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Movimentos e burocracias: um debate com a esquerda sobre a luta das mulheres e negros

Diana Assunção

Letícia Parks

Ilustração: Juan Chirioca/@macacodosul

Movimentos e burocracias: um debate com a esquerda sobre a luta das mulheres e negros

Diana Assunção

Letícia Parks

Neste artigo vamos buscar desenvolver uma visão crítica sobre o desenvolvimento dos fenômenos da luta das mulheres e negros no Brasil após os últimos levantes internacionais para fazer um debate com as correntes que se reivindicam de esquerda e atuam nesses movimentos muitas vezes compondo suas direções com métodos burocráticos que terminam atuando como política auxiliar das burocracias sindicais em uma verdadeira divisão de tarefas onde o objetivo é a separação da luta das mulheres e negros com a luta da classe trabalhadora.

Nem o gênero nem a raça nos unem porque a classe nos separa

Antes de entrar no objeto propriamente dito desta breve elaboração é preciso delinear alguns pontos elementares de uma visão marxista na luta das mulheres e dos negros. Se por um lado atuamos em um movimento amplo de alcance internacional pelas demandas mais democráticas destes grupos sociais como a luta contra a violência e a igualdade nunca é demais reafirmar que se tratam de movimentos policlassistas, ou seja, que são integrados por mulheres e negros de distintas classes sociais. A diferença de classes sociais dentro destes movimentos não é um limite em si mesmo para atuação neles mas é, como mínimo, um apontamento claro dos seus limites e da possibilidade de que seja facilmente cooptado por governos ou frações da classe dominante. A frase feminista muito conhecida de que “o gênero nos une, mas a classe nos divide” na realidade em si mesmo não apresenta uma situação concreta do ponto de vista objetivo: o gênero não une mulheres trabalhadoras com as empresárias, apesar de terem uma mesma identidade de gênero isso não chega ao ponto de “unificação” porque a separação e a fronteira de classe é mais forte. Podem compartilhar, em determinados momentos, bandeiras como a luta contra a violência mas mesmo isso já é frágil o suficiente para apontar qualquer tipo de unificação. Basta ver que no Brasil de Bolsonaro a bandeira contra a violência às mulheres tem sido levantada pela reacionária Ministra Damares Alves.

Por tudo isso, a partir de uma perspectiva marxista, definimos que vivemos sob um modo de produção que é o capitalismo e em uma sociedade dividida em classes sociais. Esse modo de produção capitalista e essa divisão em classes sociais só existe através da exploração que é a dominação de uma pequena classe (a classe dominante) sobre outra classe se apropriando do seu trabalho excedente através da mais valia simplesmente por esta classe dominante deter os meios de produção. Ou seja, o mundo funciona hoje através da exploração ou a chamada "escravidão assalariada" que significa que a grande maioria das pessoas necessita vender sua força de trabalho para subsistir. A opressão que é a utilização das diferenças de gênero, sexuais, raciais, de nacionalidade para subordinar um grupo social é utilizada para explorar ainda mais esses setores sociais subordinados. Por isso sempre ressaltamos que a opressão de gênero é anterior ao capitalismo, mas adquiriu novos contornos sob esse sistema de exploração. E a opressão racial surge com o capitalismo para potencializar as ferramentas da exploração. É por isso que as mulheres e negros não são uma classe social mas sim um grupo policlassista, que atravessa todas as classes sociais e por isso os movimentos e fenômenos em torno da temática feminista ou anti-racista também são policlassistas. Essas definições são importantes porque delineiam como os marxistas revolucionários atuam nestes movimentos: levantando em unidade todas as bandeiras democráticas comuns mas sempre com um ângulo de enfrentamento ao estado capitalista e buscando ser uma ala do movimento que defende uma estratégia proletária revolucionária para a luta das mulheres e dos negros.

Primavera feminista, justiça por George Floyd e os novos movimentos

A luta pelos direitos dos setores oprimidos no Brasil passou a ter mais força depois das jornadas de junho de 2013, onde neste quesito explodiu com força a luta por justiça à Amarildo. Sobre este importante episódio da luta de massas nacional opinamos, ao contrário do PT, que as jornadas foram progressistas em defesa dos direitos da população e não o “começo do fascismo” como fala o PT já que eram manifestações que questionavam seu próprio governo. Mas sobre os temas democráticos já era notável uma mudança nos “valores” e “comportamentos”, que era reflexo justamente da ofensiva neoliberal que, enquanto atacava as massas trabalhadoras, incorporava algumas demandas parciais das mulheres, dos negros e das LGBTs. Isso resultou em mudanças na ação de empresas, e na própria mídia, já que comportamentos abertamente machistas, racistas e LGBTfóbicos passaram a ser condenados por parte da opinião pública, mas também porque os setores oprimidos passaram a ser encarados como uma espécie de “nicho de mercado”.

A primavera feminista no Brasil combinou vários momentos: repúdio às declarações machistas e homofóbicas de políticos de direita, como Marco Feliciano do projeto da “Cura Gay”, que era base do governo do PT, em 2013; o rechaço a um dos Congressos mais reacionários do último período, eleito em 2014, com um fortalecimento da bancada da bíblia, da bala e do boi; protagonismo das meninas nas ocupações de escolas em 2015; enorme repúdio aos números alarmantes de assassinatos de mulheres e de violência de gênero, com um grande destaque ao estupro coletivo ocorrido no Rio de Janeiro em 2016; a reação a leis reacionárias impulsionadas em especial por Eduardo Cunha, para restringir ainda mais o direito ao aborto em 2016; a participação nas manifestações da Paralisação Internacional das Mulheres no 8 de março de 2017 e 2018; e o amplo movimento #EleNão em 2018 contra Bolsonaro e mais recentemente as manifestações por justiça por Mari Ferrer em 2020.

Com exceção do movimento #EleNão, nenhum deles foi de fato massivo nas ruas, mas a extensão do fenômeno que já existia no Brasil, a busca por parte da mídia e de algumas empresas por cooptar este fenômeno, inclusive como nicho de mercado, e os movimentos mais massivos a nível internacional, abriram espaço para que mesmo ações de vanguarda, com algumas dezenas de milhares tivessem uma repercussão grande.

Nós do Pão e Rosas atuamos em cada um destes processos. Participamos do rechaço aos políticos da direita como Marco Feliciano e Eduardo Cunha, mas também denunciando que eram base do governo do PT, e que a busca por uma suposta “governabilidade” abria espaço para a direita. Fomos parte das manifestações contra toda forma de violência no país, da luta secundarista, da Paralisação Internacional de Mulheres e do movimento #EleNão. Encabeçamos com muita força a batalha para trazer a maré verde da Argentina para o Brasil, na luta pelo direito ao aborto legal, seguro e gratuito. Em cada um destes processos, nossa batalha foi a mesma: massificar o movimento de mulheres, e lutar para que as mulheres trabalhadoras estivessem na linha de frente, ao mesmo tempo em que não diluímos nossas bandeiras, e não aceitamos que nossos direitos fossem entregues como moeda de troca.

Por isso, além de levantar cada demanda mais elementar na luta das mulheres, buscamos sempre colocar com força a necessidade do movimento de mulheres se aliar à classe trabalhadora, e se posicionar contra o autoritarismo judiciário e o golpe institucional que ocorreu no país em 2016. Ao mesmo tempo, batalhamos nos sindicatos e locais de trabalho em que estamos, para que os sindicatos levantassem as demandas das mulheres, com um programa que desse uma resposta para a opressão e a exploração que sofrem as mulheres trabalhadoras, como a luta pela efetivação de todas as terceirizadas sem necessidade de concurso público, e pela igualdade salarial entre negras e brancas, entre homens e mulheres. Batalhamos também por respostas mais profundas, como a exigência de creches para toda a demanda, lavanderias e restaurantes em todos os locais de trabalho financiados pelas empresas, e também em locais de estudo e nos bairros oferecidos como serviços públicos, para enfrentar a naturalização de um trabalho doméstico invisível e não remunerado que cai sobre as costas das mulheres. Para nós, essa batalha sempre esteve ligada à luta pela auto-organização dos trabalhadores, com as mulheres à frente, para recuperar as organizações de massas e combinar a luta contra a opressão com a luta contra os ataques dos governos.

No curso desse processo de protagonismo da luta das mulheres, a luta negra foi paralelamente também traçando um curso de permanente mobilização, levando a que chegado o ano da pandemia e com o acúmulo de mais de uma década de ataques advindos da crise econômica, as massas negras nos EUA e em todo o mundo encarassem o assassinato de George Floyd como uma gota d’água. No mesmo mês em que ele é assassinado por Derek Chauvin a jovem Breonna Taylor também é assassinada pela polícia enquanto estava dormindo. As duas mortes levam ao maior levante de massas da história recente dos EUA, colocando negros, brancos e latinos nas ruas unificados na luta por justiça. O processo de mobilização é acompanhado por mais de 500 greves, paralisações ou ações proletárias, dentre algumas que exigiam a expulsão dos policiais dos seus sindicatos, colocando toda a esquerda estadunidense sob a exigência de se separar dos policiais e reconhecer o que ficou claro para toda a vanguarda dos processos: policiais não são trabalhadores.

Esse processo impacta no Brasil contribuindo a que frente à violência racista da polícia e frente aos efeitos visíveis do racismo somado à pandemia, setores de vanguarda tenham ocupado as ruas mesmo sob a enorme pressão do #ficaemcasa, isto é, uma política deliberada de governos e de grandes burocracias, para se utilziar do receio da pandemia para evitar manifestações, mesmo com a esmagadora maioria da classe trabalhadora seguindo sua jornada de trabalho todos os dias. As primeiras manifestações ocorreram em apoio à luta nos EUA em todas as principais capitais brasileiras em maio de 2020. Posteriormente, em junho, motoriza a ocupação das ruas dessa vez pelos entregadores e trabalhadores de aplicativos, que de várias formas denunciavam também o racismo como argumento por trás da ausência completa de direitos trabalhistas e os salários miseráveis pagos por essas grandes multinacionais. O impacto da luta por justiça se mostra também na forma como se respondeu rapidamente com atos os casos de chacinas emortes pela polícia, como foi recentemente com as marchas por justiça por Jacarezinho.

Estes são os movimentos que tiveram protagonismo de mulheres e negros nos últimos 5 anos e é em base a estas experiências que queremos abordar algumas questões cruciais para a nossa luta.

Falsos aliados e separação das lutas

Em todos estes momentos, buscamos alertar sobre o perigo de aceitar a separação entre o movimento de mulheres e o movimento operário. Esse perigo vai percorrer todo este processo, pois a separação entre as demandas democráticas das mulheres, dos negros e das LGBTs, e as demandas políticas e econômicas, ou seja, a luta contra os ataques econômicos e contra a retirada de direitos que dizem respeito ao conjunto da população pobre e da classe trabalhadora, só podem enfraquecer a nossa luta. Por exemplo, não era possível enfrentar verdadeiramente Eduardo Cunha sem vincular a luta das mulheres ao enfrentamento ao golpe institucional – mas naquele momento, figuras do próprio movimento feminista levantavam a bandeira “Viva a Lava Jato”, como figuras do MES-PSOL, apoiando desta forma um dos pilares do golpe institucional.

Em alguns momentos, vimos o STF ser considerado (também por parte de um setor do movimento feminista) um aliado das mulheres, por exemplo, quando tomou posições progressistas em relação ao tema do aborto, ao mesmo tempo em que votava pelo corte de salário nas greves do funcionalismo público. O próprio movimento #EleNão, era tão amplo que abarcava mulheres como Kátia Abreu, uma representação das oligarquias latifundiárias no Brasil, a ecocapitalista Marina Silva, patrocinada pelo Banco Itaú, e até mesmo a escravagista Ana Amélia, que de distintas maneiras buscavam se apropriar do impulso de luta das mulheres para seus próprios interesses capitalistas, sendo bem recebidas por setores do movimento, deixando evidente a necessidade imperiosa de se ter uma delimitação de classe em nossa luta. Agora vivemos um momento em que muitos setores buscam canalizar o ódio no grito de Fora Bolsonaro em uma política por dentro do regime do golpe institucional que seria o impeachment, levando na prática um general ao poder.

Ao mesmo tempo o impacto do movimento internacional de mulheres no Brasil, e esses processos que compõem a primavera feminista, trouxeram muitas ideologias, várias delas pós-modernas, sobre o direito das mulheres, mas pouco debate de estratégias. Na realidade, se incentivava uma luta pelos direitos das “mulheres em geral”, que aos poucos foi levando a que se priorizasse duas agendas de reivindicações: a luta por mais espaço no parlamento, e a luta por justiça e mais policiamento contra a violência de gênero. O problema é que estas são duas demandas que não somente se restringem aos limites das instituições, como depositam enorme confiança no Estado, que é capitalista acabando, inclusive, por fortalecer justamente os responsáveis pelo massacre do povo negro e trabalhador – voltaremos a analisar esta questão em seguida. Vale dizer, por exemplo, que uma das principais agendas da reacionária Ministra Damares Alves é “contra a violência as mulheres”. Por isso, devemos analisar que o desenvolvimento da primavera feminista no Brasil veio praticamente paralelo ao desenvolvimento do golpe institucional e do início do bonapartismo judiciário. Lutas que por muitas vezes ficaram separadas, justamente porque não se enxergava como parte de uma só luta, ou, melhor dizendo, porque as direções dos movimentos preferiam que estivessem separadas.

Tudo isso abriu espaço a novos movimentos que expressavam alguns limites como não haver uma massificação desde as bases das estruturas produtivas (nas fábricas, escolas, universidades), as mulheres trabalhadoras ainda não serem linha de frente, e a manutenção dessa separação entre a luta pelos direitos das mulheres e a luta política contra todos os ataques. Tudo isso contribuiu para que o movimento ficasse muito mais no âmbito cultural, de valores e comportamento, sem alterar a correlação de forças no país – o que exigiria o necessário caminho da luta de classes. Acreditamos que estes erros permanecem permeando os movimentos de mulheres e negros.

Fenômeno de massas, movimento de poucos?

Se analisarmos esse levante internacional, que por alguns setores já é definido como uma “terceira onda” do feminismo, vemos que ainda que o alcance seja de massas tanto pela ruptura de valores anteriores quanto pela cooptação dos grandes meios de comunicação que usam a questão negra e a questão de gênero como parte de sua própria agenda, ainda que esses dois elementos imponham uma massividade vemos cada vez mais o movimento ser menos militante e com marchas menores, com exceções mais pontuais. Por um lado, a pandemia teve um impacto para impedir as mobilizações, ainda que o levante por George Floyd mostrou que isso não era um impeditivo. Mas o que realmente opera para que os movimentos não se desenvolvam e se massifiquem é a política das suas direções.

Em recente artigo Andrea D’Atri fundadora do grupo de mulheres Pan y Rosas na Argentina se perguntava “onde estão as feministas” e constata que as mulheres do Pão e Rosas estão onde sempre estiveram: nas lutas em cada local de trabalho e estudo, mas como não há somente um feminismo é preciso dizer que muitas das referentes que se fizeram mais populares nas lutas recentes do movimento de mulheres na Argentina, hoje são funcionárias do governo. Em suas palavras “O triunfo da luta de centenas de milhares de mulheres anônimas, durante mais de uma década, as impulsionou a ocupar secretarias e ministérios onde se planificam agendas de gênero, capacitações de gênero, enfoques transversais de gênero, mas tudo isso se subordina à política de ajuste que impõe o FMI e seus credores. Enquanto se negociam prazos para os pagamentos, não se questiona a dívida ilegítima e fraudulenta que leva milhões de dólares da nossa saúde, da nossa aposentadoria, dos nossos subsídios contra a miséria, do orçamento para prevenir e acabar com a violência de gênero, da nossa educação. Esse feminismo de homenagens, símbolos e gestos, mesmo quando tem boas intenções e não se trate de puro cinismo, é impotente para atender os problemas profundos preparatórios das rebeliões de amanhã, que já começam a se manifestar em outros países do continente”.

No Brasil neste momento não há funcionárias feministas no governo, já que a extrema-direita também foi uma reação ao levante de mulheres aqui como expressamos em nossas elaborações. Mesmo assim, a Ministra Damares Alves busca pegar o nicho das “mulheres e meninas” colocando ênfase na luta contra a violência de forma cínica para fortalecer os aspectos mais conservadores e reacionários da “família tradicional brasileira”. Mas nos governos do PT haviam muitas mulheres que reivindicavam o feminismo (reformista no caso) e o que fizeram? Lembremos do emblemático “recuo tático” (que na verdade foi a entrega de uma bandeira) quando Dilma escreveu uma carta ao povo de Deus tranquilizando toda a bancada evangélica de que em seu governo não haveria legalização do aborto. Foram muitas feministas de plantão, especialmente da Marcha Mundial de Mulheres ligada ao PT, prontas para explicar que isso era somente um “recuo tático” para garantir governabilidade. Mas foi a bancada evangélica, junto com o agronegócio e o judiciário também fortalecidos pelos governos petistas, quem protagonizaram o impeachment de Dilma Rousseff levando adiante um golpe institucional para fazer ataques ainda mais profundos do que o PT vinha fazendo e daí chegamos no governo Bolsonaro. Onde estão as feministas no Brasil hoje? Muitas que reivindicam o reformismo estão sendo parte de uma política institucional de acordos com a direita e golpistas para conquistar, novamente, a tal governabilidade que também irá rifar nossos direitos. Qualquer semelhança com a história recente não é mera coincidência mas sim parte de uma mesma política.

Essa política institucional é também a responsável pelo “esvaziamento das ruas”. Assim como na Argentina a pauta por “mais mulheres no poder” passou a ser uma agenda em si mesma, para que posteriormente tais mulheres no poder atuassem como contenção das mobilizações ao mesmo tempo que negociavam nossos direitos, como foi o caso do direito ao aborto. Recentemente vimos também a Deputada Tábata Amaral que se denomina como feminista e votou a favor da reforma da previdência. Mas a questão é que o PT que historicamente esteve à frente das direções burocráticas nos sindicatos, como trataremos em seguida, também atua com seu peso nas direções dos movimentos pela via da Marcha Mundial de Mulheres e também pela via de organizações de negros e negras. Entretanto, quais são as direções dos movimentos? Diferente dos sindicatos elas não são eleitas em nenhum lugar, mas existem. Não podem ser definidas com o conceito clássico de “burocracia” porque não adquirem necessariamente privilégios materiais, mas sim exercem seus métodos burocráticos. Isso porque existem de forma difusa combinando justamente o peso desses partidos, suas direções nas entidades estudantis e nos sindicatos e cada vez mais o peso de parlamentares de esquerda como as parlamentares do PSOL. Essas direções não atuam para massificar o movimento e conectar as demandas das mulheres e negros com as lutas políticas em curso no país. Mas atuam como direções que contribuem para dividir e conter as mobilizações, para que sejam apenas de “pressão” enquanto fazem política institucional no parlamento. Terminam tendo, portanto, um papel auxiliar ao das burocracias sindicais em uma verdadeira divisão de tarefas que separa a luta das mulheres e negros da luta da classe trabalhadora.

O Estado integral e as burocracias no movimento operário

É muito importante entender que ao dividir os movimentos e controlar o rumo das nossas lutas sempre a um destino exclusivamente parlamentar, as burocracias do movimento sindical e social cumprem um papel de manutenção da sociedade capitalista. A grande maioria das organizações que encabeçam essa política são abertamente reformistas, outras poderiam se enquadrar no “neoreformismo”, mas de fundo tem uma política de integração ao estado. Isso também porque ao serem os sindicatos ferramentas da luta da classe trabalhadora contra a exploração capitalista, a possibilidade de que através dessa organização da classe essa se radicalize e coloque o sistema em questionamento, o próprio Estado capitalista busca se infiltrar nessas organizações e controlar com seus próprios representantes.

Isso ocorre por uma fragilidade do próprio Estado capitalista. No desenvolvimento do capitalismo, fica latente sua característica cíclica, como um sistema que de tempos em tempos vive uma nova crise. A base da ilusão de legitimidade desse sistema - a própria ideia de que o capitalismo funciona - torna-se, portanto, profundamente frágil, pois com a economia em decadência, é difícil que as próprias ideias, instituições e ideologia sigam intactas, já que tudo se apoia nas bases materiais de reprodução do capitalismo.

Nesse marco é que revolucionário italiano Gramsci, durante seu período de prisão elaborou os Cadernos do Cárcere, desenvolvendo o conceito do estado integral ou estado ampliado, para mostrar que frente à possibilidade de crises, a antecipação que faz a burguesia como classe é buscar ampliar o consenso para além das instituições tradicionais do capitalismo, produzindo organizações aparentemente alheias ao Estado - como as ONGs - para lidar com as mazelas sociais de forma paliativa e intervindo dentro de nossas próprias organizações com representantes da sua ideologia. Esses representantes são a burocracia sindical e as direções burocráticas dos movimentos sociais, que são verdadeiras polícias políticas contra o movimento operário, de mulheres, LGBTQI+ e negro.

A ampliação do Estado tem como perspectiva ampliar a política de hegemonia da burguesia sobre todos os problemas sociais, o que significa dizer que frente aos distintos problemas da sociedade capitalista, a burguesia vai buscando encontrar formas de se mostrar a melhor classe para lidar com essas contradições, seja através de seus mecanismos de Estado, como os parlamentos, as instituições estatais, seja através das burocracias que dentro dos sindicatos e movimentos sociais atuam para remeter também os problemas sociais a soluções burguesas, como conduzir a luta contra as chacinas a reformas da polícia, reforçando as ilusões nas forças policiais. Seria possível destacar outros exemplos, como a tentativa de recuperar a confiança na justiça mesmo depois do golpe institucional e da lava jato e mesmo sendo essa justiça a responsável mais de 30% da população carcerária presa sem julgamento, uma imensa maioria deles negras e negros. Como uma imagem emblemática relembramos a reunião da Coalizão Negra por Direitos com o golpista Davi Alcolumbre. Este é o tipo de atuação que essas direções burocráticas querem canalizar a luta dos negros e das mulheres.

Direções burocráticas nos movimentos: quando e onde?

Como dissemos, dentro dos movimentos sociais as direções burocráticas tem uma composição difusa, já que não são direções votadas por processos eleitorais ou algo parecido com o que ocorre nos movimentos sindicais. Também por isso não ocupam diretamente cargos e não têm necessariamente privilégios materiais, portanto aqui não se trata de “burocracia” nos termos clássicos. Mas justamente sustentam um dos aspectos fundamentais das burocracias que são seus métodos burocráticos que impedem o desenvolvimento da organização de mulheres e negros. Dessa forma difusa terminam por assumir uma posição de direção em geral figuras da intelectualidade, artistas ou parlamentares ligados aos partidos que atuam com mais força em determinados setores dos movimentos sociais, como o PT mas também o PSOL. Os aparatos dos sindicatos e partidos são utilizados para isso: quem tem o maior carro de som controla quem fala nas marchas unitárias. Esses líderes ao reproduzir os mesmos métodos da burocracia sindical terminam por controlar os rumos das mobilizações, através da ausência de assembleias de base e mecanismos que deem controle dos processos de luta às bases dos movimentos. A ausência completa de uma crítica a divisão imposta entre luta sindical e movimentos sociais é um papel também de contenção que fica entregue a mão desses líderes, que se submetem placidamente à vontade das burocracias sindicais, cumprindo no movimento negro, de mulheres e LGBTQI+ o papel de manter em separado lutas que falam dos mesmos sujeitos, afinal, as maiores vítimas da opressão são as mulheres, negras, negros e LGBTQI+ da classe trabalhadora.

Hoje parte importante dessas lideranças é ocupada por parlamentares que se destacaram justamente através do avanço do movimento de mulheres e da luta negra, e um dos principais erros é acreditar que podem substituir a força organizada das mulheres, negras, negros e LGBTQI+. Pelo contrário. O papel de um parlamentar que se que se proponha a tarefa de ser revolucionário deveria ser se colocar como uma voz a serviço de potencializar as lutas, de organizar as forças da nossa classe através de assembleias de base, de dar um combate contra os métodos burocráticos que nos afastam de controlar os rumos das nossas lutas, e obviamente, de garantir que a política esteja direcionada não a preservação de seus cargos, mas nas necessidades mais profundas e massivas da nossa classe. Os parlamentares do PSOL, boa parte deles referências para setores amplos que lutam contra a opressão, não cumprem nenhum desses papéis. O cargo parlamentar para eles não têm qualquer função de apresentar um combate antiburocrático contra as direções dos grandes sindicatos, que mantém nossas lutas separadas, tampouco utilizam sua localização para fortalecer o que pode haver de mais radical e massivo das nossas bandeiras. Importante citar também os numerosos momentos em que outros diversos parlamentares do PSOL estiveram em suas cadeiras calados enquanto as centrais sindicais mantinham sua trégua com o governo Bolsonaro, tampouco lançaram qualquer crítica ao fato de que frente a Jacarezinho não houve nenhuma convocação forte de luta por justiça pelas centrais sindicais. Não querem se dar esse papel e acabam junto com essas burocracias sindicais reproduzindo esses métodos burocráticos sendo parte das direções “difusas” dos movimentos.

A potência da unidade da classe e sua hegemonia

A existência das burocracias sindicais como polícia da burguesia no movimento operário e o papel auxiliar das direções burocráticas dos movimentos faz com que o combate contra a burguesia tenha uma espécie de “trincheira” em nossas organizações. O exemplo do papel que cumpriu a APEOESP, sindicato dos professores estaduais de São Paulo durante a paralisação internacional de mulheres em 2018 foi emblemática: impediram a unificação dos professores e professoras com os fortes atos de mulheres, e para isso contaram com a ajuda da Marcha Mundial de Mulheres uma das “direções” do movimento de mulheres. Por isso não há qualquer combate a ser dado a serviço de responder os dramas da nossa classe que não passe por lutar por fortalecer alas antiburocráticas dentro de cada local de trabalho e na base de cada movimento social. Uma das tarefas antiburocráticas mais importantes é justamente a luta por unificar as bandeiras de luta contra o racismo e o patriarcado às bandeiras de luta da classe trabalhadora, já que não existe opressão sem exploração, nem o contrário. O casamento bem sucedido entre patriarcado e capitalismo e a invenção da raça para encher os cofres da burguesia devem fazer de cada um de nós combatentes decididos para derrubar o patriarcado, o racismo, e junto deles esse sistema miserável que é o sistema capitalista, e por isso, não podemos aceitar nenhum discurso de divisão ou separação entre nossas lutas. Apesar de parecer acidental, quando aceitam que nos movimentos sociais teremos nossas datas de luta ignoradas pelas burocracias sindicais, as burocracias dos movimentos sociais cumprem um papel enorme de estabilização do sistema capitalista, mantendo esse gigante que é a classe operária separado de si mesmo, já que é impossível falar de classe trabalhadora sem pensar que é uma maioria feminina e também uma maioria negra.

Nesse sentido, enquanto a burguesia luta pela sua hegemonia sobre todos os problemas sociais, respondendo fome com meritocracia, morte com representatividade burguesa, racismo com alguns no topo e a grande maioria precarizada, pandemia com meio milhão de mortos e vacina como fonte de lucro, nós como revolucionárias lutamos por outra hegemonia, a da classe trabalhadora sobre todos os problemas sociais. Contra o racismo e o patriarcado, lutamos por igualdade salarial entre negros e brancos, homens e mulheres; enfrentamos precarização e miséria exigindo todos os direitos e salários dignos para entregadores e domésticas, exigimos a efetivação das terceirizadas sem concurso público em cada universidade, repartição pública, e sem processo seletivo nas empresas privadas. E respondemos a pandemia sabendo que a força para enfrentar essa miséria capitalista é só das mãos de uma classe que mantém o mundo de pé, por isso, lutamos por vacina para todos com a quebra das patentes e com produção sob controle operário, um SUS 100% estatal sob controle da classe trabalhadora.

Por uma estratégia socialista e revolucionária na luta das mulheres e negros

Essas breves considerações sobre o desenvolvimento do movimento de mulheres e negros no Brasil tem como objetivo fazer uma reflexão sobre os caminhos da nossa luta. Até quando atuaremos de ato em ato que termina e não tem continuidade? Até quando as demandas das mulheres e negros serão contidas como “lutas específicas” e impedidas de potencializarem a luta de classes política? A resposta para essas perguntas está na necessária discussão sobre a estratégia com a qual atuamos nos movimentos democráticos em curso. Como sabemos o movimento de mulheres e negros é policlassista e reúne uma infinidade de correntes e ideologias. Nós do Pão e Rosas somos uma organização composta por militantes do MRT e independentes que defende uma estratégia proletária para a luta das mulheres e negros, ou seja, atuamos em todos os movimentos mas como uma ala revolucionária que luta para unificar a nossa classe, que em sua maioria é feminina e negra, na defesa das bandeiras das mulheres e negros mas não para conter essas demandas e disciplinar os setores oprimidos mas para potencializá-los como linha de frente da luta política contra os governos e este estados capitalista. Nos movimentos defendemos a mais ampla democracia: que sejam organizadas assembleias com voz para desenvolver e massificar os movimentos inclusive avançando para coordenações com delegados eleitos nas bases das estruturas operárias, estudantis e por bairros. Não concordamos com as “direções auto-definidas” de parlamentares, sindicatos burocráticos e partidos políticos como o PT. É preciso que a força das mulheres e negros não seja contida pelas burocracias que dividem a nossa luta. Mais do que isso, a força das mulheres e negros precisa ver na classe operária o principal aliado para a luta contra as opressões, porque é a classe revolucionária da nossa época que tem o poder de paralisar a produção, os transportes e os serviços para colocar em cheque os lucros capitalistas. Para este desafio não basta ser feminista e nem é suficiente os movimentos. Para enfrentar o estado capitalista a nossa classe e todos os setores oprimidos precisam de uma ferramenta política, organizada que possa unificar o melhor da vanguarda operária e estudantil com o objetivo de lutar por uma revolução operária e socialista. Esta ferramenta é um partido revolucionário internacionalista, e é por esta perspectiva que lutamos.


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Diana Assunção

São Paulo | @dianaassuncaoED

Letícia Parks

do Quilombo Vermelho
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