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Hegemonia às avessas e o avesso da hegemonia

Danilo Paris

Hegemonia às avessas e o avesso da hegemonia

Danilo Paris

Enfim chegamos ao dois de outubro, eleição considerada a mais importante da história recente. Não porque nela os problemas da maioria da população trabalhadora irão se resolver, mas porque seus resultados vão compor as tendências políticas e sociais dos próximos anos. Portanto, divulgados os resultados eleitorais, e as reações dos diferentes setores políticos, será fundamental uma análise mais detida dos próximos capítulos do conturbado devir que irá se desenhar.

Contudo, por tudo que se apresentou até o momento, é possível extrair reflexões que conectem o passado e o presente, para chegar a apontamentos iniciais sobre as contradições que tendem a se aprofundar no próximo período.

É praticamente certo que Lula será eleito para seu terceiro mandato, ainda que permaneça a dúvida se a disputa irá se encerrar no primeiro ou segundo turno. Considerando apenas os mandatos de Lula, o primeiro, o segundo e um eventual terceiro mandato, cada um deles tem seus contornos particulares. As eleições de 2002, marcada por um maior receio da novidade que era Lula à frente do executivo, e as eleições de 2006, com um Lula já gabaritado como um governo mantenedor dos pilares econômicos herdados de FHC, são dois momentos de uma morfologia política que ascendeu como a representação dos mais pobres, e permaneceu como um administrador eficiente do capitalismo brasileiro. Ainda que um momento não exclui características do anterior, o curso da administração Lula conformou novas características hegemônicas, que progressivamente foram se moldando nas relações entre as classes sociais, e que por fim culminou naquilo que se convencionou denominar de lulismo.

É nesse contexto, das eleições que elegeram Lula para seu segundo mandato, que Francisco de Oliveira ensaiou um novo conceito para explicar essa nova hegemonia que estava se desenhando na política brasileira. Tomando como referência as elaborações de Gramsci, o sociólogo brasileiro definiu como uma "hegemonia às avessas" a política que levou o PT a se reeleger à presidência.

O comunista sardo concebia a hegemonia como direção política e a busca da organização do consenso no conjunto da sociedade. Inspirado nas concepções de Lênin, Gramsci expandiu o conceito para pensar as formas hegemônicas nos Estados chamados ocidentais. Neles essas formas se davam através de uma combinação entre coerção e consenso, encontrando-se em uma relação de equilíbrio em momentos de “normalidade” das democracias burguesas. Ou seja, uma classe para ser dominante, deveria ser dirigente das classes aliadas e dominante das classes adversárias.

Voltando às reflexões de Francisco de Oliveira, segundo ele, nesse outro Brasil - quando Lula derrotou seu agora aliado de chapa Geraldo Alckmin - existia um conjunto de aparências que forneciam uma ilusão de que os dominados dominavam, quando na verdade o governo dirigia um capitalismo ávido por uma exploração desenfreada. Através do Bolsa Família e da política de facilitação e expansão do crédito, havia uma sensação social de melhora gradativa, ao passo que os grandes capitalistas seguiam enriquecendo como nunca. Essa era a arte do lulismo, apoiado no prestígio da origem popular de sua principal liderança, a relação orgânica do PT com o movimento de massas e o ciclo de crescimento da economia mundial, os dois primeiros mandatos de Lula forneceram um capital político com reservas que permanecem até os dias de hoje.

Nas profundezas desse país se espraiou o trabalho precário, o hiper endividamento das famílias, o fortalecimento do agronegócio e das igrejas, da casta judiciária e militar e o advento das chamadas globalplayers. Foi esse o contexto no qual Francisco de Oliveira mostrou como a aparência do consentimento se transformava no seu avesso. Parecia que não eram mais os dominados quem consentiram na sua própria exploração, mas os dominantes que aceitaram ser politicamente conduzidos por um partido e uma liderança oriunda de outra classe, à condição de que a “direção moral” nunca questionasse a forma da exploração capitalista. Em síntese, era a hegemonia neoliberal exercida por um partido que se dizia “dos trabalhadores”, daí uma “hegemonia às avessas".

O Brasil de então, não é mais o mesmo, e as condições que permitiam essa “hegemonia às avessas” são outras. Quando enfim os efeitos da crise econômica internacional se fizeram mais fortes no país, as classes dominantes resolveram acabar com o mundo das aparências da conciliação de classes e formular novas representações políticas. As condições objetivas que propiciaram o sucesso do lulismo haviam chegado em um esgotamento. A virtude se transformou em defeito, e era necessário uma política econômica de brutal austeridade e contra-reformas, sem a contrapartida das concessões, mesmo que pequenas, que marcaram uma parte dos governos do PT.

Assim, a crise capitalista exigia um novo condottiere para o capitalismo brasileiro. Temer e Bolsonaro foram duas expressões dessa nova política de classe. O último não era o plano inicial, quando então havia uma predileção por Geraldo Alckmin, mas que diante das circunstâncias desempenhou, com relativo êxito, o papel esperado pelas classes dominantes. Relativo porque apesar de implementar um pacote de ataques ultraconcentrados, não conseguiu criar uma nova forma hegemônica de poder. Ao contrário, a operação Lava Jato, o golpe institucional e o governo Bolsonaro aprofundaram a crise de dominação burguesa, que havia irrompido nas Jornadas de Junho de 2013.

Fruto da crise de hegemonia, fortaleceram-se poderes sem voto no regime político, que haviam ganhado posições nos anos de governo do PT. Na ausência de fortes partidos orgânicos que conseguissem encarnar as necessidades econômicas do capitalismo em crise, ganharam força os setores militares e da casta judicial. Cada um ao seu modo, e através de métodos bonapartistas, foram se tornando atores com peso cada vez maior na esfera pública das disputas políticas. Duas vias autoritárias de buscar a resolução da crise de hegemonia fortalecendo o elemento força, mas que sempre foi débil em conquistar o consentimento.

A forma, e circunstâncias, na qual se formatou o governo Bolsonaro adicionaram ingredientes maiores à instabilidade de uma crise de dominação que continuava a se aprofundar. A necessidade de mobilizar sua reacionária base social de forma mais ou menos permanente para as disputas no interior do regime foi um deflagrador de crises que existiram em alta intensidade nos últimos quatro anos. No oposto da estabilização, Bolsonaro necessitou da instabilidade para poder barganhar e negociar diante dos diversos outros poderes que se enfrentaram publicamente em diversos episódios da prolongada crise política.

Há motivos suficientes para acreditar que um novo governo Bolsonaro seria ainda mais instável, e precário, que o primeiro. A começar pelo desgaste que usualmente afeta os segundos mandatos de todos aqueles que se reelegem. O recurso, tradicional, de remeter os problemas do país ao governo anterior é uma política, por óbvio, que perde o efeito.

Além disso, o bolsonarismo é uma forma política e social particular. A força disruptiva que o fez chegar ao poder não pode ser passivizada pelos recursos tradicionais da democracia burguesa. Envolve estratos sociais e frações de classe que precisam do enfrentamento. São a expressão mais radicalizada do programa burguês da super exploração, contornada por valores reacionários que fornece a argamassa que dá coesão aos setores heterogêneos de sua base social. Latifundiário, neopentecostal, miliciano, varejista, garimpeiro e militar se unificam em torno da agressividade de uma liderança que promete nunca abandonar seu rebanho, enfrentado-se contra tudo e contra todos, e por isso, não pode buscar o consentimento entre os demais. De certo modo, Bolsonaro foi o governo do “avesso da hegemonia”, incapaz de consolidar composições de classe e consentimentos em setores mais ampliados da sociedade civil e do Estado, sob a pena de perder a base social que lhe conferiu sustentação e o alçou ao cargo de presidente.

Essas características levaram frações poderosas do capitalismo brasileiro a considerar que um segundo mandato de Bolsonaro poderia ser a travessia do Rubicão para uma instabilidade perigosa. A pandemia, o acirramento de conflitos internacionais, a tendência ao agravamento da crise econômica e o estopim de revoltas e rebeliões em diferentes países conformaram um tabuleiro onde um movimento arriscado poderia colocar tudo a perder. O conjunto da obra econômica e política do golpe institucional, isso é, a enorme reconfiguração jurídica, institucional e social, que promoveu um volume de retirada de direitos inédito desde a redemocratização, precisava antes de tudo, ser mantida. Um estopim das classes subalternas e exploradas, diante do esgarçamento do tecido social tensionado por uma quadro de miséria e super exploração generalizada, poderia lançar aos ares tudo aquilo que as classes dominantes precisam preservar.

Nessa tensão, foi necessário buscar uma outra hegemonia. Não mais o lulismo, em seu sentido original, que não encontra condições para tanto, tampouco o bolsonarismo que nem pode ser considerado como tal. A alternativa, ou a busca dela, foi unificar os antigos pólos do regime de 1988 através da chapa Lula-Alckmin e a Frente Ampla que a compreende. Sua amplitude, vale dizer, é produto da urgente e necessária busca por novos ensaios de hegemonia que possam conferir maior estabilização a um regime político que não cessa em se transformar. Não obstante, a funcionalidade da dita esquerda, que embarcou na Frente Ampla foi fundamental para transmitir a imagem da "união de todos", do capital financeiro ao PT, chegando ao PSOL-Rede.

Através disso se insere o apoio de importantes e poderosas frações de classes burguesas no apoio à chapa Lula-Alckmin. Seu momento de maior resolução, foi visto no dia 11 de agosto quando setores, como a Fiesp e a Febraban, pronunciaram-se de maneira mais categórica em oposição à Bolsonaro. Há uma semana das eleições, Lula jantou com 70 empresários que reuniam, segundo a imprensa, o PIB do Brasil. Entre eles, antigos bolsonaristas que diante das circunstâncias buscam se relocalizar no novo arranjo político que começou apresentar formas mais definidas.

O compromisso de que a chapa Lula-Alckmin manteria intacto o conjunto das reformas e privatizações aprovadas nos últimos anos, foi a senha final para que amplos setores burgueses embarcassem na Frente Ampla. Como o legado de Bolsonaro é visto por amplos setores sociais como pura destruição, Lula poderá fazer um discurso de “reconstrução nacional”, e para isso a pactuação entre setores antagônicos, o inclui solicitar grandes doses paciência para as lentas mudanças que devem demorar a ocorrer em sua gestão. Entre os estratos médios e do funcionalismo, esse discurso pode servir para conter o ritmo de maiores descontentamentos e questionamentos. No entanto, entre os setores mais pobres que já estão em uma situação precária a margem para paciência pode não ser muito elástica.

O comparativo entre as duas gestões também produzirá seus efeitos. Bolsonaro é a variante política que buscou resolver a crise de hegemonia através do reacionarismo e da polarização permanente. Devido a uma situação de baixa intensidade da luta de classes - produzida também pela forte contenção exercida pelas burocracias sindicais - uma alternativa desse tipo é momentaneamente disfuncional às classes dominantes. Lula-Alckmin é o outro polo da busca da resolução do mesmo problema, contudo, acentuado as características da busca pelo consenso, ou em outras palavras, da "reconciliação nacional”. Por isso, a ênfase na sua capacidade no diálogo, para assim conseguir compor com os diferentes setores e colocar o país de volta ao trilhos.

No entanto, diferente dos dois primeiros mandatos, e em especial do segundo, Lula não poderá contar com os recursos em abundância que possibilitam buscar o consentimento entre os subalternos, com concessões que, ainda que limitadas, foram fortes o suficiente para lhe garantir apoio e uma aprovação histórica. Naquele momento, mesmo mantendo os pilares da política macroeconômica neoliberal, conseguiu infundir uma marca de inclusão social em seu governo, sustentado por uma sensação de melhora das condições de vida.

Por tudo isso, ao que tudo indica, o mandato que se iniciará em 2023 não conseguirá produzir os mesmos efeitos da “hegemonia às avessas”. Difícil, para não dizer impossível, a constituição de uma outra hegemonia dentro de um contexto econômico adverso e no interior de um regime político que nos últimos anos se mostrou tão avesso aos consentimentos e ávido por coerções.


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Danilo Paris

Editor de política nacional e professor de Sociologia
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