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Morto no mercado: sobre alimentos, racismo, propriedade privada e miséria capitalista

Letícia Parks

Morto no mercado: sobre alimentos, racismo, propriedade privada e miséria capitalista

Letícia Parks

João Alberto teve uma discussão com a trabalhadora do supermercado. O que poderia ser a diferença de opinião sobre alguns centavos, valeu uma vida. O racismo fez com que o espancamento e o sufocamento fossem invocados contra um corpo que um policial está convencido de que não vale nada; a propriedade privada faz do supermercado, essa caixa brilhosa, enfeitada com embalagens coloridas e perfumadas, um dos maiores símbolos da barbárie capitalista, palco de violências auditas e inauditas.

Certa vez conheci um professor de Antropologia chamado Sérgio Krahô. Ele lotava salas de aula mesmo aos sábados de manhã, e num desses sábados contou uma história que nunca consegui esquecer.

Ele vinha com alguns membros da etnia Krahô pra cidade, estavam dispostos a passar um tempo conhecendo a vida do meu professor. Dada a quantidade de tempo que não vinha a sua casa, foi necessário que antes de ir pro apartamento do Sérgio, todos fossem juntos ao supermercado. No estacionamento, um dos líderes Krahô observava tudo e viu uma pessoa pedindo comida para uma família. A família negou enquanto colocava sacolas de comida dentro do porta malas. Entraram no mercado, e tudo seguia sendo atentamente observado. Terminada a compra, já no estacionamento, Sérgio nos relatou que foi deixado só enquanto os Krahô se reuniam. Tomaram uma decisão: voltariam imediatamente a sua comunidade porque sentiam suas vidas ameaçadas por essa sociedade que mantém afastados dos alimentos as pessoas que mais precisam. Não confiavam em ninguém que aceita essa situação e se consideravam em forte perigo porque não tinham aquele papel necessário para retirar a comida daquele lugar.

Isso se chama estranhamento. Estranhar é a capacidade que temos de nos chocar com a forma como a sociedade alheia funciona porque não somos dali, não entendemos as regras ocultas que ordenam essa realidade, o que nos torna capazes de desnaturalizar o que para alguém que vive ali dentro pode estar naturalizado. Estranhar é um processo natural com o outro, mas com Sérgio e com Lucia Morales, dois mestres que tive na Antropologia, aprendi a praticar esse exercício olhando pra nós mesmo. Me perguntei muitas vezes estimulada por eles: o que mantém essas estruturas de pé? Porque não há saques permanentes em supermercados já que há tanta fome? Quando conheci o marxismo, as regras "ocultas" da sociedade se revelaram uma a uma, e abaixo de cada véu da ideologia pude perceber as violentas leis que coordenam nossa realidade. Falemos sobre elas e os supermercados.

O véu do mérito que possibilita o consumo

É um tanto absurda a lógica do mérito. Se diz que ao se esforçar, trabalhar que nem um condenado e sendo um bom competidor, é possível "vencer" no capitalismo. Para os vitoriosos há um mundo de promessas gloriosas: comandar, mandar, dirigir, ter poder. Mas a verdade é que existem alguns poderes que são restritos demais até para serem parte dessas promessas. A "vitória" que é prometida pra grande massa, fruto de enorme esforço, é poder entrar num supermercado e fazer uma compra sem ter que somar tudo na calculadora. Não viver com o dinheiro contado é o sonho dos bilhões que no mundo todo compõem a classe trabalhadora. A realidade desses bilhões é que contam cada centavo das compras do mês, desistem de um churrasco porque o arroz estava muito caro, fazem apenas uma festa de aniversário para os três filhos, levam vários folhetos de mercados diferentes naquele que se comprometeu em "cobrir qualquer oferta".

A realidade de uma trabalhadora e de um trabalhador num supermercado é a humilhação. Passa no cartão de crédito as compras do mês parceladas. E mês que vem?

Testa o VA sem saber quanto tem disponível de saldo. Saldo indisponível. Tenta de novo. Saldo indisponível. Tenta de novo, tira a carne. Saldo indisponível. Tenta de novo, tira o refri. E assim vai, até caber no VA cada vez mais magro da empresa, em dúvida se valeu a pena ter saído todos os dias pra trabalhar. Caminha de volta pra casa triste, desolado, cheio de amargura na voz envia um áudio pro amigo: o churras não vai rolar, tava tudo muito caro. O sentimento de humilhação vai ser maior no mês que vem. O preço aumenta mas o salário só diminui. Discute com a moça do caixa porque o preço da prateleira é diferente do preço do código de barras. E agora. Para a fila pra conferir, vem o funcionário de patins, vem também olhares da fila. Humilhante. Se não fosse a grana curta, pagaria o valor que fosse só pra ninguém mais olhar.

Pra sobrinha a humilhação é maior. Toda vez que entra no supermercado o segurança fica de olho, como se ela fosse roubar. Nem dá gosto debater o preço, porque pode dar confusão e ainda querer olhar o que tem dentro da mochila. Dá vergonha, dá raiva.

A verdade é que o sentimento de humilhação não nos pertence. Pertence a quem diz que poder pagar a compra do mês é virtude de vencedor, mas ser um trabalhador é ser um perdedor? Não. A origem desse sistema é o roubo. O roubo da terra do camponês, o roubo de pessoas de um continente e a conversão dessa enorme massa em escravos. A origem do capitalismo é o sequestro de todos os meios de sobrevivência das grandes massas e a transformação de toda a humanidade em donos apenas e exclusivamente da própria força de trabalho. Essa força de trabalho, para que volte no dia seguinte, é forçada a viver com muito pouco, como explica Marx em Salário, Preço e Lucro, "O valor da força de trabalho se determina pela quantidade de trabalho necessário para a sua conservação, ou reprodução, mas o uso desta força só é limitado pela energia vital e a força física do operário", ou seja: o salário não está determinado por quanto se trabalha, mas pelo quanto custa se manter vivo. Em cima desse tempo comprado pelos capitalistas, eles utilizam da nossa força de trabalho muito mais do que nos pagam em comparação com o que a gente produz, e assim, se produz o lucro, que é um verdadeiro roubo da nossa força de trabalho e do nosso tempo. Não importa se o quanto você trabalha (8h, 9h, 10h ou mais) por dia, a remuneração do trabalhador está sempre relacionada ao valor dos produtos básicos no supermercado (com raros reajustes!), prezando não pela melhoria das condições de vida, mas pela manutenção da condição do trabalhador como alguém que não possui nada além de sua própria força de trabalho, ou seja, que não acumula.

O consumo, nesse sentido, está restringido a esses valores, e por isso todos os meses, o supermercado é esse enorme desafio de cálculo e de controle das próprias emoções. Coloquemos mais um dado nessa balança. Viemos dizendo nesse diário como o racismo atua como mecanismo da superexploração, correto? Pensado nos termos acima, o racismo produz uma redução do cálculo da vida de milhões de não brancos no mundo. Se os salários de negras, negros, árabes, migrantes, orientais... pode ser menor, significa que os capitalistas produziram as condições para que nossas vidas valessem menos para serem reproduzidas e mantidas, e isso se dá através de nos condicionar a viver em condições desumanas de vida: sem saneamento básico, sem água potável, sem alimentos de qualidade, sem lazer. Quando se vê que uma mulher negra recebe 60% a menos que um homem branco no Brasil, uma média do salário nacional, é preciso entender que racismo e patriarcado atuam juntos para promover uma reprodução de vida extremamente barata para toda uma parcela da população trabalhadora nacional, ou dito de outra forma, pros capitalistas, mulheres negras não valem nada mesmo.

É por isso que seguranças dos mercados nos perseguem, que policiais atuam violentamente contra nós, que uma discussão com uma funcionária pode nos levar à morte por espancamento e sufocamento. Porque dentro das engrenagens desse sistema, nossas vidas valem menos, mas as mercadorias ainda custam muito, logo, as contradições são maiores sobre as mulheres, sobre as negras, os negros. A polícia aprende a nos ter como alvo porque nos manter assim exige mais controle, mais repressão e mais violência.

Tudo isso dentro do supermercado.

"Não tem pra todo mundo"

"É caro porque não é pra todo mundo" ou "se tivesse pra todo mundo seria de graça" são dois mitos odiosos promovidos pelo discurso capitalista. Um produto só é caro quando a quantidade que existe dele é menor do que a quantidade de pessoas que querem ou podem consumir. Isso se estende também para os produtos baratos, porque afinal de contas, o que é barato para você, leitor, pode ser caro pra alguém. Quanto menor o poder de consumo de um indivíduo (e lembre-se que o poder de consumo de alguém não é culpa dessa pessoa) mais inacessíveis os produtos se tornam, e se consomem em geral os produtos mais "baratos". Os produtos mais baratos são os que tem mais demanda e mais gente com capacidade de consumí-los. Então se temos um produto que tem alta disponibilidade e muita gente pra consumir ele poderia ser de graça, certo? Errado.

Não existe no capitalismo a vocação de apenas garantir que se tenha acesso aos produtos. Qualquer produto que esteja disponível massivamente pra população terá sua produção controlada para garantir que haja escassez e portanto manutenção de um preço específico ou inclusive encarecimento dos produtos. E há outras formas de fazer isso para além da produção, que é o controle dos estoques e inclusive o descarte de mercadorias quando há pouca busca delas e chegam ao vencimento, por exemplo. A alta do preço do arroz esteve diretamente ligada a isso. Frente ao aumento de consumo do nosso arroz por importação, valia mais a pena encarecer o preço de compra aqui e vender também a altos preços pra outroa países do que garantir a circulação em baixos preços aqui no país. E é preciso dizer que as coorporações responsáveis pelas decisões de preço são empresas como o Carrefour, o Pão de Açúcar, o Wallmart, entre tantas outras megaempresas, multinacionais, donas de enormes montantes de capital, que são as que regulam os preços e os nivelam frente ao montante geral de produtos disponíveis. É excelente que hoje se leia o nome Carrefour e se entenda assassino, racista, e é preciso que se faça isso com o conjunto das grandes marcas dos supermercados, que tem as mãos sujas do sangue da enorme massa impedida de comer, de se higienizar, de se vestir, pelas decisões desses grandes grupos capitalistas que lucram milhões manipulando os preços para que seja sempre impossível que um grupo de pessoas possa comprar.

E por isso termino esse texto com uma ideia que espero poder seguir em algum próximo, já que até aqui seguramente poucos me acompanharam e já falamos sobre muitas coisas. Assim como tantas outras negras e negros, quando vejo o nome Carrefour num letreiro, me lembro de João, e não tenho vontade de entrar. Entendo inclusive todos os outros que decidem apedrejar, incendiar, e jamais faria como a direção do ato de SP, do PCdoB e PT, que disse que aos que apedrejavam "deixa que a polícia resolve". A questão é que precisamos sentir esse ódio contra todos eles, patrões, burgueses, banqueiros, grandes capitalistas, que apostam na miséria e na fome para manter lucros, que fazem prognósticos financeiros em base a um salário humilhante e uma polícia de prontidão para impedir a "rebeldia". A todos os que querem fazer boicote, convido a que nos organizemos para destruir essa sociedade dividida em classes, única forma de promover uma ação coletiva que faça com que eles paguem pela morte de João e de tantos outros. E a todos os que apostam que foi um deslize e que o Carrefour pode ser melhor... bom... Remeto à boa e velha conclusão de Malcolm X: não existe capitalismo sem racismo.


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