias mantidas pelo estado brasileiro são autarquias de um estado autocrático: o estado brasileiro, que desde a sua fundação sob a égide republicana esteve a serviço da burguesia que controla o país.Assim,ainda que as universidades públicas brasileiras sejam instituições onde ainda são majoritárias práticas democráticas e, de um modo que se tornou cada vez mais sistemático e consistente até o golpe de 2016, o estímulo a iniciativas que visam a superação de desigualdades, elas são instituições do estado burguês brasileiro. Nossas universidades são inseparáveis das condições históricas de configuração do modo de produção capitalista em nosso solo nacional, tal como minuciosamente relatado e analisado em outro importante estudo sobre a educação superior no Brasil, o livro de Lalo Watanabe Minto (A Educação da Miséria – Particularidade Capitalista e Educação Superior no Brasil, Editora Outras Expressões, 2014).

Qualquer instituição submetida ao estado brasileiro se encontra sob riscos de perda de objetivos democráticos, em virtude de ser ainda a burguesia a classe com poder de ditar as direções do Brasil. Não podemos nos esquecer que durante o hiato de políticas de escancarado sucateamento das universidades entre os governos de FHC e os atuais governos golpistas, ou seja, durante os anos de governo do Partido dos Trabalhadores, o que se verificou não foi uma expansão do ensino superior público ao máximo do que se faria necessário para o atendimento pleno da população, mas sim investimentos que alavancaram a parcela das vagas do ensino superior ocupadas em instituições privadas, e a consequente concentração de lucros e de poder político nas mãos de capitalistas que mercantilizam a educação. Tal cenário nada tem de surpreendente em face à política implementada pelo PT na gestão federal, política esta lastimavelmente orientada pela “conciliação”de classes e pela “confiança” na aliança entre os interesses da burguesia nativa e as lutas da classe trabalhadora brasileira.

Não podemos nos esquecer tampouco que há muitíssimo a ser perdido se o ensino superior público brasileiro perder seus objetivos democráticos e se render à implacável lógica da mercantilização. Salvaguardados todos limites impostos por sua inseperabilidade das determinações históricas da produção da vida material do país que as criou, as universidades públicas brasileiras são, fora de qualquer dúvida razoável e honesta, as produtoras efetivas de avanços científicos e tecnológicos, de capacitação de pessoal para a compreensão para a intervenção perante os grandes problemas da realidade brasileira, da promoção da arte e da cultural e da preservação da memória de nosso legado artístico e cultural, e de nossa própria condição de nos situarmos e nos conectarmos com o mundo para além de nossas fronteiras geográficas. Tal como documentado recentemente emartigo publicado no Ideias de Esquerda, que recupera dados trazidos a público através de pesquisa da pesquisa coordenada pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior, tomadas como um todo as universidades federais brasileiras acolhem hoje 51% de alunos oriundos de famílias com renda bruta abaixo de três salários mínimos, sendo 78% do alunado dessas instituições vindos de famílias com rendas per capita de até dois salários mínimos. Portanto, essas são universidades que acolhem filhas e filhos dos trabalhadores brasileiros, sem condicioná-losao sombrio futuro de serem lançados ao mundo na condição de jovens devedores dos agiotas do mercado financeiro como “troféu”pela conclusão de seus estudos. E ainda como documentado no mesmo artigo do Ideias de Esquerda, frente a atual tragédia da pandemia de Covid-19 no Brasil, agravada pelos posicionamentos homicidas do presidente da república e dos capitalistas que o apoiam e são por ele representados, é claríssimo o protagonismo dessas mesmas universidades públicas, tão atacadas pelo referido governo e seu grupo, em medidas que vão ao encontro das necessidades sanitárias da população.

Ainda que haja nos campi universitários pessoas alinhadas ao pensamento progressista, e mesmo pessoas alinhadas à construção das condições para a revolução socialista, as universidades não deixam de ser espaços vulneráveis às estruturas de poder e aos aparelhos ideológicos que são opressores da classe trabalhadora.Elas são microcosmos representativos do nosso país e do nosso mundo, onde projetos que almejam a um futuro de vida possível e projetos de recrudescimento da plena barbárie capitalista encontram-se em disputa. É por estar colocada essa disputa que não deveriam causar qualquer estranhamento ou surpresa as crescentes tentativas do governo ultradireitista de Jair Bolsonaro de posicionamento de gestores biônicos em campi universitários. São ações em franca violação de resultados de consultas abertas às comunidades universitárias.São sobretudo a clara transmutação, para o microcosmos do país que são as universidades, da desavergonhada licenciosidade golpista e da sanha de antagonismo à vontade popular que orientaram a sucessão de eventos da história de nosso país que nos trouxe à realidade de um governo de Jair Bolsonaro.

O que está em disputa é nada menos do que a ampliação do papel de nossas universidades na resistência ao avanço da crise capitalista ou sua submissão, se não sua total e irremediável destruição, pelo jugo aos objetivos, à ideologia e aos modos de gestão mercantilista da educação ditados pelo neoliberalismo, seja por gestores biônicos, ou por decisões segmentos de seu corpo profissional cooptados a essas ideologias que alcançam posições com poder de decisão.Por serem autarquias de estado burguês, e por estarem tanto sob ataque capitalista e de ideologia neoliberal quanto estão as instituições universitárias de todo o mundo, faz-se urgente a cada vez mais qualificada e politizada organização dos trabalhadores e trabalhadoras das universidades, estejam eles na docência ou não.É ainda importantíssima a sintonia do movimento dos trabalhadores das universidades comas pautas dos estudantes que se alinham a ampliação da democratização dos campi e da quebra de estruturas organizacionais elitistas e não inclusivas.

Por fim, é de suma importância que as comunidades universitárias públicas brasileiras trabalhem para o aprofundamento do diálogo e da ética de solidariedade, tanto interinstitucional como com toda a classe trabalhadora, em níveis local, nacional e global. Pois é somente a organização classista e internacionalista que nos possibilitará fazer resistência efetiva às ameaças que o capitalismo em franca e notória decadência trazem ao futuro não só das artes, ciências e tecnologias. E é somente uma organização classista e internacionalista de todos os trabalhadores e trabalhadoras, em universidades ou em outras frente de trabalho, que nos possibilitará a superação definitiva da ameaça à própria sobrevivência humana e de outros ecossistemas do planeta aos patamares atrozes de sofrimento que a ordem capitalista hoje ainda nos impõe.


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