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"Marielle, o documentário": será mesmo que a Globo se interessa pela questão negra e da mulher?

Renato Shakur

Imagem: Reprodução da divulgação da série/Globoplay.globo

"Marielle, o documentário": será mesmo que a Globo se interessa pela questão negra e da mulher?

Renato Shakur

Há 2 anos do assassinato da vereadora Marielle Franco e de seu motorista Anderson Gomes, a Globo lançou um documentário sobre esse terrível assassinato ainda sem respostas, divido em 6 partes contando a trajetória política de Marielle e as pautas políticas que defendia, sua relação com familiares e políticos do Psol e as linhas de investigação do crime feitas pela polícia. O documentário remonta de maneira dramática e emocionante o fatídico dia 14 de Março, a partir de cada uma dessas pessoas mais próximas de Marielle, seus pais e sua filha, sua companheira Mônica Benício, sua irmã Aniele Franco e parlamentares do Psol como Marcelo Freixo, Tarcísio Motta, Renata Souza, entre outros. É triste ver uma das vereadoras mais votadas do município do Rio de Janeiro que defendia as pautas das mulheres, negros, lgbts e dos direitos humanos, que milhares de jovens e trabalhadores depositaram seu voto numa mulher que como eles vivem a miséria e a precariedade das favelas e da periferia do Rio, ser assassinada brutalmente e de maneira covarde com 4 tiros na cabeça, num crime político ainda sem explicação. Não à toa, logo após seu assassinato milhares saíram às ruas do Rio de Janeiro exigindo justiça à Marielle e Anderson, e na boca de cada carioca, negro e negra, trabalhador e trabalhadora pelo Brasil inteiro se ouvia uma pergunta com muita indignação: “Quem mandou matar Marielle Franco?”

No entanto, por trás de um documentário que transmite a dor e sofrimento de todos aqueles que sentiram a perda de Marielle, há um sensacionalismo e oportunismo sem tamanho de uma emissora, que, como a Globo, não só quis canalizar pela direita a insatisfação de milhares de jovens e trabalhadores que saíram às ruas exigindo justiça à época de seu assassinato, desviando o potencial questionador de massa que se colocava nas ruas contra o estado, como também quer agora se diferenciar de Bolsonaro e os militares desde pautas culturais e identitárias, como a questão negra e a questão da mulher, incorporando em seu discurso através de programas e seus telejornais, assim como neste documentário, uma mentira absurda de que defende a causa dos negros e das mulheres.

A Globo aquele mesmo monopólio midiático que apoiou as tropas brasileiras no Haiti nos governos Lula e Dilma, ainda que se opusesse aos “excessos” defendeu aquela “missão de paz” e a presença militar no país, por trazer “estabilidade” e “pacificação de favelas” que muito pelo contrário serviu para reprimir os trabalhadores haitianos, tendo sido inclusive os militares acusados de roubos, assassinatos e estrupos. A Globo foi a principal entusiasta das UPP’s, transmitiu ao vivo na tv aberta as “ocupações” de favelas pelo Exército e pela Marinha brasileiras que abriu uma política ainda mais intensa de extermínio da juventude negra; sempre foi uma defensora da criminalização legalização, tirando o direito de milhões de mulheres brasileiras decidirem sobre seus próprios corpos e sendo culpada também pela morte de milhares de mulheres, principalmente negras e pobres em clínicas de aborto clandestinos; e é claro, defendeu abertamente o golpe institucional e a reforma da previdência que veio para atacar profundamente as condições de vida e os direitos dos trabalhadores.

De certo, a Globo nunca foi aliada dos trabalhadores, poderíamos aqui listar as inúmeras vezes que esteve ao lado dos patrões e dos capitalistas e não do nosso, dos negros e das mulheres. Mas o que chama mais atenção é o fato de não só a Globo ter incorporado centralmente as pautas culturais ou identitárias de uns tempos pra cá e de ter feito um documentário sobre o assassinato de Marielle Franco, tentando disputar enquanto uma ala de um fenômeno identitário e antiracista, o legado e a memória de Marielle, mas do que está por trás dessa tentativa de desviar e canalizar esse fenômeno progressista à direita, tentando tirar dele tirando qualquer potencial de enfrentamento com o regime.

Nenhuma confiança no estado, por uma investigação independente!

Marielle foi assassinada em plena intervenção federal, escancarando a culpa do estado nesse crime político, por outro lado foi também fruto do avanço autoritário da direita desde o golpe institucional, configurando assim uma das marcas profundas que o golpismo deixou na sociedade não só com ataques aos direitos dos trabalhadores, mas também com esse assassinato ainda sem solução, uma ferida aberta. Apenas uma investigação independente imposta pela luta dos trabalhadores e da juventude que esteja à frente as mães que perderam seus filhos pela violência policial e todos aqueles moradores de favelas e periferias cariocas que não aguentam mais ter suas casas invadidas em operações policiais, ter seus parentes assassinados e ver mais um negro ou negra sendo morto pela polícia, pode revelar de fato quem mandou matar Marielle. O estado deve garantir todos os recursos e as condições adequadas para essa investigação, como filmagens, arquivos de posse de qualquer instituição do regime, além de materiais que viabilizem o início e a continuidade das investigações até o final. Tudo isso deve estar à disposição de especialistas que estejam de fato engajados com a causa, dos parlamentares do Psol, representantes dos organismos de direitos humanos, sindicatos, movimentos de favelas, movimento de mães que perderam seus filhos para violência policial, etc. Só uma investigação desse tipo pode chegar nos reais mandantes desse assassinato e puni-los.

A Globo, ao contrário, defende uma linha totalmente oposta e reacionária, confiando nos organismos de polícia, como a delegacia de homicídios, que dentre as várias provas coletadas, adicionou à investigação o depoimento (psicografado) de um médium. Parece até uma piada de mau gosto, a polícia civil do estado do Rio de Janeiro através da delegacia de homicídios adicionar um depoimento desses à investigação de um assassinato tão sério. Na verdade, a Globo faz uma leitura bastante interessada da investigação e por isso este depoimento absurdo que é tido como prova não é questionado, e a todo momento se coloca como parte ativa da investigação, “ajudando” a coletar provas, tendo acesso a documentos antes mesmo da polícia, sempre chegando - e esse é um ponto importante - a conclusão de que a demora para achar os mandantes deriva do fato deste ser um caso bastante complexo, “bem pensado”, “meticuloso”, de assassinos “profissionais”. Certamente, pelo nível de sofisticação do crime, com aparelhos que impedem rastrear o celular, carro clonado, um atirador experiente, munições exclusivas compradas pela polícia federal, etc. deixa claro que se trata de um crime político de grande importância para os mandantes, mas a Globo quer afirmar que a única forma de saber quem realmente mandou matar Marielle é deixando os rumos das investigações nas mãos do próprio estado que tem seus vínculos com esse assassinato. Assim o documentário vai mostrando as dificuldades em solucionar esse crime, ao mesmo tempo em que se coloca como parte não só da juventude e dos trabalhadores que 2 anos após seu assassinato ainda exigem justiça, mas também do legado político de Marielle, reivindicando sua luta contra a violência policial, pelos direitos humanos e das mulheres.

Cultura dominante e as pautas culturais.

A incorporação por parte da burguesia ou de frações da burguesia de práticas culturais que anteriormente não faziam parte das suas ou das práticas culturais referentes à cultura dominante, não é um fato inteiramente novo. A perseguição à população e cultura negra durante a 1ª República brasileira através da criminalização da vadiagem é um exemplo bastante esclarecedor desse tipo de processo de dominação de classes. Sambistas e capoeiras que nesse momento foram perseguidos e punidos, assim como outros negros e negras que podiam se enquadrar nesse crime pela cor de sua pele, na década de 30 viram seus batuques e rodas não serem mais criminalizados e a cultura negra foi sendo incorporada à cultura dominante, mas, no caso do samba em particular, sob a alcunha de música popular e não de música negra. Não só porque desde essa época já se via presente na sociedade a ideologia burguesa da democracia racial, mas também porque não se podia fazer lembrar desde o nome que aquela prática cultura remontava a luta e a resistência de negros escravizados.

O teórico marxista Raymond Williams em sua obra “Cultura e Materialismo histórico” estabeleceu reflexões interessantes para pensar esse mecanismo de dominação de classe, desde o que ele denomina “cultura dominante eficaz”, ele estabelece uma lógica interessante para pensar o porquê da apropriação por parte da cultura dominante de outras práticas culturais que não fazem parte desse “sistema central de práticas, significados e valores” [1]. Segundo ele, há práticas culturais “emergentes” e “residuais”, as primeiras são aquelas práticas e valores novos que desde seu surgimento a burguesia tenta incorporar à cultura dominante, por serem práticas contemporâneas efetivas, isto é, fazem parte das experiências e práticas reais dos indivíduos; as “residuais”, como o próprio nome diz, funcionam como resíduos históricos, ou seja, experiências históricas pretéritas onde a classe dominante quer exercer influência sobre essa cultura residualmente praticada por fazer parte da experiência real daqueles indivíduos [2]. Não é nosso objetivo observar em qual dessas categorias melhor se encaixa as práticas culturais em questão, e sim compreender que essas práticas que pra eles são “alternativas” só podem ser incorporadas à cultura dominante à medida em que não combatam e contraponha aquele sistema central de valores e práticas culturais hegemônicas, se tornando segundo ele “opositoras” pertencentes à práticas políticas “revolucionárias” [3].

Ainda que haja limites em sua formulação, pois as práticas culturais são apropriadas ou não pela burguesia, não apenas pela seu conteúdo revolucionário ou “alternativo”, mas sim pelo avanço da consciência das massas operárias e se se coloca em movimento uma força capaz de combater a burguesia com os métodos históricos de luta dos trabalhadores (como foi de alguma maneira com o samba e a capoeira), a lógica de incorporação das práticas culturais apresentada por Raymond Williams nos fornece elementos interessantes para pensar a incorporação por parte da Globo das pautas culturais referentes à questão negra e da mulher. A Globo incorpora essas pautas culturais, inclusive se utilizando de maneira oportunista e hipócrita da figura de Marielle Franco, pois esvazia todo conteúdo radical e subversivo que a questão negra e da mulher podem ter. Ou seja, a Globo se propõe a incorporação dessas pautas culturais na medida em que elas não ultrapassem os limites que as tornam culturais, por isso quando se trata da questão mulher não reivindica nada além do empoderamento individual e da representatividade, assim como a questão negra, retirando tanto da luta dos negros e das mulheres um conteúdo histórico importante e muito potente que foi o questionamento do racismo, patriarcado e capitalismo.

Cultura negra e a luta por Justiça à Marielle

Decerto, a Globo faz um cálculo bastante preciso em como disputar uma ala nesse movimento progressista do identitarismo negro que tem nas parlamentares negras do Psol, as “sementes da Marielle”, uma expressão à esquerda e eleitoral desse fenômeno. Foram centenas de milhares de jovens, trabalhadores e negros e negras confiando seus votos em em mulheres negras com pautas antiracistas e feministas. Jovens que assumem seus cabelos crespos e a identidade negra transmitindo algo muito profundo, mulheres negras que largaram as químicas para cabelo, que pouco a pouco vão aceitando sua identidade num momento de aprofundamento do racismo estrutural no governo bolsonaro, vão por conta disso tomando uma posição antiracista numa sociedade tão racista como a brasileira. Não só isso, quando escolhem por essa via do orgulho racial vão tomando uma posição política e talvez seja a primeira vez que esteja se posicionando frente a sua família, amigos da escola e patrões (que não admitem os cabelos crespos "soltos" precisam estar presos ou cheio de creme). Um potencial incrivelmente transformador e questionador numa sociedade com altos índices de feminicídio e assassinatos de negros nas favelas pela violência policial.

A cultura negra possui um conteúdo de classe ímpar, no desenvolvimento do capitalismo manteve a dimensão da resistência negra, como parte importante da luta dos negros escravizados e dos trabalhadores. No pós-abolição, o bairro da Saúde foi tomado por barricas que encampavam capoeiras daquele bairro, trabalhadores negros, como o estivador Prata Preta que defenderam nas ruas o direito de não ser vacinado, por possuírem eles mesmos, filhos de ex-escravizados e ex-escravizados seus métodos de cura medicinais e espirituais [4]. No Haiti, os negros revolucionários escolhiam muito bem os momentos e os locais onde iam organizar as primeiras revoltas em 1791, preferiam a religião do vudu, uma importante dimensão da cultura negra, nessas cerimônias religiosas secretas era onde os negros revolucionários haitiano organizavam as fugas para os quilombos e suas revoltas, sem que os senhores percebessem [5].

Podíamos continuar listando as lindas e grandiosas histórias de negros e trabalhadores que encontraram um ponto de apoio na cultura negra para lutar contra os senhores e a burguesia. É por esse motivo, que mesmo que Globo tente se apropriar das pautas culturais dos negros e das mulheres através da trajetória política de Marielle Franco como ficou claro nesse documentário, que foi assassinada justamente por defender os direitos das mulheres, dos negros e do povo pobre de favelas, nunca será antiracista.

No documentário a Globo reivindica a luta de Marielle contra o extermínio da juventude negra nas favelas, mas sabemos que são entusiastas da “guerra às drogas” que assassina diariamente essa juventude e são contra a legalização de todas as drogas. Contraditoriamente, exaltam algo importante presente nesta mesma juventude que é o orgulho de sua cor,,que não tem mais medo e vergonha de dizer com firmeza que é preto ou preta, através da própria imagem de Marielle, mas ao mesmo tempo, foi a própria Globo que apoiou o golpe institucional que veio para descarregar a crise nas costas dos trabalhadores e das trabalhadoras, sobretudo, negras. Querem falar em nome das mulheres negras, mas nem sequer tocam numa das principais pautas das mulheres internacionalmente, as milhões mulheres que saíram às ruas por todo mundo no 8M com seus panos verdes exigindo a legalização do aborto.

Há dois anos de seu assassinato, vemos alas do regime burguês que apoiaram o golpe institucional e a reforma da previdência como a Globo defender que pelas dificuldades da investigação desse crime político ainda não se pode chegar aos mandantes. Incorporando um discurso da pautas culturais dos negros e das mulheres vai diferenciando do autoritarismo representado na figura de Bolsonaro e dos militares, e tentando incidir num movimento retirando seu conteúdo radical e contestador. Um levante negro e dos trabalhadores pode arrancar de uma vez por todas desse regime degradado as verdades sobre o assassinato de Marielle com uma investigação independente, por isso continuamos juntos com milhares de trabalhadores e jovens exigindo justiça à Marielle!


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FOOTNOTES

[1Raymond Williams, Cultura e Materialismo histórico, p.53.

[2Ibidem, pp.56-57.

[3Ibidem, p.53.

[4Leonardo Pereira. “As barricadas da saúde: vacina e protesto popular no Rio de Janeiro da Primeira República”, 2002.

[5Franco, 1966 apud Elizabeth Larkin Nascimento, “Pan-africanismo na América do Sul, 1981.
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[Marielle Franco]

Renato Shakur

Estudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF
Estudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF
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