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Mike Davis e a incansável batalha pelo direito à cidade

Esteban Mercatante

Mike Davis e a incansável batalha pelo direito à cidade

Esteban Mercatante

No dia 25 de outubro, faleceu Mike Davis, que foi, desde a década de 1960, parte ativa da “nova esquerda”, começando sua atividade como organizador sindical em um ativistmo cujo pulso não perdeu nas décadas seguintes e que combinou com suas intervenções no terreno das ideias. Seus livros e artigos cobrem uma grande amplitude de interesses: abordam a condição da classe trabalhadora nos EUA, as brutalidades do imperialismo britânico em suas colônias durante a época vitoriana, a discussão dos fenômenos políticos nos Estados Unidos, os desastres ecológicos do capitalismo, entre muitos outros.

Porém, seus dois trabalhos de maior repercussão foram aqueles dedicados a desmanchar as configurações da cidade no capitalismo contemporâneo, focando um deles em Los Angeles e o outro sobre a urbanização de favelas que ocorreu durante o neoliberalismo em grande parte do mundo capitalista não desenvolvido. Ambos os livros conseguiram ganhar um lugar destacado nas reflexões críticas sobre o desenvolvimento urbano capitalista e a luta pelo direito à cidade, ao lado de autores como Henri Lefebvre, Jane Jacobs, Lewis Mumford, David Harvey e Saskia Sassen. Neste artigo, vamos apresentar algumas das ideias mais marcantes e atuais dessas obras.

Los Angeles nua

É preciso entender que Los Angeles não é simplesmente uma cidade. Pelo contrário, é, e tem sido desde 1988, um objeto de consumo; algo para anunciar e vender ao povo dos Estados Unidos, como os carros, cigarros e pasta de dente. Morrow Mayo, Los Angeles [1].

Cidade de quartzo: escavando o futuro em Los Angeles (1990), foi o segundo livro de Mike Davis. Em 1986, publicou Prisioners of the American Dream, no qual investigou por que a classe operária estadunidense não havia desenvolvido nenhum partido de massas independente ao longo de sua história, cobrindo toda a história do país até o ascenso de Ronald Reagan para responder à pergunta. Cidade de quartzo foi um best seller instantâneo que tornou seu autor em uma celebridade intelectual.

Davis disseca nessa obra tudo o que está por trás da “marca L.A.”, o que seus promotores preferem tirar de foco enquanto acentuam suas praias ensolaradas, suas colinas com casas de luxo, sua “fábrica de sonhos”, a arquitetura hipermoderna e a vida cultural de última moda. Em outras palavras, todo o brilho da cidade “pós-moderna” que deslumbrou Jean Braudillard e muitos outros antes e depois dele.

Em Cidade de quartzo, Los Angeles surge, por um lado, como uma megalópole repleta de particularidades. Seu crescimento acelerado no começo do século XX ocorreu sem uma base industrial relevante que desse sustento e condições de crescimento econômico, como ocorreu com outras grandes cidades estadunidenses na mesma época. O frenesi imobiliário, baseado na atração da população “afluente” - e, acima de tudo, suas economias - de outros lugares dos EUA e do exterior para as casas de ambientes idílicos, promovidas em folhetos coloridos, preencheu essa lacuna. Cidade de quartzo mostrou como esse empreendimento imobiliário, hipertrofiado por projetos cada vez mais ambiciosos, continuou sendo a grande locomotiva que bombeia a atividade de Los Angeles nas proximidades do século XXI. Por outro lado, o foco em LA permitiu que Davis mostrasse as mutações que caracterizam o conjunto da economia estadunidense e a produção do espaço urbano que a caracterizou durante o século XX. L.A., assim como Califórnia e o Oeste estadunidense de conjunto, passou por um boom da industrialização durante o Segundo New Deal, o keynesianismo militar da guerra e sua posterior reconversão à indústria para o consumo de massas. Isso legou a presença da NASA e da indústria aeronáutica em L.A até os dias de hoje, ainda que fundamentalmente reestruturada em tempos de cadeias globais de produção. O que aconteceu com esse tecido industrial décadas depois, reconvertido, relocalizado ou simplesmente desmontado durante as reestruturações que seguiram a crise do fim do boom do pós-guerra, mostra mais uma vez como, dentro de uma trajetória comum, emerge novamente o particular em L.A, onde as consequências foram distintas das de outras partes do país. Neste pedaço da Califórnia, os cadáveres de fábricas fechadas não ficaram como no rust belt, com seus povos agonizantes até os dias de hoje. Pelo contrário, conta Davis com foco no caso de Fontana (a 75 km de L.A.), onde a siderúrgica da Kaiser seguiu funcionando até a década de 1980, o desaparecimento fabril se converteu em uma oportunidade para outra rodada de destruição criativa do setor imobiliário.

Mike Davis dá muita atenção às marcas que a luta de classes produz na trama urbana. Seu livro começa traçando uma genealogia das tradições intelectuais que L.A produziu em sua história, e se posiciona como uma continuação e atualização do trabalho dos “desmascaradores” que durante a década de 1930 se empenharam em combater a visão idílica que Charles Lester Lummis e sua comitiva no final século XIX haviam produzido, a partir do Times - propriedade do general Harrison Gray Otis. Entre esses pioneiros da crítica à marca L.A., Davis resgata Louis Adamic e Morrow Mayo. A contribuição mais original de Adamic foi a ênfase colocada na “centralidade da violência de classe na construção da cidade”. Uma “guerra de Quarenta anos” (termos utilizados pelo próprio Times) entre o capital e o trabalho foi travada entre 1880 e 1920. O “aqui-não-existem-sindicatos”, resultado da vitória das patronais, foi uma marca indelével da identidade da cidade até 1930, quando finalmente os impulsos de organização operária, no marco da Grande Depressão e do New Deal, conseguiram finalmente torcer o braço e conquistar o direito à organização sindical em alguns setores fundamentais.

Porém, quarenta anos depois, a partir de meados dos anos 70, L.A. surge novamente como vanguarda do desenvolvimento dos mecanismos para lidar com os efeitos da polarização social produzida pelo neoliberalismo no espaço urbano. A nova geografia da cidade adianta as políticas urbanas voltadas para a gestão da polarização através da segregação - em oposição a qualquer objetivo de integração, meta que desapareceu do mapa dos planificadores urbanos. Com sutileza e mordacidade, Davis mostra como a arquitetura de vanguarda admirada pelos entusiastas do pós-modernismo, começando pelos desenhos do famoso Frank Gehry, era na realidade carregada de ameaças para aqueles que não tinham o benefício de pertencer. “Com uma clareza às vezes arrepiante, seu trabalho torna visíveis as relações subjacentes de repressão, vigilância e exclusão que caracterizam o conceito paranoico e fragmentado do espaço para o qual Los Angeles parece estar caminhando” [2].

Para travar a guerra de classes contra os excluídos e os segregados raciais, tanto afro-americanos como latinos, a cidade se tornava fortaleza, e o espaço público era intencionalmente transformado para combater qualquer aglomeração. As tendências aniquiladoras do urbano que Jane Jacobs havia advertido décadas atrás no modernismo tardio foram levadas às últimas consequências, com a finalidade de assegurar o direito à cidade a alguns privilegiados, e evitar que passassem pela desagradável experiência de cruzar com os “indesejáveis”.

A vitória nessa guerra de classes não garantiu, no entanto, a perpetuação de um esquema de acumulação baseado na “mitologia do crescimento eterno e gerido” [3]. Davis destaca todas as manifestações que desde cedo mostraram a inviabilidade desse modelo de urbanização que Peter Plagens chamou de “ecologia do mal” [4]: contaminação crescente, desperdício de água e riscos de escassez, incêndios devastadores, inundações, aceleração da atividade sísmica. Mas o principal problema não viria da aceleração da ocorrência desses eventos, mas de um imprevisto racha entre os capitalistas imobiliários e seus compradores mais opulentos. Como não poderia deixar de ser, a certa altura, a locomotiva do crescimento imobiliário só pode ser sustentada pela aglomeração de prédios, o que mina as condições que permitiram, em primeiro lugar, atrair proprietários, e, principalmente, mina o valor de suas propriedades. O leit motiv do “crescimento lento” da construção e o rechaço aos edifícios de apartamentos altos nas imediações das unidades unifamiliares tornaram-se dor de cabeça para as construtoras e urbanistas desde meados da década de 1970, que ficaram surpreendidos com o ativismo dos residentes. Suas demandas por “crescimento lento” impuseram importantes restrições nos códigos de edificação, ainda que a constante injeção de dinheiro para construir em L.A., cada vez mais internacionalizada, seguirá buscando e encontrando formas para sustentar o maquinário.

Cidade de quartzo convoca os intelectuais de oposição a pôr as mãos à obra na tarefa de combater e desmascarar os mitos do projeto L.A. e de seu “crescimento eterno”. Mike Davis continuou fazendo isso, tanto em seus livros e artigos como em sua participação ativa e apoio a vários movimentos sociais.

Dickens recarregado

A atenção às consequências das dinâmicas urbanas do capitalismo contemporâneo continuou muito presente nos trabalhos de Mike Davis. Outro de seus livros que alcançou grande popularidade foi Planeta Favela. Nessa ocasião, ele se concentrou no tipo de urbanização, qualitativamente mais degradada, que estava ocorrendo no Sul Global sob a implementação das políticas neoliberais.

Um dos principais fenômenos da transformação demográfica no final do século XX e começo do XXI foi o aumento acelerado da proporção da população urbana nos países “em desenvolvimento” ou países “pobres”, segundo as distintas categorizações e hierarquizações de formações dependentes normalmente aplicadas pelos organismos de crédito multilaterais como o FMI e o BM, ou as agências da ONU. Ainda que na China e em alguns outros países da “periferia próspera”, que conseguiram inserir-se com algum sucesso nas cadeias produtivas globais, as dinâmicas de urbanização tenham se reproduzido, com ritmos acelerados e em escala ampliada, de forma similar às dinâmicas que forjaram as metrópoles dos EUA e da Europa nos séculos XIX e início do XX, este não é o caso da maior parte da periferia.

… na maioria dos países em desenvolvimento, o crescimento das cidades carece completamente do poderoso motor que representa tanto as exportações de bens da China, Coréia e Taiwan quanto a injeção de capital estrangeiro que a China recebe, um país que recebe atualmente metade dos investimentos externos feitos em todos os países em desenvolvimento [5].

Se o Sudeste Asiático recebeu grandes investimentos para estabelecer processos fabris, “as grandes cidades industriais do hemisfério sul, como Bombay, Joanesburgo, Buenos Aires, Belo Horizonte e São Paulo, sofreram o fechamento massivo de empresas e um progressivo desmantelamento industrial” [6]. Outras estruturas de formação mais recente surgiram diretamente sem nenhuma vinculação com as dinâmicas de acumulação de capital em esferas industriais. Além disso, na África subsaariana, a urbanização ocorreu “mesmo sem uma das supostas premissas sine qua non do crescimento urbano: o aumento da produtividade agrícola” [7]. O resultado é que a capacidade econômica da cidade tem pouca relação com o tamanho de sua população e vice-versa.

Mike Davis expõe no Planeta favela como essa urbanização sem industrialização, que produziu aglomerações carentes de infraestrutura básica, com populações que sobrevivem amontoadas em moradias precárias, carecem de empregos formais e atingem rendas bem abaixo da linha da pobreza, é resultado das “reformas estruturais” cujo FMI forçou a aplicação em todo o planeta, montada nas crises da dívida e no estrangulamento da balança de pagamentos que ocorreram desde a década de 1970 nos países “pobres” e “em desenvolvimento”.

A década de 1980, em que o FMI e o Banco Mundial utilizaram a dívida como alavanca para reestruturar as economias da maioria dos países do Terceiro Mundo, foi o período em que as áreas urbanas hiperdegradadas converteram-se em um implacável destino não apenas para os imigrantes rurais, mas também para milhões de pessoas que tradicionalmente viviam nos centros das cidades e que se viram expulsas para elas por conta da violência do “ajuste” [8].

Indo muito além das exigências habituais para restituir a capacidade de pagamento das economias endividadas, as condições do FMI em seus créditos - apoiados pelo Banco Mundial e seus empréstimos para reformas - apontavam para um profundo redesenho das economias em que o capital tinha ainda muito terreno para conquistar. A abertura dos setores agrícolas ao agronegócio se deu através da imposição de políticas de desregulação e abertura que impuseram uma competição de pequenos e médios agricultores com a produção global. Na medida que as redes locais estáveis desapareciam, os pequenos agricultores se tornaram mais vulneráveis às circunstâncias externas: seca, inflação, aumento dos custos financeiros ou a queda dos preços de venda dos grãos. Seu deslocamento para as cidades foi imparável; produziu-se “um êxodo da mão de obra rural excedente para as áreas urbanas, mesmo tendo as cidades deixado de ser máquinas geradoras de emprego” [9].

O modelo clássico do campo possuidor de uma grande mão de obra e da cidade como fonte de capital “se inverte em muitos lugares do Terceiro Mundo, onde encontramos cidades desindustrializadas possuidoras de uma grande mão de obra, e regiões rurais com grande afluência de capital” [10]. O motor dessa urbanização se encontra na reprodução da pobreza, e não na reprodução do emprego.

Qual é a fisionomia das cidades do novo milênio produzidas por esse tipo de urbanização? Segundo Davis:

… as cidades do futuro se encontram longe do vidro e do aço, como imaginavam gerações anteriores de urbanistas: a realidade nos apresenta um panorama de tijolos crus, palha, plástico reaproveitado, blocos de cimento e tábuas de madeira. Em lugar de cidades de luz elevando-se ao céu, a maior parte do mundo urbano do século XXI se move na miséria, cercado de contaminação, lixos e podridão.

Contrariando os relatos que permeiam as políticas das agências de desenvolvimento e dos organismos multilaterais de crédito à serviço do capital transnacional, Davis mostra que esses resultados não são um produto da “falta de desenvolvimento” ou da “necessidade de maiores reformas” pró-capitalistas, como normalmente aconselham os documentos de metas para a erradicação da pobreza. Pelo contrário, traçando um panorama global, Planeta favela mostra como essas urbanizações degradadas abrigam uma população global “excedente” que é o resultado de uma reestruturação global do sistema capitalista que, em sua atualidade decadente, não tem uso rentável para amplas porções da força de trabalho mundial.

Ao mesmo tempo, para evitar que parte da maré de excluídos pretenda escapar dessas urbanizações hiperdegradadas migrando para os países ricos e suas cidades, também polarizadas e excludentes, mas muito mais promissoras para tentar a sobrevivência, a “‘grande muralha’ de alta tecnologia” se ergue “para bloquear a emigração massiva aos países ricos”. Isso deixa áreas urbanas hiperdegradadas “como a única solução ao problema de como armazenar o excedente de população que este século produziu” [11].

Mike Davis foi, como buscamos mostrar na abordagem de dois de seus trabalhos mais destacados, um pensador marxista de grande originalidade na abordagem dos temas e com muita intuição para encontrar na dimensão urbana a manifestação dos conflitos de classe, apostando e contribuindo sempre para a intervenção da classe trabalhadora e dos setores populares para acabar com esse sistema de exploração e opressão.


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FOOTNOTES

[1Citado por Mike Davis, Ciudad de Cuarzo. Arqueología del futuro en Los Ángeles, Toledo, Lengua de Trapo, 2003, p. 1.

[2Ibídem, p. 207.

[3Ibídem, p. 63.

[4Ibíbem, p. XVII.

[5Mike Davis, Planeta de ciudades miseria, Madrid, Akal, 2006, p. 24.

[6Ídem.

[7Ibídem, p. 25.

[8Ibídem, p. 196.

[9Ibídem, p. 27.

[10Ibídem, p. 28.

[11Ibídem, p. 257.
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