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SEMANÁRIO

Machado de Assis e o cenário político do Brasil

Iuri Tonelo

Machado de Assis e o cenário político do Brasil

Iuri Tonelo

Estamos a uma semana das eleições presidenciais do Brasil, um evento que tem atraído a atenção nacionalmente e em distintos lugares do mundo. Não é por menos. O país tem sido governado por Jair Bolsonaro, chamado de “Trump dos trópicos”, um dos representantes da extrema-direita internacional que tem estado à frente de históricos ataques e contrarreformas econômicas, com intragáveis consequências sociais. O país voltou para o mapa da fome e a gestão da pandemia foi catastrófica, com 700 mil mortes.

O fato é que estamos na véspera do segundo turno, com um cenário ainda indefinido, mas com uma conclusão do primeiro turno já bem clara: o fenômeno social do bolsonarismo não será derrotado nas urnas. Hamilton Mourão, Damares Alves, Daniel Silveira e outros representantes reacionários dessa tendência tiveram votações expressivas, em um movimento de certa institucionalização da extrema-direita, mas combinado com as demonstrações extraparlamentares de rua, como foi no 7 de setembro.

Decifrar e saber atuar contra esse fenômeno nos convoca a um debate de estratégia. O general prussiano Carl von Clausewitz, autor de Da guerra, dizia que um dos princípios fundamentais da estratégia militar era ter claro de que guerra estamos tratando, distinguir claramente as forças e o tabuleiro em disputa, afinal, “a guerra é um verdadeiro camaleão”. Tomando esse apontamento para o momento, é decisivo analisar no cenário atual e nos embates a situação das classes, especialmente o desafio dos trabalhadores, no complexo emaranhado das eleições presidenciais e no pós-eleições.

Decifrar bem as forças em jogo e as tendências colocadas é parte fundamental do desafio dos intelectuais marxistas e da vanguarda dos trabalhadores, pois sem uma clara orientação estratégica não estaremos à altura de enfrentar o fenômeno do bolsonarismo e as degradações bonapartistas no atual regime político brasileiro. E nesse contexto, acredito que Machado de Assis nos inspira em uma importante conclusão a se retirar de 1964 e a como reagir a essa situação, a serem retomadas nesse momento.

A caracterização do cenário estratégico

Para compreender o que efetivamente está em jogo no Brasil primeiro é preciso analisar que as disputas que ocorrem no país se dão num contexto de transformações internacionais de longo alcance no capitalismo, e podem estar sinalizando a expectativa que se tem do papel do Brasil na divisão internacional do trabalho.

O fato é que na atualidade vem se expressando com mais evidência a nova dinâmica internacional pós-2008. Guerra da Ucrânia seguindo uma dinâmica ininterrupta, tensão geopolítica, provocando novas ameaças de recessão (debatida hoje em todos os jornais econômicos). Crises climáticas, distúrbios e ações dos trabalhadores, como na forte greve nas refinarias francesas. A dinâmica geral tem sido mais conflituosa e polarizada.

E no meio dessas transformações dos últimos anos uma é significativa para o que queremos tratar, que é a mudança do papel da China na geopolítica mundial, que faz com que saia de modelo de “fábrica do mundo” e dispute a proeminência tecnológica e militar internacionalmente, um debate novamente colocado pelo XX congresso do partido comunista chinês que ocorre na atualidade. Uma pergunta central no que se refere à dinâmica internacional do trabalho é qual seria o esquema internacional que equacionaria a mudança na dinâmica de acumulação chinesa, já que manter os níveis de exploração da década de 1990 para um país que busca um espaço de potência mundial é inviável.

Certamente uma parte desse papel ainda seguirá na China, o “made in Índia” aponta nesse sentido, com o extenso proletariado indiano sendo parte de um dos grandes laboratórios da exploração do trabalho. Mas, nesse contexto, vale destacar o papel da América Latina, um fato que chamamos a atenção em elaboração prévia, tentando decifrar as raízes das revoltas e rebeliões, em que se constatava que o trabalho assalariado na região está em declínio, que 53,8%, mais da metade dos trabalhos na América Latina, é informal e que essa cifra de informalidade atinge incríveis 62,6% quando tratamos do emprego de jovens de 15 a 24 anos. O fato é que essa situação vem se aprofundando, gerando fenômenos de irrupção das massas, mas chama a atenção que do G20 dois países em que a massa salarial declinou não passaram por esses processos. Gráfico a seguir mostra o índice médio de salário real para os países do G20, 2008–19:

índice médio de salário real para os países do G20, 2008–19

Fonte: OIT, Global Wage Report 2020–21: Wages and minimum wages in the time of COVID-19

A primeira coisa que chama a atenção no gráfico é a situação mexicana, que retrocedeu na massa salarial real. Mas também a do Brasil, com um período longo de estancamento e uma das piores situações do G20.

O tema exige uma discussão apurada, mas do que foi brevemente apresentado, somado ao fato de que viemos tendo um aumento nas taxas de lucro das empresas brasileiras (incluindo a pandemia) [1], nos leva a ter que observar os eventos do impeachment no país, junto ao governo Temer e a implementação da reforma trabalhista, o governo Bolsonaro e o conjunto das contrarreformas, e que no país ocorreu uma ampla experiência de uberização do trabalho - com uma explosão de trabalhadores de aplicativo atingindo rapidamente 5 milhões - são parte de uma nova localização do Brasil na divisão internacional do trabalho, um laboratório da exploração laboral.

A constatação do plano não significa uma declaração sobre os “rumos do destino” já traçado, afinal, o motor da história é a luta de classes. E em meio a esses processos houve as jornadas de junho em 2013, o “maio operário” em 2014 e duas greves gerais em 2017, processos contidos ou desviados pelas direções sindicais e políticas, que poderiam oferecer outro curso. E esse balanço é fundamental, pois não se refere apenas ao passado, mas a desafios estratégicos do futuro.

Tendo em vista esse cenário de fundo colocado, introduzamos Machado de Assis no debate.

Uma lição crucial de Machado nos eventos 1964

Em uma notável palestra de Roberto Schwarz na Flip em 2008, apresentou-se duas fortes teses ao redor do pensamento de Machado que nos são interessantes de retomar no presente momento. Primeiro, do ponto de vista literário, Schwarz aponta que o escritor promoveu uma inovação literária em Memórias Póstumas de Brás Cubas ao assumir o ponto de vista dos de cima, falando em primeira pessoa (a ousadia do recurso!) para mostrar o conjunto dos atrasos e ignomínias que as elites brasileiras (burguesa e latifundiária) representavam. De modo que uma marca forte de Machado estaria em captar o movimento de combinação entre a falsa ideia liberalizante europeia com o atraso de um país marcado pela escravidão, resultando no caráter conservador da “modernização” brasileira. A tese é complexa, e para ilustrar o argumento apresentado na palestra, retomamos a obra Um mestre na periferia do capitalismo, em que diz:

"Insistiremos ainda um pouco na ambivalência ideológica das elites brasileiras, um verdadeiro destino. Estas se queriam parte do Ocidente progressista e culto, naquela altura já francamente burguês (a norma), sem prejuízo de serem, na prática, e com igual autenticidade, membro beneficiário do último ou penúltimo grande sistema escravocrata do mesmo Ocidente (a infração). Ora haveria problema em figurar simultaneamente como escravista e indivíduo esclarecido? Para quem cuidasse de coerência moral, a contradição seria embaraçosa. Contudo, uma vez que a realidade não obrigava a optar, por que abrir mão de vantagens evidentes?" [2]

Machado de Assis com sua obra conseguia mobilizar os recursos literários necessários para apresentar o caráter dessa elite e, mais que isso, o que queremos destacar, terminava por condenar, gerar desconfiança, incredulidade com seu suposto caráter liberal e progressista.

Ironicamente, ora por aspectos formais, ora pela oposição com os naturalistas (que falavam explicitamente dos “desejos da carne”), ou ainda pela incompreensão dos recursos estéticos, Machado era mais comumente apresentado como um símbolo do conformismo e, portanto, criticado pelo modernismo e pela esquerda. Mas, não por acaso, também pela postura crítica e desconfiada com a elite escravocrata nacional, que não agradava, sobretudo os adeptos do stalinismo do PCB no Brasil, que procuram a cada grande acontecimento onde estariam os setores progressistas das elites para promover a conciliação e o “desenvolvimento do capitalismo”, suposta "etapa necessária" no manual da evolução gradual dos modos de produção para um dia alcançar a emancipação socialista.

“Só que aí aconteceu um evento que não era literário, mas teve grande influência literária, que foi o golpe de 1964”, diz Schwarz. Agora com consequências nefastas para os trabalhadores, a linha de conciliação e a ausência de um combate sério contra a ditadura (esperando um setor “democrático” das elites se manifestar) levou ao golpe militar sem resistência por parte do PCB. E a lição machadiana se apresentava diretamente no contexto: constatou-se, mais uma vez, que as elites brasileiras não iriam cumprir o papel de “mentoras esclarecidas”, na realidade tendo a propriedade preservada, era perfeitamente possível e mesmo conveniente um regime político repressivo e autoritário.

Trata-se de um momento de virada no pensamento literário brasileiro, de retomar essa forte conclusão machadiana e pensar o Brasil a partir disso, de que qualquer modernização brasileira por parte das elites significará, ao mesmo tempo, o aprofundamento do sentido escravocrata e espoliador do qual empresários e banqueiros são herdeiros.

E como essa conclusão se relaciona com o Brasil atual? Certamente estamos diante de um governo reacionário e a extrema-direita representada por Bolsonaro expressa a sanha mais exploradora e opressiva dos atrasos das elites brasileiras. No entanto, no jogo de ganha-ganha da burguesia, a chapa de oposição foi conformada por Lula junto com Alckmin, um dos principais representantes da política tucana, privatista e repressora em São Paulo, e conformando uma frente ampla que inclui a Febraban e Fiesp (!) e políticos como Simone Tebet e Amoedo – todo um setor que foi linha de frente do golpe institucional de 2016. Esse é o quadro concreto e não se pode escamotear.

De modo que a intelectualidade marxista tem que estar na linha de frente contra a extrema-direita, buscando trazer a luta para o nosso ringue, que são as ruas, utilizando todas as forças para denunciar seu caráter reacionário, questionando a paralisia dos sindicatos e organizações estudantis, de modo que possa se conformar uma vanguarda ativa no movimento operário e nas universidades disposta a luta de rua, e a maior frente única de trabalhadores, estudantes, mulheres, negros, LGBTs, indígenas e todos os setores oprimidos, mobilizada, preparada para utilizar os métodos de mobilização e greve, nesse combate contra a extrema-direita.

Ao mesmo tempo, é vital que nesse movimento não seja tragada a reduzir tudo à fórmula repetida todos os dias na Rede Globo de “defender a democracia”, pois nela estão contidos dois perigos vitais do momento e que a lição machadiana é especialmente importante: não existe “banqueiro menos pior” ou “elite burguesa progressista” no país, de modo que é fundamental que a intelectualidade ajude a não se rebaixar o nível do debate ao ponto de acreditarem que Febraban e Fiesp (ou Alckmin, Simone Tebet, Amoedo) prestarão um “papel progressista contra o fascismo” (!). Nem devemos abandonar a conclusão da impossibilidade da conciliação de classes promovida por Lula e o PT para a classe trabalhadora (já testada e que abriu espaço para o golpe de 2016). Por fim, não devemos perder o foco de que sem a classe trabalhadora organizada e com uma saída independente nas ruas não será possível vencer efetivamente o bolsonarismo. Este não será derrotado como fenômeno social nas eleições e devemos estar a postos, organizando o máximo possível a vanguarda, se preparando para os futuros combates que certamente se colocarão, inclusive que podem se manifestar em distúrbios durante as eleições para os quais devemos estar preparados e agir, nas ruas, sem hesitação.

Ideias de canário

Mas Machado de Assis não oferece apenas uma interpretação inquietante sobre a difícil realidade nacional. A própria conclusão desse grande nome da literatura brasileira nos orienta também no que fazer propositivamente. Não deixar o acúmulo de lições do passado se perder, incluindo conclusões vitais sobre a classe dominante brasileira, é apenas o primeiro passo. Mas é vital que a intelectualidade marxista brasileira, em meio a uma situação difícil, seja disruptiva, imaginativa, aponte para além dos conformismos e da miséria do possível.

No conto Ideias de canário Machado de Assis parte de uma realidade um tanto confusa quanto a nossa. Uma “loja escura, atualhada de cousas velhas, tortas, rotas, enxovalhadas, enferrujadas que de ordinário se acham em tais casas, tudo naquela meia desordem própria do negócio”. Ele está descrevendo uma loja de Belchior, mas poderia ser o Brasil. E eis que ao sair da loja o narrador se depara com uma gaiola “tão velha como o resto, para ter o mesmo aspecto da desolação geral, faltava-lhe estar vazia. Não estava vazia, dentro pulava um canário”.

O narrador é surpreendido por um diálogo com o pássaro, com certa pena, mas se surpreende que o canário, ao contrário, se vê como o dono, contente com sua situação de estar na gaiola, receber água e comida. A ave está presa, mas conclui solenemente que “o mundo é uma loja de belchior, o canário é o senhor da gaiola que habita e da loja que a cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira”.

Não sem advertências, sintetizaremos bruscamente o desenvolvimento do conto em direção a sua conclusão, pois ela é valiosa para o momento que estamos vivendo. A verdade é que o canário é comprado, vai para a casa do narrador, é pesquisado, há debates e longas especulações, vivendo no jardim e gaiola (um pouco mais vasta, mas ainda assim gaiola) da casa dele. Mas num aspecto decisivo do conto, a certa altura o canário consegue fugir da gaiola, e uma busca atrás dele se inicia, quando o narrador ao final do conto finalmente o encontra, “no galho de uma árvore”. Ele pede que o canário volte ao jardim, repuxo e varanda da casa dele, ao que o canário responde: “Que jardim? Que repuxo?”. E conclui o canário de forma espetacular e desconcertante para o dono que queria que ele voltasse a gaiola: “o mundo é um espaço infinito e azul, com sol por cima”.

Muitas vezes a obra machadiana mostra o alargamento das aspirações dos de baixo, dos prisioneiros, dos meninos negros, das domésticas, e a enorme e idissioncrática limitação estúpida do que ele chamava "elite brasileira". O que o narrador acreditava ser o limite no canário não era nada mais do que o que ele desejava ser o limite do canário. Uma elite que busca fazer o espelho dos de baixo ser sua própria imagem, e quase sempre os de baixo quebram esse espelho, isso quando não matam os de cima com os cacos.

O extremo ceticismo de Machado com os de cima é elucidativo, mas nosso grande autor vai além e é inspirador para a vanguarda dos trabalhadores e sua intelectualidade marxista das tarefas colocadas em momentos de enormes retrocessos.

Desgraçadamente o mérito que teve a extrema-direita foi de vislumbrar seu mundo conservador, estabelecer um programa e uma estratégia para tal, e construir uma força social nesse sentido. Do lado de cá, por que o horizonte da esquerda deve ser tão restrito a focar o argumento na concentração da busca do “empresário e banqueiro menos pior” ou o “político burguês amigo”? Uma primeira tarefa de ordem estratégica deveria ser estar lado a lado de todos os que querem derrotar Bolsonaro, mas não semear falsas ilusões e insistir mil e uma vezes mais no alcance transformador que nossa classe trabalhadora, as mulheres, negros, a juventude, podem ter em transformar de cima a baixo a sociedade se estiver organizada e orientada estrategicamente de forma anticapitalista e socialista. Que alguns milhares de estudantes e trabalhadores mantenham essa chama viva e acesa em cada local do país é de uma importância significativa, e mesmo decisiva pensando estrategicamente um capitalismo internacional em crise com novas ameaças de recessão.

Nos levantemos com tudo contra essa extrema-direita reacionária, mas apontando o caminho correto, proclamando nossas ideias, que são da revolução social, da libertação dos trabalhadores e trabalhadoras e da luta contra a opressão. O mundo é um céu azul e infinito, com um sol por cima. Não rebaixemos as aspirações. Retomá-las é parte de um grande papel que a intelectualidade marxista pode cumprir nesses dias, pois só assim se pode estar preparado para os embates no próximo período.


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FOOTNOTES

[1Elaboramos sobre isso, especialmente sobre os aumentos de exploração na pandemia, no texto a seguir: Apontamentos sobre a situação da indústria no Brasil

[2Roberto Schawarz. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Ed. 34, p. 42
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Iuri Tonelo

Recife
Sociólogo e professor. Um dos editores do semanário teórico do Ideias de Esquerda, do portal Esquerda Diário. Autor dos livros "No entanto, ela se move: a crise de 2008 e a nova dinâmica do capitalismo" e "A crise capitalista e suas formas". Atualmente é pesquisador na PPGS-UFPE
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