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Governo Federal e Novo Ensino Médio: entre a contenção da insatisfação e a revogação

Douglas Silva

Governo Federal e Novo Ensino Médio: entre a contenção da insatisfação e a revogação

Douglas Silva

A suspensão da portaria que estabelecia um calendário de implementação do Novo Ensino Médio (NEM) e as mudanças no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) previstas para 2024 tornou-se tema central dos debates na última semana. Por um lado, pela comemoração de setores insatisfeitos com a primeira Medida Provisória (MP) aprovada pelo governo golpista de Michel Temer e, por outro, pela amálgama do governo Lula-Alckmin em fazer da suspensão uma tentativa de contenção do descontentamento, sobretudo, da juventude secundarista que saiu às ruas no mês passado. Além do mais, a semana também foi marcada por mais um atentado alimentado pelo ódio bolsonarista e que, somado aos ataques à educação, transformam professores e estudantes em alvos da extrema direita e das políticas neoliberais. Aprofundando a exploração, a opressão e todos os mecanismos de precarização da vida neste sistema, é preciso ver que se fortalecem os mecanismos causadores dessas barbáries que temos visto nas escolas e para as quais o Estado é responsável, incapaz de dar uma resposta efetiva.

Trabalhar pela contenção dos movimentos sociais e das mobilizações sempre se mostrou tarefa de primeira ordem para o PT e Lula. Do controle das greves do ABC durante a ditadura para não passarem da luta econômica à política, da passividade frente ao golpe institucional de 2016, que os levaram a perdoar os golpistas, tais como Alckmin, até os dias de hoje. Ou seja, a história demonstra que, para um partido com base operária e popular, o PT sempre contou com a capacidade de, a partir da aproximação e vinculação cada vez mais estreitas dos sindicatos e movimentos sociais com o poder estatal [1], trabalhar pela contenção e/ou canalização das mobilizações e insatisfações populares para dentro das instituições do Estado burguês.

Antes de mais nada, precisamos nos unir contra a barbárie que nos ameaça

Antes de tudo, qualquer discussão acerca do Novo Ensino Médio não pode passar por fora de prestar nossa solidariedade com a comunidade escolar e as famílias das vítimas do ataque à Creche Cantinho Bom Pastor, no vale do Itajaí, em Santa Catarina, ocorrido na última quarta-feira (05). Isso menos de 10 dias após o ataque ocorrido em São Paulo na E.E. Thomazia Montoro que vitimou a professora Elizabeth, estamos novamente enlutados por outra brutalidade, dessa vez com 4 crianças assassinadas e outras feridas, praticada por um homem de 25 anos, bolsonarista declarado, cujo perfil nas redes sociais está repleto de postagens reivindicando Bolsonaro e o armamento [2].

A violência estarrecedora protagonizada por representantes da ideologia de extrema direita é a demonstração mais cruel da materialização de toda a política bolsonarista de ataque à educação. O governo de Bolsonaro não só alimentou o ódio contra professores e a educação pública, mas também aprofundou o processo de precarização do ensino, sustentando os mesmos grupos responsáveis em fazer das escolas seu exército particular de reserva para o trabalho precário.

Como resposta aos ataques, a extrema direita oferece policiamento e militarização das escolas. Uma solução que passa longe de conter os conflitos no interior das instituições de ensino e, sim, jogar mais água no moinho da estrutura repressora e autoritária que seus ideólogos defendem para a educação. Dessa maneira, a reforma do Ensino Médio opera como uma das duas tendências em curso simultaneamente no país. Por um lado, a política ideológica da extrema direita a partir do esvaziamento dos conteúdos nas escolas e, por outro, o avanço do neoliberalismo na educação, expresso na reforma e que vem avançando aos saltos, sobretudo, nos últimos anos [3].

Canalizar o descontentamento para aperfeiçoar a reforma nos moldes do neoliberalismo

A eleição da frente ampla de Lula-Alckmin canalizou o rechaço de milhões ao presidente de extrema direita. Trata-se de uma derrota que se impôs no campo eleitoral a Bolsonaro, mas que já demonstra todos os seus limites que se esgota nesse terreno. Afinal, toda a obra econômica do golpe institucional de 2016 e do bolsonarismo, em grande medida, segue intocada. Neste artigo, tratamos mais especificamente da Reforma do Ensino Médio, pois a partir do amplo repúdio a sua implementação, podemos extrair as lições sobre os possíveis caminhos para sua revogação e a necessidade de travar uma luta independente do novo governo eleito.

O questionamento ao NEM, entretanto, não se deu apenas no último período, mas foi tema latente durante todo o tempo que sucedeu sua implementação. Desde o governo golpista de Michel Temer, passando pelo governo reacionário de Bolsonaro, junto a aprovação de outras reformas anti-populares, como a Trabalhista e da Previdência, a classe trabalhadora e a juventude brasileira já demonstrava seu descontentamento. Porém, a não condução de um verdadeiro plano de lutas organizado pelas centrais sindicais e organizações do movimento estudantil, muitas dirigidas pelo próprio PT e PCdoB, como a CUT, CTB e UNE, foram responsáveis por abrir caminho para a aprovação das reformas sem um enfrentamento organizado em cada local de trabalho e estudo. Além do mais, a separação entre professores e alunos no chamado aos protestos não serve como alternativa contra a reforma, pois para enfrentar os ataques precisamos da mais ampla unidade entre trabalhadores e estudantes.

Logo, o que primou até o momento foi a paralisia das centrais sindicais, as quais se mantiveram à margem de qualquer organização da luta pela revogação das reformas, não convocando nenhuma assembleia ou paralisação coordenada nacionalmente contra tais medidas. Quando muito, chamaram suas bases a pressionar deputados e senadores em grupos de WhatsApp, se detendo somente nas vias institucionais como instrumento de pressão insuficiente e fadado ao fracasso como assistimos diante da aprovação de todas as reformas.

Agora, frente ao governo Lula-Alckmin, segue primando o desvio institucional como modo de conter a insatisfação. A tentativa de impedir qualquer mobilização, como foi com os entregadores de aplicativos logo no início do governo, sintetiza a real política do PT de esvaziar as ruas, impedindo qualquer processo de organização dos trabalhadores que possam, inclusive, fortalecer a luta contra a extrema direita no país. Ou seja, não se lança mão de um real plano de lutas com assembleias, paralisações e mobilizações construídas pela base. O que marca a atuação dos sindicatos e entidades estudantis ligadas ao governo é, justamente, a via institucional. Para esfriar os ânimos, o governo decidiu então suspender a implementação do NEM, o que, na prática, não muda em nada sua aplicação nos estados e municípios.

Com o discurso de que seria feita uma consulta sobre o NEM, o governo visa escamotear o descontentamento que se apresenta em toda a comunidade escolar, enquanto segue defendendo que a revogação - pauta defendida por todos que sentem o impacto da reforma na prática no interior das escolas - não é o caminho. A política de Camilo Santana (PT), e de toda a Frente Ampla que encabeça o governo, é criar um clima de consulta pública, enquanto a verdadeira consulta se manifesta em cada escola com professores e estudantes repudiando a reforma.

Reforma do Ensino Médio: revisar ou revogar?

Para o Ministro da Educação, Camilo Santana, a resposta à pergunta sobre revisar ou revogar o Novo Ensino Médio parece fácil de ser respondida. Afinal, o Ministro, em evento do Lide Ceará, sexta-feira (31), afirmou que “[...] simplesmente revogar e voltar ao passado eu não vejo que é o caminho”. Em consonância com o empresariado da Educação, o qual teve participação ativa no governo de transição Lula-Alckmin, Santana defende uma revisão por fora de se enfrentar com os tubarões da educação e ainda mantém a profunda desigualdade da educação pública brasileira. Sustentando os pilares do que foi a implementação do NEM, a saber, a transposição da reestruturação do modelo de produção capitalista pós-crise de 2008, marcada pelo aprofundamento da precarização do trabalho, para a educação de jovens que hoje se defrontam com o trabalho precário como alternativa de subsistência.

Desse modo, a Reforma do Ensino Médio se apresenta como irmã das reformas da Previdência e Trabalhista, ambas responsáveis por pavimentar a estrada de um futuro marcado pela precarização do trabalho e do ensino. Ou seja, a reforma se lançou como sendo a primeira aprovada no governo Temer, justamente, pela necessidade de diminuir a formação da mão de obra para garantir a diminuição do valor da força de trabalho frente ao aprofundamento da crise capitalista.

Além do ministro, Lula também correu em direção aos que sempre mantiveram altos lucros em seus governos: a iniciativa privada da educação. O presidente afirmou na última quinta-feira (06) que "[...] não vamos revogar, nós suspendemos e vamos discutir com todas as entidades interessadas em discutir em como aperfeiçoar o ensino médio desse país". Mas o que não dizem, é que o aperfeiçoamento da reforma se trata, na verdade, em aprofundar a presença da iniciativa privada na educação, que é o real projeto do neoliberalismo e dos bilionários que marcaram presença no governo Temer, Bolsonaro e, por último, na transição do governo Lula-Alckmin.

Os interesses da iniciativa privada, as mesmas que dizem querer “aperfeiçoar” o Ensino Médio, pode ser lida na atuação do iFood, o qual afirma que alunos e alunas de São Paulo e Sergipe “poderão cursar itinerários formativos revisados com apoio do iFood”. Como se não bastasse, a empresa de aplicativo afirma que o “investimento” feito por eles, “permitiu também a revisão pedagógica dos materiais de apoio para professores e alunos do ensino médio com um olhar transversal, inserindo questões relacionadas à tecnologia em toda a grade curricular.” Qualquer relação entre o barateamento da mão de obra, a partir da diminuição da formação da juventude, e a participação de empresas como o iFood no NEM não é mera coincidência.

Além disso, na quinta-feira (30), o ministro reconduziu o bolsonarista Fernando Whirtmann Ferreira para o cargo de coordenador geral de Ensino Médio junto à Diretoria de Políticas e Diretrizes da Educação Integral Básica, ligada à Secretaria de Educação Básica do MEC. A recondução do bolsonarista, designado em 2020 por Milton Ribeiro, é a expressão mais cabal de uma política que, enquanto joga no campo discursivo por “sem anistia”, mantém em cargos do governo figuras odiosas e reacionárias, como também é o caso em outros ministérios. Todavia, não se pode surpreender pela manutenção de atores políticos oriundos do bolsonarismo em cargos no governo federal, pois o arco de alianças garantidos por uma Frente Ampla como a que levou Lula ao terceiro mandato só foi possível graças a bênção de inúmeros setores da burguesia brasileira, como aqueles que defendem o NEM. Tal frente se formou abarcando no governo de transição representantes dos fundos bilionários da educação privada e grandes articuladores da Reforma do Ensino Médio e da "nova" BNCC, entusiastas dos grandes ataques à educação nos últimos anos, tais como Todos Pela Educação, Fundação Lemann, Itaú, entre outros setores empresariais.

A participação destes atores empresariais da educação no governo ditam os rumos e a resposta à pergunta sobre revisar ou revogar a reforma, pois o aprofundamento da desigualdade entre estudantes de escolas públicas e privadas [4] com a implementação do NEM é mais do que uma consequência da reforma, mas, antes, o objetivo de seus precursores. Afinal, 88% dos estudantes do Ensino Médio no país estudam nas escolas públicas, uma parcela oriunda, sobretudo, das classes subalternas que, com a reforma, são empurrados ainda mais ao ostracismo.

O avanço da reforma, entretanto, não se insere de modo isolado na realidade mais geral da educação pública no último período, pois ao lado dos ataques assistimos a barbárie capitalista que se tenta impor como única alternativa à juventude. A sanha em manter a reforma por parte dos grupos bilionários da educação, como os da rede privada, é a demonstração de seus planos estão atrelados a aprofundar os ataques às condições de vida dos estudantes e da comunidades escolar e, para isso, se colocam também como protagonistas da implementação da reforma Trabalhista e da Previdência.

Deste modo, a Federação Nacional das Escolas Particulares (FENEP) já sinalizou seu descontentamento com qualquer possibilidade de revogação do NEM, pois sequer concordam com a suspensão do cronograma de implementação do novo ensino médio e das mudanças no ENEM. Em busca de fazer valer seus interesses e de seus financiadores, a FENEP, por meio de sua vice-presidente, Amabile Pacios, afirmou que “evidentemente vai haver judicialização dessa decisão do ministro. E não vai ser pouca. Não é só a Fenep. Infelizmente, a gente vai ter que chamar a Justiça para ser o árbitro dessa questão”. A corrida do setor privado pela judicialização apenas reitera seus interesses em manter a desigualdade do ensino, enquanto garantem uma implementação da reforma que não gera os mesmos danos gerados aos estudantes da rede pública.

Todavia, a desigualdade no campo educacional não é apenas uma realidade do NEM, mas expressão dos caminhos que tomam os interesses de classe no interior da discussão sobre a educação em nossa sociedade. O Novo Ensino Médio expressa, justamente, o aprofundamento das desigualdades mencionadas e intrínsecas ao capitalismo. Ele manifesta de modo mais aprofundado aquilo que a pedagoga soviética, Nadejda Krupskaia (1986), apontava como sendo o objetivo da escola numa sociedade de classes.

[...] a escola é instrumento de subjugação espiritual das grandes massas populares. O objetivo da escola, em tal Estado, não está atrelado aos interesses dos alunos, a não ser aos da classe dominante, quer dizer, a burguesia, e os interesses de uns e da outra divergem amiúde de modo assaz substancial. Por sua parte, o objetivo da escola condiciona toda a sua organização, todo seu modo de vida escolar, todo o conteúdo da instrução e a educação escolar. Se partirmos dos interesses da burguesia, o objetivo da escola variará segundo a camada da população à qual se destina. Destina-se às crianças da classe dominante, tem por objetivo preparar indivíduos capazes de desfrutar a vida e de governar (KRUPSKAIA, 1986, p.49, tradução nossa) [5].

Por isso, o debate sobre a revogação se faz tão caro aos bilionários da educação, porque os interesses incluídos na reforma trata-se de suas inclinações de classes, de sua disposições em, de fato, aprofundar as desigualdades sociais no ambiente escolar, aprimorando a construção de um futuro marcado pela carestia da vida e da precarização do trabalho de nossos jovens. Frente a ofensiva de tais grupos e da tentativa do governo em canalizar a insatisfação contra o NEM por vias institucionais, que já sinalizam contrárias à revogação, é preciso trabalhar pelo protagonismo da juventude e dos trabalhadores na luta pela derrubada completa desta e das demais reformas. Somente a auto-organização nas ruas e a partir de cada escola, podemos ser capazes de impor a revogação integral e construir um novo horizonte educacional para a juventude, fortalecendo as comunidades escolares para também enfrentar os episódios recentes que expressam a barbárie capitalista, sem confiança no Estado e em suas instituições, que buscam vender "mais polícia", quando é essa mesma polícia que reprime e assassina a juventude, além de estar preparada para enfrentar os professores quando se colocam em luta (como a história já demonstrou diversas vezes).

Por fim, batalhar pela revogação das reformas, incluindo a Trabalhista e da Previdência, é a única alternativa frente aos ataques à educação e à juventude. Se, por um lado, precisamos revogar a reforma do Ensino Médio, por outro, também necessitamos revogar aquelas que aprofundam a carestia de vida dos estudantes e suas famílias. Se apoiar nos exemplos históricos, como foi as ocupações secundaristas de 2016, é o único caminho possível para, contra o desvio institucional de nossas aspirações, construir uma verdadeira alternativa desde a base contra as reformas e também a extrema direita que alimenta o ódio daqueles responsáveis pelos atentados nas escolas.


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FOOTNOTES

[2Leia a declaração do Movimento Nossa Classe Educação | Crianças assassinadas em creche de SC: precisamos nos unir contra a barbárie que nos ameaça.

[4Entrevista com o professor Fernando Cássio, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), doutor em Ciências (Físico-Química) pela USP e colunista da Carta Capital: "O único caminho possível para a Reforma do Ensino Médio é o aprofundamento de desigualdades".

[5KRÚPSKAYA, Nadezhda. La educación laboral y la enseñanza. Moscú: Editorial Progreso, 1986.
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Douglas Silva

Professor de Sociologia
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