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Gramsci, a ação direta e o Estado

Juan Dal Maso

Ilustração: Alice Cauma | @alicecauma.arte

Gramsci, a ação direta e o Estado

Juan Dal Maso

Sobre Leituras gramscianas: história, política e classes sociais, de Leandro Galastri.

Leandro Galastri é professor de Ciência Política na Unesp de Marília, editor do blog marxismo21 e da revista “Praxis e Hegemonia popular”, publicada pela International Gramsci Society – Brasil (IGS-B). Foi secretário-geral da IGS-B (2017-19) e é autor de Gramsci, marxismo e revisionismo (Autores Associados, 2015). Leituras gramscianas: história, política e classes sociais acaba de ser publicado esse ano pela editora Lutas Anticapital.

Esse livro aborda diversas problemáticas relacionadas ao pensamento de Gramsci, a partir de um conjunto de artigos publicados previamente em diferentes revistas, reordenados e trabalhados como parte de um só texto, cujo objetivo é pensar o legado teórico de Gramsci, a fim de desenvolver uma perspectiva de luta política extrainstitucional.

O prólogo de Marcos Del Roio destaca a perspectiva levantada pelo autor e a atualidade de temáticas gramscianas como a de hegemonia, bloco histórico e relações de forças, assim como a questão do americanismo e sua continuidade sob a ofensiva neoliberal através da ideologia do consumo.

O livro tem oito capítulos e uma seção final de conclusões gerais. Neste artigo faremos uma breve resenha para comentar, ao final, algumas questões que são levantadas para a discussão, com base nessa intervenção de Galastri que, como tentaremos mostrar, é mais do que oportuna em um momento como o atual.

Gramsci e a questão político-militar

O primeiro capítulo se intitula “Materialismo histórico, Gramsci e violência política”. Além de as questões levantadas nele serem muito importantes, é também uma boa estratégia para captar a atenção do leitor, pois apresenta, na minha opinião, uma das principais contribuições do livro ao mesmo tempo em que evidencia a intenção polêmica do autor sobre as leituras que associam Gramsci exclusivamente com uma construção gradual de hegemonia cultural.

Galastri retoma a questão da violência e sua relação com o Estado na tradição marxista, colocando em discussão as contribuições de Engels, Lênin e Rosa Luxemburgo.

Destaca que, em relação a Gramsci, o descaso com seu tratamento sobre a questão da violência, mais ou menos sistemático na academia, é um importante obstáculo para a compreensão da teoria gramsciana de conjunto e, especialmente, em relação aos temas do Estado e de hegemonia (p.39).

Apelando para os trabalhos de Eros Fracescangeli e outros autores, junto com os escritos gramscianos do período, Galastri reconstrói simultaneamente a história da conformação dos Arditi del Popolo e os posicionamentos de Gramsci sobre sua ação e sobre como responder à violência fascista. Nesses escritos, Gramsci apontou para a afinidade entre a prática dos Arditi del Popolo e o programa de constituição de uma milícia operária e destacou a importância da resistência armada ao avanço do fascismo.

Existem diferentes visões sobre a posição de Gramsci em relação aos Arditi del Popolo. Galastri retoma as expressões de Gramsci em que manifestou afinidade com a organização, mas Fracescangeli coloca que, destacando o posicionamento de Gramsci e do L’Ordine Nuovo como substancialmente positivo sobre os Arditi del popolo, Gramsci nunca enfrentou abertamente a política sectária que o comitê executivo do PCd’I assumiu contra eles, sob a direção de Bordiga [1].

Além dessa questão pontual, na reconstrução de Galastri, a importância atribuída por Gramsci à questão da violência revolucionária aparece com claridade. Isso também pode ser verificado pelo testemunho de Athos Lisa sobre as conversas com Gramsci na prisão, em que informou à direção do partido:

Sobre o “problema militar e o partido” [Gramsci] estabeleceu os seguintes conceitos: a conquista violenta do poder exige do partido do proletariado a criação de uma organização de tipo militar que, apesar de sua forma molecular, se difunda em todas as ramificações da organização estatal burguesa e seja capaz de solapá-la e desferir-lhe golpes no momento decisivo da luta. Mas o problema da organização militar deve ser entendido como parte de uma ação mais ampla do partido, no sentido de que essa atividade particular presume uma estreita interdependência com toda a ação do próprio partido e com o desenvolvimento ideológico dele. Essa forma particular de atividade não deve ser considerada como uma parte puramente técnica, sendo o fator político o elemento fundamental que determina seu grau de eficiência e sua capacidade. Qualidades pouco comuns são requeridas dos elementos encarregados de dirigir essa atividade que, em certo sentido, estão em relação com o nível ideológico do partido. A revolução proletária, disse ele, implica o deslocamento das relações de forças militares em favor da classe trabalhadora. Porém, relações de forças militares não devem ser entendidas exclusivamente como o fato de possuir armas ou contingentes militares, mas a possibilidade do partido paralisar as principais molas do aparato estatal. Por exemplo: uma greve geral desloca as relações de forças militares em favor da classe trabalhadora. Como condição indispensável para a guerra civil, considera necessário ter um exato conhecimento das forças inimigas. Sobre as forças militares italianas, examinadas globalmente, listou o seguinte: o contingente militar e os corpos especiais, como os carabineiros, a milícia, a PS e os oficiais reformados. Ele atribuiu grande valor a esses últimos corpos como força militar e política. Catalogou os trens blindados como um dos mais importantes meios técnicos ofensivos do adversário, levando em conta a conformação geográfica da Itália. Um trem blindado, disse, que percorre a costa do litoral adriático ou do litoral jônico imobiliza e pode semear terror em populações inteiras, onde o partido não criou uma organização militar capaz de opor esses poderosos instrumentos da burguesia, toda uma ação paralise em parte sua eficiência.

Galastri retoma as elaborações de cárcere de Gramsci sobre a questão militar e do arditismo e mostra que a crítica do arditismo como método oposto à de uma política de massas não significa um abandono da ação direta. Sem entrar em muitos detalhes, pode-se afirmar que, nos Cadernos de cárcere, Gramsci questiona o arditismo como uma estratégia que pretende substituir o papel das massas, mas acha mais adequado se os arditi “fizessem parte de um organismo complexo e regular” (C8 §244), seja um partido ou movimento de massas. Isso está ligado, por sua vez, às reflexões sobre a necessidade de articular guerra de posição e de manobra e os três níveis de relação de forças, nos quais o militar é mais político-militar que técnico-militar. De qualquer forma, as críticas de Gramsci ao arditismo, como bem aponta Galastri, não são uma crítica da ação político-militar, mas de sua falta de vinculação com uma estratégia em que as massas sejam protagonistas.

Em suma, a contribuição deste primeiro capítulo é fundamental para resgatar a importância que a violência e a questão militar têm na concepção gramsciana de política.

Relações de força e revolução passiva

O segundo capítulo, intitulado “Estrutura, superestrutura e a análise política da história”, retoma as reflexões gramscianas sobre a questão da relação entre estrutura e superestrutura e a construção de um modelo alternativo de Gramsci com a análise de situações e relações de força. Galastri explica, tomando a referência de Ludovico Silva, como o fato de transformar uma metáfora arquitetônica como a de estrutura e superestrutura em uma “teoria científica” afetou nas interpretações economicistas do marxismo. Ao contrário dessas interpretações, Gramsci toma a imagem da estrutura e da superestrutura como uma metáfora e define as chaves de leitura do famoso “Prólogo” à Contribuição à crítica da economia política em novos termos. Por um lado, aponta que é na superestrutura que os seres humanos tomam consciência dos conflitos existentes na estrutura, de modo que a ideologia deixa de ser exclusivamente falsa consciência e constitui um elemento necessário de um movimento histórico revolucionário. Por outro, Gramsci avança em um modelo de análise que inclui os níveis de estrutura e superestrutura, mas libertando-os da interpretação literal da sociedade como um edifício, através da problemática das relações de forças. Retomando Burgio e Frosini, Galastri reflete sobre como a reelaboração da problemática de estrutura e superestrutura está associada a questão da traduzibilidade das línguas e da própria traduzibilidade entre teoria e prática, de modo que a análise da realidade econômico-social passa a fazer parte de um pensamento político prático, vinculado com a luta pela hegemonia e, portanto, com a análise das relações de forças e, sobretudo, com as iniciativas destinadas a modificá-las.

Da releitura do “Prólogo” de 1859 Gramsci deriva também a conceituação da questão da revolução passiva (cujo exemplo histórico primário é o Risorgimiento). O capítulo 3 inicia com esse tópico, intitulado “História, revolução passiva e jacobinismo”. Galastri substitui as análises de Kanoussi e Mena sobre a questão da revolução passiva, chegando a uma definição geral que permite compreender esse fenômeno, especialmente durante o século XX (na esteira do americanismo-fordismo):

A revolução passiva é principalmente, em sua profundidade material, um mecanismo de reação das classes dominantes à contradição permanente da relação entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção que as encerram numa dada formação social capitalista. Esta contradição se manifesta, em sua forma mais concreta, na produção crescente face ao consumo permanentemente restringido. Incontornável se faz, assim, a presença do Estado num processo de mediação que necessita conferir às massas trabalhadoras, ou, pelo menos, a uma parcela sua, um poder de compra que sustente a produção capitalista, mas que ao mesmo tempo crie práticas de consumo e vida que se mantenham no horizonte da concepção de mundo burguesa.

O autor associa essa categoria com uma tentativa de estabilização do bloco dominante, um processo de modernização sem revolução que busca desagregar as classes subalternas e que, por sua vez, implica que a guerra de posições surge não de uma decisão da classe trabalhadora de lutar desse modo, mas de uma situação de equilíbrio entre as classes. Retomando as próprias reflexões gramscianas, entre elas as do C15 §11, e as de Nicola Badaloni, Gastrini nos lembra (p. 112) que:

...a guerra de posição não é uma tática livremente escolhida pelas classes subalternas, mas surge numa situação de equilíbrio de forças que aquelas classes não podem evitar. Este equilíbrio, por sua vez, também não é desejado pelas classes dominantes, mas imposto a elas pelo desenvolvimento da cisão das classes subalternas em relação à concepção de mundo dominante. A cisão se estabelece e se desenvolve quando a nova classe fundamental se organiza conscientemente, dirigindo outras classes aliadas no sentido de assumir o controle político das forças produtivas e a elaboração de nova concepção de sociedade. O desenvolvimento de uma situação de equilíbrio de forças em tal momento histórico é uma possibilidade concreta, onde as velhas classes dominantes lançam mão do processo de revolução passiva para impor ou tentar levar a desagregação ao conjunto das classes subalternas, para forçá-las ao recuo político e à fragmentação de sua unidade estratégica. Essa é uma ameaça dinâmica e permanente que, quando bem-sucedida, faz com que as posições alcançadas e duramente mantidas pelo bloco das classes subalternas sejam progressivamente perdidas e sua coesão desmantelada, mediante o deslocamento do equilíbrio a favor das velhas classes dominantes, levado a efeito pela tática da revolução passiva.

A reflexão sobre a revolução passiva e seu caráter conservador é consubstancial com a revalorização do jacobinismo praticada por Gramsci nos Cadernos de cárcere, que Galastri retoma, marcando afinidades e diferenças com a perspectiva de Sorel e recuperando o vínculo entre jacobinismo, revolução e hegemonia. O capítulo termina com uma exposição da problemática do bloco histórico em Sorel e em Gramsci, apontando a diferença da perspectiva gramsciana com o sindicalismo revolucionário, mas também a importância dada por Gramsci à autoeducação da classe operária através da luta de classes e da experiência da produção, retomando a “moral dos produtores”. De modo geral, Galastri aponta a importância do diálogo com Sorel para pensar os problemas elaborados por Gramsci.

Viagem à segunda pós-guerra

O capítulo 4, “Gramsci, Althusser e as formas de um diálogo possível”, retoma a relação entre Althusser e Gramsci, propondo alguns eixos para repensá-la (não excludentes em relação a outros possíveis). Leva em consideração os aspectos mais evidentes, ou seja, aqueles ligados às afinidades entre a reflexão gramsciana sobre os aparatos hegemônicos e as elaborações de Althusser sobre os Aparatos Ideológicos de Estado (AIE), bem como reflexões sobre Maquiavel para pensar a prática e a concepção marxista da política.

Mais chamativo é a exploração realizada por Galastri entre a concepção historicista de Gramsci aplicada ao próprio devir do marxismo e a intervenção de Althusser sobre o marxismo como “teoria finita”:

Outro tema pelo qual é possível vislumbrar uma aproximação entre as reflexões de Gramsci e Althusser é a abordagem do marxismo que o toma como historicamente determinado, ou seja, como um pensamento adequado a seu próprio tempo e sem predestinação histórica. Trata-se da leitura do marxismo como uma concepção que está plenamente sujeita à superação histórica, uma vez superadas as condições materiais e simbólicas que a levaram à existência. Para Althusser, essa tese é definida pela ideia do marxismo como “teoria finita”. Para ele tal expressão significa afirmar, essencialmente, que a teoria marxista é completamente distinta, diferente de qualquer filosofia da história que pretenda abranger todo o devir da humanidade pensando-o efetivamente, e que se proponha a definir, antecipadamente e de forma positiva, um objeto como o comunismo. A teoria marxista, segundo o autor francês, deve deixar de lado a tentação de se tornar uma filosofia da história (tendência que dominou, por exemplo, a Segunda Internacional). O marxismo está inscrito na fase atual existente, é limitado a essa fase. É a partir da “sociedade atual que pode ser pensada a transição (ditadura do proletariado, sob a condição de não se desvirtuar instrumentalmente esta expressão) e a extinção do Estado”.

Galastri vincula essa reflexão com as elaborações gramscianas sobre a historicidade da filosofia da práxis. Essa elaboração é muito interessante porque é uma maneira de ressaltar, além da busca de afinidades em si, que no próprio Althusser havia um componente de historicismo, por mais que o mesmo tivesse mantido a crítica do historicismo ao longo de todas as etapas de suas reflexões sobre Gramsci. Que o marxismo seja uma “teoria finita” sugere uma afinidade fundamental com a ideia gramsciana de que o próprio marxismo está sujeito ao processo de expiração de todas as filosofias e ideologias, neste caso particular em relação direta com a luta pelo comunismo e a superação da sociedade de classes e do Estado. Isso, por sua vez, introduz uma interferência na concepção althusseriana da história como história conceitual.

No capítulo 5, “Gramsci, Poulantzas e a transição socialista”, Galastri realiza uma operação de leitura ousada: estabelece um diálogo entre Gramsci e Poulantzas que reconhece as afinidades entre as análises do autor greco-francês e o comunista sardo sobre a temática do Estado integral, mas sem defender a perspectiva eurocomunismo de Poulantzas. Talvez por força do hábito, por geralmente serem utilizados como uma justificação de um para o outro, Poulantzas e o eurocomunismo ou as variações de mudança do Estado burguês a partir de dentro, parece uma leitura pouco usual. Porém, ao longo de sua argumentação, Galastri marca claramente os limites do próprio Poulantzas e as vias possíveis de um diálogo crítico com suas elaborações, sem adotar as posições eurocomunistas.

O capítulo 6, que intitula-se “Fordismo, proibicionismo e dessublimação repressiva: a questão sexual no capitalismo do século XX em Gramsci e Marcuse” oferece uma interessante comparação entre as leituras de Gramsci e Marcuse sobre a arregimentação da vida cotidiana e especialmente dos costumes no terreno da sexualidade por parte do capitalismo, comparando as posições de Gramsci sobre o americanismo e a política de arregimentação da vida privada dos operários e a leitura de Marcuse sobre a mesma questão como parte das tendências à integração dos sujeitos no capitalismo do pós-guerra (e, por extensão, do capitalismo atual). Ao final do capítulo, analisa a situação do movimento operário na Europa, que difere das revoltas latino-americanas das quais surgiram governos “pós-neoliberais”:

Embora a capacidade de consumo e a estrutura social de bem-estar encontrem-se cada vez mais ameaçadas pela implantação progressiva de medidas político-econômicas neoliberais após a queda do Muro de Berlim e a dissolução da União Soviética, a percepção da profundidade política dessas mudanças não parece ainda ter alcançado o operariado, ou então não têm criado em seu seio novos desejos de liberdade. Restaria a possibilidade, aventada por Marcuse, de verificar o potencial revolucionário de outras classes e frações de classe que não estritamente o operariado fabril, opção que aguarda iniciativas político-teóricas de novo tipo por parte do pensamento marxista.

Essa conclusão me parece pouco fundamentada (sem prejuízo de que a classe operária atual não pode ser reduzida ao proletariado industrial). Por um lado, porque as lutas do movimento operário na Europa (França, 1995) marcaram um ponto fundamental de resistência à ofensiva neoliberal e ressurgiram periodicamente, questionando a precarização da vida, nos últimos anos, tanto na França quanto na Itália com novos movimentos operários de composição multiétnica, assim como mais recentemente na Inglaterra, inclusive com métodos radicalizados como a recente greve das refinarias na França. Mas a intervenção do movimento operário não se reduz à Europa, como se pode ver no processo da “Geração U” nos Estados Unidos, no Irã e em outros países. É verdade que esses processos não tem um programa revolucionário explícito, mas tampouco tiveram as revoltas latino-americanas no final dos anos ‘90, nem as recentes revoltas que atravessaram o mundo antes da pandemia (nas quais o movimento operário tradicional atuou diluído na multidão). Cabe lembrar que a própria tese de Marcuse foi fortemente questionada pelo processo de 1968, no qual o movimento operário teve um papel fundamental, tanto nos centros imperialistas como na periferia.

Classes sociais e grupos subalternos

No capítulo 7, “Classes sociais e grupos subalternos: distinção teórica e aplicação política”, Galastri aborda a questão das classes sociais e dos grupos subalternos, retomando as intervenções de Guido Liguori e outros autores, para apontar que a categoria de grupos subalternos implica um enriquecimento da questão de classe. Tomando e comparando diversas perspectivas, entre elas as de Marx, Thompson, Bensaïd e Poulantzas, levanta uma discussão sobre a formação de classe.

Galastri destaca que a concepção de Gramsci não supõe nem que as classes são entidades empiricamente delimitáveis, nem lugares ocupados por indivíduos em uma estrutura que os transcende. Propõe-se explorar os alcances da elaboração gramsciana sobre o tema, apontando seus múltiplos níveis (p. 196-197):

Gramsci estuda os subalternos mediante três tipos de abordagem: o desenvolvimento de uma metodologia de historiografia subalterna; a produção em si de uma história das classes subalternas; a elaboração de uma estratégia política de transformação apoiada no desenvolvimento histórico e na existência dos subalternos. Por meio dessa tripla abordagem, Gramsci cria um nexo de convergência entre vários conceitos seus.

Retomando as relações entre a noção de “grupos subalternos”, que é mais abstrata e mais ampla que a de “classes sociais”, Galastri explora estes três níveis das reflexões gramscianas, indo da reflexão historiográfica à política, esfera na qual se conformam as classes, (p. 202):

Minha hipótese é que, se as classes se formam na luta política, elas se formam a partir de frações dos grupos subalternos que assumem a iniciativa consciente de questionar a hegemonia burguesa em algumas de suas dimensões.

Embora o percurso realizado por Galastri permita repensar a questão das classes subalternas, até que ponto é um conceito de classe ou de grupo, em que medida a subalternidade é uma condição social ou política, e a diferença entre a constituição subjetiva da classe dominante (unificada através do Estado) e das classes subalternas, a hipótese de que as classes se formam na luta apresenta diversos problemas. O problema principal dessa posição é que confunde a formação com a organização e, nesse plano, confunde a questão das relações de forças objetivas, tidas como válidas nos capítulos 1 e 2 do livro. Isso é acompanhado da afirmação de uma relação necessária não demonstrada entre o reconhecimento da existência objetiva da classe trabalhadora pelo seu papel na produção e a afirmação de que esse papel implica automaticamente uma ação política consciente por parte do coletivo de trabalhadores, o qual levaria ao economicismo. A própria posição de Gramsci mostra que se pode reconhecer um nível de relações de forças sociais objetivas sem por isso desconhecer as complexidades do processo de subjetivação política. Por sua vez, se a classe se forma por frações de distintos grupos subalternos (que poderiam ter, portanto, distintos pertencimentos de classe), o conceito de classe poderia terminar se desligando da crítica marxista da economia política a algum tipo de conceituação de grupo ou bloco com maiores ambivalências que o conceito de classe. Coincidimos com Galastri na centralidade da luta de classes para a própria autoeducação e auto-organização da classe, mas a própria luta de classes implica posições objetivas de classe.

O capítulo termina com uma explicitação de porque os estudos subalternos terminam embelezando e eternizando a condição de subalternidade, mediante um particularismo populista.

Contraponto e contratempo

O capítulo 8, “Contraponto e contratempo como contribuições metodológicas para uma historiografia dos subalternos”, põe em discussão as noções de contraponto (utilizada por Edward Said e Giorgio Baratta) e contratempo (utilizada por Bensaïd) para pensar a história das classes subalternas e a política.

As reflexões sobre a questão do contraponto como forma de compreender a coexistência e combinação de diferentes modos de compreender os mesmos processos de diferentes contextos históricos, políticos e culturais aparece como uma contribuição muito interessante em termos de pensar a forma concreta em que ocorrem os processos históricos e uma forma igualmente concreta capaz de combinar a generalização com a atenção às particularidades:

O método do contraponto permite compreender os fenômenos culturais, literários e, adicionaríamos aqui, políticos, todos numa prática investigativa retrospectiva, à luz dos processos de descolonização [...] Gostaríamos de propor aqui que o contraponto, assim, pode ser entendido como um método de historiografia específica de grupos subalternos, atendendo ao que adverte Gramsci quando afirma que a lista de seus critérios metodológicos para uma historiografia subalterna “pode ser ainda especificada com fases intermediárias ou com combinações de mais fases […] Muitos cânones de pesquisa histórica podem ser construídos por meio do exame das forças inovadoras italianas que guiaram o Risorgimento nacional...” [...] Avançamos a proposta de que o método do contraponto é capaz, como demonstra Saïd para os estudos de cultura, de compreender os processos históricos particulares de constituição dos grupos subalternos das formações sociais territoriais específicas em suas relações centros-periferias/metrópoles-colônias/hegemônicos-subalternos/imperiais-dependentes.

Por sua vez, Giorgio Baratta retoma Saïd e a questão do contraponto, para pensar o problema da traduzibilidade e da dialética em Gramsci:

A novidade metodológica introduzida por Baratta, apoiado em Saïd, consiste em articular as categorias de dialética e tradutibilidade – já velhas conhecidas do materialismo histórico e atualizadas pela leitura de Gramsci em seu debate com o revisionismo – com aquela de “contraponto”. A tradutibilidade admite e teoriza a possibilidade da tradução recíproca entre as linguagens e culturas. No âmbito teórico, ela pode ocorrer entre as linguagens da filosofia, da política e da economia. No âmbito prático, entre diferentes culturas nacionais “em ou de” um mesmo conceito histórico [...]. A dialética opera nas mesmas dimensões, articulando distinções e diferenças, contradições e oposições. Na prática política, essas categorias informam a complexidade da luta de hegemonias nos planos social e econômico. A expressão “contraponto”, embora não originada da pena de Gramsci, ajuda a pensar a “filosofia da práxis”, a traduzir esse núcleo fecundo do pensamento de Gramsci para as relações políticas, internacionais e culturais do mundo contemporâneo.

Para Galastri, o contraponto permite repensar a dialética de maneira mais fluida, combinando as “contradições-oposições” com as “oposições-distinções” e, dessa forma, conseguir uma compreensão concreta, tanto dos processos históricos, como das expressões culturais ou das construções teóricas, o que pode ser feito sabendo que contraponto e dialética não são exatamente o mesmo e que tampouco marcham sempre juntos, pelo qual é necessária “a capacidade analítica da livre passagem, ida e vinda, de um para outro” (p. 219).

Da mesma forma Galastri resgata a noção de contratempo, utilizada por Daniel Bensaïd em diversos trabalhos, como chave para compreender que o “tempo não-linear, não-contemporâneo, intermitente e discordante é rompido pela política e pela estratégia, pelas lutas das classes”. O contratempo permite pensar as contradições e desajustes dos processos históricos, evitar cair em visões objetivistas que desvalorizam o papel dos sujeitos e trazer uma leitura da história sem etapas pré-concebidas.

O capítulo é concluído com o apontamento de que a utilização de ambas categorias, contraponto e contratempo, são úteis para pensar a história das classes subalternas, assim como a crítica da permanência do poder colonial eurocêntrico.

Para concluir

Este livro de Leandro Galastri constitui uma contribuição original ao debate gramsciano. Ao longo desta resenha, fomos levantando alguns pontos de desacordo com a perspectiva do autor, mas concordamos com sua colocação fundamental: sua ênfase na importância de pensar a política da classe trabalhadora de forma extrainstitucional, reivindicada em seus comentários finais. Essa colocação é extremamente importante no atual contexto latino-americano e do Brasil em particular. Ir além das leituras que postularam Gramsci como o ponto de apoio para pensar a “transição democrática” é central; não apenas como acerto de contas com as apostas da intelectualidade latino-americana no passado, mas, sobretudo, pelas graves limitações da concepção historicamente sustentada pelo PT de que a política começa onde termina a luta de classes.


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FOOTNOTES

[1Francescangeli, Eros, Arditi del Popolo. Argo Secondari e la prima organizzazione antifascista (1917-1922), Roma, Odradek, 2000, p. 103
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