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MANIFESTO DA FIARI | Transformar o mundo, mudar a vida

Ariane Díaz

Texto publicado originalmente em 01/08/2013 na revista Ideas de Izquierda. Ilustração: Natália Rizzo.

MANIFESTO DA FIARI | Transformar o mundo, mudar a vida

Ariane Díaz

Fins de Abril a fins de Junho de 1938. O cenário é um México ainda desconhecido para os protagonistas. Essas são as coordenadas de um encontro que já se cumprem 75 anos: um encontro entre aquele que estava entre uma das correntes artísticas mais disjuntivas do século XX, da crítica do lugar atribuído à arte no capitalismo; com aquele cuja corrente que simbolizava tanto o espectro do que fora a primeira revolução operária triunfante como da política de enfrentar o processo de burocratização dessa experiência.

“Aqui está o que queremos: a independência da arte – para a revolução; a revolução– pela liberação definitiva da arte”. (Manifesto por uma arte revolucionária independente)

Foi em plena “meia-noite do século” – nos termos de Serge – que León Trotsky, o dirigente revolucionário exilado no único país que lhe dera asilo, e André Breton, referência do surrealismo que visitara o país latino-americano para uma série de conferências, compartilharam e discutiram posições sobre as relações entre arte, capitalismo, política e revolução. As conclusões do encontro, descritas no “Manifesto por uma arte revolucionária independente” que escreveram e que seria o ponto de partida da Federação Internacional da Arte Revolucionária (FIARI), buscavam reagrupar aqueles artistas que não queriam acabar comprometidos, frente à consolidação do fascismo, entre as míseras opções com que os preparativos bélicos pareciam marcá-los: ou aceitar o regime stalinista em sua prática artística e com ela a defesa de sua política cada vez mais evidentemente reacionária, ou a defesa da “arte pura” proclamada pelo liberalismo que lhes prometia a "liberdade" de submeter-se ao mercado e eventualmente também serem chamados às fileiras para defender, frente ao imperialismo fascista, algum imperialismo “democrático”.

De Nadja aos Processos de Moscou

A descrição das consequências da política stalinista para a arte e a cultura na URSS, que Trotsky definira em A revolução traída de 1937 como “um martirológio” e que a nível internacional se plasmara no Congresso de Escritores de 1935 e na proclamação da doutrina do “realismo socialista”, foi o marco que levou a esse encontro. Entretanto, assim como ao modo surrealista fazem elementos forjarem uma constelação, a reunião mexicana traça uma aproximação que, em outras latitudes e ao calor de tempos mais promissores da luta de classes, une Breton ao revolucionário exilado.

Conhecido, sobretudo, por seu questionamento às formas, aos cânones e às instituições artísticas de sua época, a trajetória política do surrealismo vai desde um descontentamento niilista com a sociedade (constitutivo das chamadas “vanguardas históricas” que nas primeiras décadas do século XX punham em questão vários dos pressupostos a respeito da função da arte na sociedade), passando por uma série de rupturas e reconceituações que os aproxima do Partido Comunista Francês primeiro, para romper com este frente à burocratização da URSS (similar ao caminho percorrido por vários intelectuais norte-americanos reunidos na revista Partisan Review, que também participariam dessa reagrupação da FIARI, mas com uma declaração própria).

Breton é quem sem dúvida marca os traços e as reviravoltas desse caminho e, em seu percurso, a figura do revolucionário russo terá lugar. Se em 1925 se mostra maravilhado com a biografia que Trotsky escrevera sobre a juventude de Lenin [1], em 1926 discutirá com Naville a relação entre o surrealismo, que Breton havia definido como “movimento espiritual” revolucionário [2], e a política revolucionária. Se em sua novela autobiográfica Nadja, de 1928, afirma ter entrado na livraria de L’Humanité para comprar “o último livro de Trotsky”, em 1929 propõe aos surrealistas discutir “o destino reservado recentemente a Trotsky”, ainda que a questão seja deixada de lado rapidamente por enfrentamento entre eles. Em 1930, para escândalo do PC Francês, reivindica Mayakovsky que recentemente havia cometido suicídio e cita o escrito por Trotsky sobre o poeta [3].

Contudo, será na década seguinte, golpeado pelos convulsivos acontecimentos da luta de classes e pela luta contra a burocratização da URSS, que Breton encontrará na figura de Trotsky uma alternativa às políticas defendidas pelo PC Francês. Um ano após ser expulso do mesmo, o pacto franco-soviético de 1934 o encontrará nas mobilizações da França, protestando contra a decisão do governo francês de não deixar Trotsky entrar, expulso da Turquia. A política errática e desmobilizadora da Internacional Comunista Stalinizada que permitira o ascenso do fascismo na Alemanha, a traição à Revolução Espanhola e a perseguição de quem dirigira a revolução de Outubro – que o levaria a escrever e assinar, com outros escritores, a declaração “Planeta sem passaporte” em 1934 –, o convenceriam da necessidade de enfrentar diretamente o stalinismo. No mesmo sentido, em 1936 participará do contra processo organizado na França frente aos Processos de Moscou e entre esse ano e o seguinte impulsionará três declarações contra os mesmos [4]. Por mais que a história do surrealismo dê conta de abundantes rupturas nas quais Breton tem sempre um lugar preponderante, o certo é que uma grande quantidade delas corresponde a essas questões políticas prementes mais do que a uma dinâmica centrífuga que costuma ser considerada própria dessas agrupações, baseada em vaidades pessoais (o que não quer dizer que esse não tenha sido às vezes o caso).

Porém, não apenas no terreno político essa paulatina aproximação fundamenta o que em breve seria o “Manifesto...”, como também existe um certo diálogo entre as concepções sobre arte e cultura de Trotsky e aquelas defendidas por Breton. Quando em 1923 Trotsky escrevera os artigos que logo constituiriam Literatura e Revolução, em um contexto pletórico de grupos se enfrentando, experimentação formal e conceitual e, sobretudo, de esperanças em uma sociedade revolucionada, na qual a arte deixaria de ser considerada uma torre de vigia aleijada para confundir-se com a vida, soube apreciar a vontade dos movimentos vanguardistas soviéticos de unir arte e vida (embora não sem críticas às tentativas de instaurar “por decreto” algo que levaria ainda um longo período de transição); a mesma união seria uma ideia motora central do surrealismo, mesmo que com seus próprios meios e uma situação política e social diversa, que Breton expressará em 1935 assim: “Marx disse: ‘transformar o mundo’; Rimbaud disse ‘mudar a vida’, essas duas consignas são para nós uma e a mesma” [5]. Por outro lado, mostrava uma notável abertura, para a época, à experimentação formal e temática desses grupos e, ainda que não estava disposto tampouco a fechar outros caminhos de expressão artística mais tradicionais, discutia contra os exageros polêmicos de alguns e outros de que a arte teria “suas próprias regras” e que apenas podia falhar quando se tentava apontar “os caminhos pelos quais deveria ser arada”.

Esses debates, que em seu tempo foram motivados pelas posições que pretendiam estabelecer um estilo artístico em detrimento de outros ou que avaliavam as diferentes vertentes segundo suas possibilidades de propaganda, uma década depois seriam palavras proféticas quando a burocracia stalinista decretaria o “realismo socialista” como doutrina oficial e perseguiria ou hostilizaria quem não aceitasse esses preceitos. Durante a década de 1930, Trotsky retomará várias dessas definições em seus artigos e intercâmbios acerca da política stalinista, como na carta de 1933 a Glee, Reiss e Morris, em que repete os argumentos de Literatura e Revolução a respeito da política que deveria ter o partido revolucionário em relação aos artistas, ou em carta aos redatores do Partisan Review em 1938, quando Breton estava no México. Por sua vez, Breton e outros participam do Congresso de Escritores Comunistas de 1935 levando uma resolução, que defenderá o próprio Breton em seu discurso no Congresso, reivindicando a independência do artista frente às tentativas de que a produção artística se torne uma mera propaganda do regime da URSS.

Essas confluências no terreno artístico e político desmentem uma leitura, especialmente influenciada por Deutscher, segundo a qual, mesmo tendo grande estima a figura de Trotsky, após sua expulsão da URSS as ideias do trotskismo estavam destinadas à marginalidade e suas lutas posteriores foram tentativas em vão de forçar um destino selado. Que o surrealismo, uma corrente vital política e artisticamente, tenha encontrado ali forças e perspectivas políticas é um exemplo a mais de que o isolamento e a resignação frente ao avanço do stalinismo em um dos momentos mais duros da luta de classes seria mais uma leitura desligada do desenvolvimento posterior dos acontecimentos, convertida em necessidade histórica, do que um dado absoluto da realidade [6].

O manifesto

O encontro, que resultou no “Manifesto”, não esteve isento de discussões e diferenças. Se bem que o próprio balanço de Breton quando chegou à França tenha sido calidamente positivo e o intercâmbio de cartas com Trotsky assim como sua militância na pós-constituição da FIARI o demonstram, esteve atravessado por discussões nas quais Trotsky reclamou a Breton por seu diletantismo para começar o trabalho de redação, discussão finalmente resolvida quando, após uma série de conversas pautadas entre Breton, Rivera e Trotsky sobre “arte e política”, Breton redigiu um primeiro rascunho que foi corrigido pelo revolucionário russo. Segundo relata van Heijenoory, o primeiro a expor essas conversas foi o próprio Trotsky defendendo a tese de que a arte, no comunismo, se “dissolveria” na vida, algo que também havia ensaiado em Literatura e Revolução e que era uma aspiração comum a Breton.

A comparação das distintas versões do manifesto não deixa de ser significativa quanto ao que refletem das posições de ambos. A mais evidente é provavelmente aquela na qual Trotsky modifica o rascunho de Breton que citava quase textualmente sua própria definição de Literatura e Revolução segundo a qual deveria ser garantida “total licença na arte, exceto contra a revolução proletária” [7] e escreve: “Reconhecemos, naturalmente, ao Estado revolucionário o direito de defender-se da reação burguesa, inclusive quando se cobre com o manto da ciência e da arte. No entanto, entre essas medidas impostas e transitórias de autodefesa revolucionária e a pretensão de exercer uma direção sobre a criação intelectual da sociedade, media um abismo. Se para desenvolver as forças produtivas materiais a revolução tem que erigir um regime socialista de plano centralizado, no que diz respeito à criação intelectual, deve mesmo desde o começo estabelecer e garantir um regime anarquista de liberdade individual. Nenhuma autoridade, nenhuma coação, nem o menor rastro de mando!” [8]. Essa modificação reflete as lutas políticas que mediavam entre um e outro texto: se em 1923 dava conta da explosão artística e cultural que a revolução havia incitado, embora tenha deixado claro este último perigo, agregava-se um novo – o stalinismo cerceava a arte de forma igual, mas agora em nome da revolução. Por isso a defesa da independência e da sinceridade da arte consigo mesma deveria ser claramente colocada.

Outras mudanças como a definição da atividade artística mostram também a riqueza de uma discussão que não em todos os casos começou por um acordo [9]. Gerard Roché resumiu em inúmeros artigos [10] várias dessas mudanças, os testemunhos daqueles que estiveram presentes, assim como as cartas trocadas e as declarações de Breton ao voltar à França [11]. Reconstruiu também outros eixos nos quais se enfrentaram, como o intercâmbio sobre Freud, Zolá ou a atitude frente aos costumes religiosos populares.

Cabe destacar que a visita ao México de Breton não foi um passeio cultural-diplomático: a viagem foi precedida por uma campanha stalinista em sua oposição, que foi publicamente desmentida por Frida Khalo e outros em uma declaração pública, “Ao público da América Latina”, e que chegou a fazer temer um ataque físico a Trotsky, a ponto de destinarem a ele uma guarda própria para uma de suas conferências [12]. Por outro lado, o descrédito que podia propagar o poderoso aparato stalinista sobre um escritor, não apenas no México, mas a nível internacional, não era menor. Talvez hoje seja considerada vergonhosa a defesa das posturas stalinistas de muitos escritores da época, mas nesse momento enfrentar Moscou não tinha poucas consequências para os artistas, e ainda é certo que Breton já tinha uma posição ganha, o mote de contrarrevolucionário podia não ser mal avaliado pelos defensores do capitalismo com que havia sempre se enfrentado, e inclusive servir-lhes de revanche, porém por esses mesmos motivos sem dúvida afetava uma produção artística que tinha na denúncia do capitalismo um de seus eixos.

Um projeto inacabado

A FIARI teve durante um ano um intenso trabalho sobretudo por parte de Breton, publicando e intercambiando com artistas no México, nos EUA e na Europa. Entretanto, a guerra mundial, distintas políticas que surgiram dentre os simpatizantes artistas e intelectuais do trotskismo, principalmente todo o afastamento do próprio Rivera e, finalmente, a morte de Trotsky pelas mãos do stalinismo deram fim à experiência.

É de destaque, contudo, que Breton não se desiludiu nem renegou suas posições e alinhamento com Trotsky. Quando em 1953 em uma entrevista via rádio lhe perguntam pelo encontro, não somente o reivindica nos mesmos termos que o fizera em 1938, mas também explica o fim da FIARI não por essas ideias terem perdido sua vigência, mas pela guerra que fez naufragar tanto este como outros projetos revolucionários.

Em 1960, quando Jrushchov visitava Paris e as bandeiras da URSS adornavam as ruas, Breton recorda o testamento de Trotsky e envia saudações à Natalia [13]. Embora nunca tenha se colocado como um revolucionário profissional, soube manter uma coerência em suas posições que por esses anos de decepção e retrocesso não foram tão abundantes.

Hoje não estamos, claro, em uma situação como a que marcou esse encontro, apesar de uma crise histórica do capitalismo anunciar uma vez mais misérias para as massas e expressões fascistas assomarem na Europa, um dos epicentros da crise; o stalinismo foi derrubado, mas não porque as massas tenham acertado as contas com ele, e sim para abrir espaço ao "triunfalismo capitalista" que vivemos nas últimas décadas do século XX que reduziu a arte e a cultura ao velho conhecido regime mercantil, aperfeiçoado e agigantado. A demanda com que se encerrava o “Manifesto” segue ainda colocada. Estarão se forjando na resistência à crise capitalista aqueles que podem levar essa tarefa a cabo?

Tradução: Vitória Camargo

[1] Trotsky, “Lenin” em Breton-Trotsky, Por uma arte revolucionaria independente, San Pablo, Paz e Terra, 1985.

[2] Nadeau, Historia del surrealismo, Barcelona, Ariel, 1975.

[3] Ibídem, pp.164 y 182.

[4] “Declaraçao lida por Breton no meeting de 3 de setembro de 1936”, “Declaraçao de Breton no meeting do P.O.I. en dezembro de 1936” e “Discurso de Andre Breton a respeito do segundo proceso de Moscou” em Breton-Trotsky, op. cit.

[5] Breton, “Position politique du surréalisme”, citado em Martin Jay, Marxism and totality, Berkeley, University of California Press, 1984.

[6] Por outro lado, permite questionar leituras como as de Baruch Knei Paz (em The social and political thought of Leon Trotsky, Oxford, Oxford UniversityPress; 1980) ou de Alan Wald (em Hillel Ticktiny Michael Cox (eds.),The Ideas of Leon Trotsky, PorcupinePress, London, 1995), que destacam o pouco conhecimento de Trotsky das obra de Breton (algo que menciona seu secretario Jean van Heijenoort em seu livro Con Trotsky de Prinkipo a Coyoacán, México DF, Nueva Imagen, 1979) como uma prova de que o encontro, por parte de Trotsky, apenas refletiria a oportunidade de por o surrealismo ao seu lado, o que na realidade não apreciava artisticamente.

[7] Trotsky, Literatura y revolución, Bogotá, Crux, 1989.

[8] Trotsky, OEuvres, Tomo 18, Francia, Institut Léon Trotsky, 1984, p. 198.

[9] Analisamos essas diferenças na Revista ramona 83, agosto 2008.

[10] Roché, “Introduçâo” a Breton-Trotsky, op. cit., e Roché, “Trotsky, Breton y el manifiesto en México”, Estrategia Internacional 7 e 8, 1998.

[11] Breton, “Visita”, em Quatrième Internationale 14/15, novembro-dezembro de 1938, digitalizado e traduzido pelo CEIP León Trotsky, http://ceipleontrotsky.org/

[12] Van Heijenoort, op. cit.

[13] Breton, “Entrevista de André Breton a André Parinaud” e “Longe de Orly” em Breton-Trotsky, op. cit.


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