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SEMANÁRIO

Frank García: “Existe em Cuba avidez por uma saída pela esquerda”

Milton D’León

Pablo Oprinari

Frank García: “Existe em Cuba avidez por uma saída pela esquerda”

Milton D’León

Pablo Oprinari

Conversamos com o marxista cubano Frank García, sociólogo, integrante do coletivo Comunistas. Frank aprofunda sobre a atual situação em Cuba, em um momento em que a crise energética se agravou e se soma aos problemas estruturais que enfrenta a ilha. Discorreu ainda sobre o bloqueio imperialista, os planos de restauração capitalista, a situação da classe trabalhadora, assim como sobre os diversos possíveis cenários políticos e sociais, e as políticas que devem ser defendidas na ilha frente ao que considera uma burocracia irreformável. Também nos falou sobre o trotskismo em Cuba, ou mais precisamente o que chama como “o desembarque dos trotskismos que não ocorre há décadas e, sobretudo – mais que organizações- as ideias de Trótski”. Independentemente se a partir do Ideias de Esquerda coincidimos ou não com o que expõe, tratou-se de uma conversa rica de grande interesse para nossos leitores na América Latina e outras partes do mundo, sabendo que o que acontece e o que aconteça em Cuba tem grandes repercussões na nossa região e além.

Recentemente, vimos pequenos protestos em algumas partes de Cuba, produto de apagões. Isso mostra uma crise energética de magnitude no país que se soma aos grandes problemas que fizeram explodir a fúria popular em 11 de julho do ano passado, no marco das políticas de ajuste da burocracia. Poderia nos falar sobre isso?

Sim, o grande problema é que a crise energética é certa, a crise energética é real e já existia anteriormente, porque não podemos esquecer que a faísca que detonou os protestos em 11 de julho foram fortes apagões que estavam sendo aplicados nas províncias. Mas, atualmente, algo que não podemos perder de vista é que Cuba tem uma relação muito forte com a Rússia, ainda que não tanto como em seu momento com a União Soviética, da qual dependia. Nessa relação com a Rússia, nesses vínculos econômicos, está o petróleo, o combustível. Como vocês sabem perfeitamente, para gerar eletricidade nas termoelétricas, necessariamente se faz com combustível. Era evidente que a guerra na Rússia iria impactar de forma muito negativa no abastecimento de combustível, alimento e crédito à Cuba. Soma-se a isso o fato de que as termoelétricas, segundo informou o Ministro cubano de Energia e Minas, têm um tempo de vida útil ao redor de 25 anos. Essas termoelétricas que estamos usando foram compradas em sua maioria na União soviética – imaginem! – no máximo em 91. Têm 31 anos de exploração.

Agora, há várias perguntas. É verdade que Cuba atravessou uma forte crise econômica nos 90 chamada “período especial”, mas, quando a economia foi restaurada, embora se tratasse de ganhar “soberania energética”, como dizia Fidel com a “revolução energética”, dependia fortemente do petróleo venezuelano. Foram os melhores momentos do Governo de Hugo Chávez econômica e politicamente, e Cuba tinha um respaldo bem grande no petróleo venezuelano. Isso levou a se praticar quase o mesmo que durante os anos em que existia a União Soviética.

Mas em Cuba não ocorreu essa “soberania energética” desenvolvendo outras fontes de energia, seu autoabastecimento de combustível, e evidentemente essas termelétricas deixaram de serem reparadas por um motivo ou outro. Coloca-se então a questão de saber se ter atribuído tanto dinheiro, tanto orçamento ao turismo – que, como sabemos, mais de 50% do orçamento estatal em 2021 se destinou ao turismo, uma indústria que estava em crise devido ao Coronavírus e agora pela guerra russo-ucraniana – não deveria ter sido destinado antes, não apenas aos alimentos e remédios, mas também para o reparo das termelétricas. Isso é algo que os especialistas das termelétricas com certeza viram. Seguramente, alertaram seu chefe, e seguramente seus chefes foram, como se diz em Cuba, elevando a queixa e isso foi parar em alguma gaveta guardada ou não foi dado importância nas esferas de mais alto nível.

Então, o que está acontecendo é que a classe trabalhadora está sendo exposta a cortes de energia muito extensos. Um pequeno detalhe que não se deve perder de vista é que os maiores cortes de energia estão ocorrendo nas províncias mais “leais”. Nas províncias em que os protestos do dia 11 foram fracos ou não ocorreram - que se estenderam em alguns lugares até o dia 12 de julho -, os apagões podem ser de 6 e 8 horas durante toda a noite. Nesta quinta, dia 11 de agosto, a União Elétrica na província de Villa Clara informou que seriam 12 horas e, em sua página de Facebook, consultou como queria que fossem: dois cortes de 6 horas ou um só apagão, ou seja, 12 horas corridas, para que se tenha uma ideia. O que quero dizer com isso? Que o governo sabe perfeitamente onde pode e onde não pode realizar os cortes de energia. Entretanto, os cortes de eletricidade já chegaram à Havana, com planejamento de dois dias afetados nos quais os apagões são de 6 horas. Porém, no dia 5 de Agosto, aconteceu um acidente nos tanques em que o petróleo estava armazenado, acidente que ocorreu nas proximidades de Matanzas, o qual agravou a situação energética e está somando outra jornada de cortes, na qual já ocorreu um corte de 4 horas pela noite em Marianao no dia 10 de Agosto. Esse cenário, evidentemente, somado à crise econômica e à crise política - que se vê na queda continuada da popularidade do Governo-, vai criando um forte descontentamento. Existe uma burocracia que cada vez se afasta mais da classe trabalhadora, das maiorias populares e da juventude. O descontentamento da juventude cubana, que vê que não tem como influir sobre as decisões do Governo, tem provocado desde a crítica e nenhum compromisso com o Governo, até a apatia e, inclusive, lastimosamente a direitização.

Existem os protestos do município Los Palacios na província de Pinar del Rio, os que acabaram de acontecer em Altamira em Santiago de Cuba. Desde o dia 15 de julho até 9 de agosto ocorreu um protesto por semana. Se os cortes continuarem em Havana, a capital também pode explodir, e isso seria grave. Os burocratas devem ter ficado assombrados, pois impuseram um Código Penal muito forte, sanções desmedidas para um grupo de manifestantes do dia 11 de julho, uma forte propaganda desacreditando os protestos da data. Então, embora sabiam que o protesto e o descontentamento estavam à flor da pele, talvez o que nunca tinham imaginado é que era nesses pequenos lugares periféricos onde as manifestações públicas poderiam começar. Em outros países, 4 protestos com 200 manifestantes cada uma em um mês pode ser algo comum, mas em Cuba, onde isso sempre foi tão reprimido que no imaginário popular manifestar-se nas ruas é cometer uma contrarrevolução, agora com o risco do novo Código Penal e os precedentes de 11 de julho, é óbvio que Cuba está vivendo um cenário sem precedentes. É preciso levar em conta que os protestos de 11 de julho não começaram em Havana, começaram em San Antonio de los Baños, uma cidade pequena que está a 30 km de Havana.

Sobre a situação do desabastecimento, que parece que está aumentando, como está agora?

Sim, junto com essa crise energética, tem o desabastecimento, porque a guerra russo-ucraniana impactou terrivelmente no desabastecimento, que já era crônico. Esse desabastecimento é intensificado pelo fato de que o setor da economia privada está se expandindo - e o setor da economia onde tem maior presença em Cuba é no setor de serviços, na gastronomia e na hotelaria. Assim, o setor da economia privada começa a entesourar alimentos e, não somente isso, o Estado começa a lhe vender alimentos também. Isso auxilia para um desabastecimento bem grande, que se vê em Havana, diferentemente dos cortes de eletricidade que o Governo faz, como disse anteriormente, nas províncias “leais”, e não se atreve a fazê-los na capital porque ficaria exposto a possíveis fortes protestos. 

Em Havana, vêem-se grandes filas que, como tenho explicado constantemente para amigos estrangeiros que não percebem a gravidade do assunto, não é apenas fazer grandes filas que podem durar um dia inteiro para comprar determinado produto, mas fazê-las inclusive com a incerteza de que esse produto - que pode ser algo tão básico como frango, azeite, produtos de limpeza - possa acabar enquanto se está na fila. Assim, toda essa confluência de desabastecimento e crise econômica é vista no fato de não se poder ter acesso a produtos básicos, porque não tem, e quando tem estão muito caros, porque a inflação mantém um ritmo sustentado. Tudo isso delineia uma situação muito perigosa.

Recentemente, o ministro da economia, Alejandro Gil, anunciou 75 medidas econômicas novas para “dinamizar”, por assim dizer, a economia do país. Medidas que podem ser resumidas em: forte estímulo do setor privado, cortes de políticas públicas, redução dos empregos estatais e do orçamento estatal. Incrivelmente as medidas foram recebidas com certa popularidade dentro da população cubana, porque se criou a ideia que o setor privado é o setor eficiente. Como dizia, o setor privado tem maior força no setor de gastronomia e, como o mesmo Estado desmantelou toda a gastronomia estatal, a população vê como aparece uma burguesia eficiente e próspera. Claro que essa burguesia é mais eficiente e próspera porque está recebendo apoio do Estado. Não está recebendo dinheiro do Estado, mas recebe matéria prima, recebe mercadorias a baixo custo. Temos que agregar que o setor da gastronomia, não poucas vezes nos negócios mais exitosos, tem como proprietários os mesmos burocratas ou testas-de-ferro dos burocratas ou pessoas muito próximas deles.

Parece que a burocracia, o governo cubano, o que tem feito até o momento, depois dos eventos de 11 de julho e toda sua política repressiva, é retardar, digamos, uma crise maior que poderia ocorrer, levando em conta que cada vez mais se somam problemas estruturais, vislumbrando uma explosão social muito maior que a de 11 de julho. Como você vê a dinâmica nesse sentido?

Bom, vou falar agora não somente em meu nome, mas também no nome do coletivo Comunistas, que temos analisado muito detalhadamente quando nos reunimos, porque é uma grande pergunta que nos fazemos: o que pode acontecer? Qual será a saída da atual crise? Esses são os cenários que temos posto sobre a mesa.

O primeiro cenário seria o de o governo cubano, devido a toda a repressão que lançou durante o 11 de julho, mais a campanha política que realizou, mais alguma jogada parecida com a que fez Junior García com a marcha que tinha convocado para o dia 15 de novembro, com o sobredimensionamento da mesma (chegando a criar a opinião que iria ser uma marcha violenta, ao ponto que, nos centro de trabalho, nas instituições e nas fábricas, os militantes do Partido Comunista fizeram guardas, porque esperavam ataques contra todas as instituições estatais), mais a emigração de mais de 1% da população cubana em pouco mais de 7 meses e, portanto, assim se vai um grande quantidade de pessoas descontentes que poderiam estar na rua protestando em um similar 11 de julho, mais a ideologização que se falou antes, pode ser que em toda essa pressão, em toda essa situação, embora ocorra sob uma grande tensão, o governo saia sem viver nenhum tipo de protestos, ao menos nenhuma explosão social.

O problema é que não vejo como o governo pode superar essa crise, porque também existe algo que sempre é esquecido, que é que realmente existe o bloqueio yanqui que persegue as empresas que tentam negociar com Cuba e as multa. O serviço de correio FedEx, por exemplo, não pode nem sequer enviar encomendas ou documentos de uma embaixada cubana à outra instituição ou a outro país, ou o inverso. Para dar o exemplo, digamos, mais estúpido. Para não dizer das vacinas cubanas contra o Coronavírus, que foram muito eficientes e não foram reconhecidas pela OMS. Isso não é coincidência, há aí a mão dos Estados Unidos. Então, levemos isso à pressão econômica, agreguemos o que tinha dito sobre a guerra russo-ucraniana, que não está entrando turismo; ou seja, Cuba estava saindo de uma crise econômica e recebeu outro golpe, e Cuba, como quer que seja, está inserida nas dinâmicas do mercado capitalista internacional. Então, é muito trabalhoso ver qual poderia ser a saída, por isso esse cenário é completamente improvável.

O segundo cenário que temos colocado é não um levantamento geral que pudesse ser como o 11 de julho, que comoveu o país e que passou a existir um antes e um depois, porque demonstrou que havia uma total quebra do discurso político da burocracia. Mas que aconteça como aconteceu com Vietnam em 2011 se me recordo bem, que ocorreram aproximadamente 1000 greves, mas não provocou a queda do Governo vietnamita. É preciso ver como a burocracia cubana soube manejar os protestos em Los Palacios, como manejou tão bem os protestos em uma pequena central açucareira que existe em Matanzas, a pequena central Australia. O governo não reprimiu os protestos em Los Palacios, não reprimiu os da central Australia. Essa é a informação disponível atualmente, não se julgou nenhum dos manifestantes. Talvez o governo esteja aprendendo a manejar esses protestos contanto que sejam pequenos. Talvez tenham aprendido do desastre que provocou o manejo de 11 de julho que, em boa medida, o sabemos perfeitamente, foi a mesma burocracia que tentou apagar o fogo com gasolina. Quando Diaz-Canel saiu no anúncio dizendo “revolucionários e comunistas para a rua, a ordem de combate está dada”, isso serviu para dar um aviso geral a nível nacional que algo estava acontecendo na rua. Então, é possível que aconteça uma série de protestos neste segundo cenário que sirvam para liberar a pressão, que a burocracia saiba manejá-los até que a tensão desapareça pouco a pouco. Quero dizer que de repente a burocracia pode contornar de forma inteligente, sem reprimir e sem provocar eles mesmo, uma grande explosão social que foi o que praticamente aconteceu em 11 de julho.

Temos um terceiro cenário: que ocorra um levantamento nacional. Nesse aspecto nós do Comunistas sempre entendemos que não seria, como não o foi em 11 de julho, de maneira coordenada pela contrarrevolução ou por nenhum tipo de oposição. Porque nenhuma organização tem o poder de convocação para gerar uma explosão como a do dia 11 de julho. Nesse cenário seria necessário ver: quem poderia se localizar na frente, em sua direção? Aqui entram três variantes. A primeira variante, que seria uma das mais possíveis, é que a contrarrevolução tome a condução desses protestos. Sabemos o que implicaria: a queda do Estado cubano e a implantação de um capitalismo neoliberal sem nenhuma máscara, subjugação sustentada e uma ditadura anticomunista feroz. Outra variante seria que a esquerda crítica, dada sua maior amplitude, se colocasse na vanguarda desses protestos com bandeiras vermelhas, com um programa socialista e começar assim um processo revolucionário socialista. Uma variante muito difícil que suceda. A terceira variante, que não tínhamos vislumbrado até que um companheiro próximo a nós nos pôs sobre a mesa, é que ocorra como aconteceu na Rússia, nos últimos anos da União Soviética, onde os protestos - claro que gerados naquele momento por um golpe de Estado da KGB em agosto de 91 - foram conduzidos pelo setor direitista da burocracia. Outro detalhe a ser observado é que Boris Yeltsin, que foi quem levou adiante a condução desses protestos, não apareceu da noite para o dia, mas foi criando uma ala direitista dentro do Kremlin, e quando chegou o momento que lhe favoreceu ele estava à frente, e até agora esse burocrata não aparece [em Cuba], até agora essa ala de direita, que tem a real intenção de derrubar a burocracia para converter-se em uma nova burguesia, não é conhecida, não existe ou não se vislumbra daqui.

Um quarto cenário seria uma rebelião popular que terminaria conduzida por uma espécie de frente ampla, como ocorreu na Romênia, onde havia militares, burocratas, opositores de esquerda e direita, mas sem um plano, e politicamente terminou indo à direita para a restauração do capitalismo. A diferença entre a Romênia e a Rússia foi que a burocracia promoveu a queda do socialismo - ou o que havia na União Soviética -, e quando explodiram os protestos, o setor mais reacionário se pôs à frente delas e utilizou as massas para restaurar o capitalismo. Na Romênia ocorreu uma aberta explosão social onde o mesmo protesto fez Ceascescu ruir e, como resultado, criou-se esse governo provisório que mencionei, se dividiram as forças armadas e, depois de alguns dias de combate, o governo caiu. Mas há um padrão muito perigoso e é pelo qual triunfa a direita nesses casos: não houve nenhuma organização que encabeçasse os protestos, menos ainda uma organização revolucionária. A propaganda anticomunista e ao mesmo tempo a da burocracia, e os fatos, fizeram que um sindicato formado por operários portuários, como foi o Solidariedade - falo da Polônia - terminasse sendo controlado não apenas pela direita, ao ponto de que, ao triunfar, fizeram um grande pacote neoliberal. 

Se cair agora em Cuba não apenas o governo, mas também o Estado, pois o governo pode mudar por causa dos protestos populares, o Estado continuar - algo que não ocorreu na Europa do Leste porque nesses países o governo estava tão fundido com o Estado que a queda do governo implicou a queda do Estado-; se protestos populares derrubassem o governo cubano seria extremamente difícil que a classe trabalhadora cubana chegasse ao poder e começasse a construção de uma revolução socialista, e quem se lançaria ao poder seria a direita mais reacionária com o apoio dos Estados Unidos. Mas, ao mesmo tempo, tomar inequivocamente como certo que se o Estado cubano caísse agora por protestos populares não se iniciaria uma revolução socialista, seria não ter nenhuma confiança na classe trabalhadora.

Veremos o desenvolvimento desses acontecimentos e os eventuais cenários. Queremos voltar a quando você se referiu à ampliação do setor privado, mencionava uma burguesia em ascensão, ou proto-burguesia como alguns lhe chamam. Gostaríamos de lhe perguntar, qual é sua origem? De onde vem esses setores? Qual é sua extensão na própria economia?

Bom, em primeiro lugar, se nos atermos ao conceito clássico, e creio que é o que temos de fazer, de burguesia segundo Marx, essa é a classe social que, possuidora dos meios de produção, sejam quais forem, poucos ou muitos, compra força de trabalho para pôr em movimento esses meios de produção e gerar o mais-valor do qual vivem. Aqui entra também Marx, quando falava de classe em si e classe para si. A burguesia, digamos, proprietária de um quiosque, proprietária de um negócio muito pequeno de venda de alimentos, essa burguesia era uma burguesia tão burguesia em si, que não gerava sua própria cultura, suas próprias condutas, seu próprio hábito, sua própria ideologia. Então, podemos falar de uma burguesia existente em Cuba, inclusive desde o ano de 94, quando Fidel habilitou as primeiras reformas. Entretanto, com o início das reformas econômicas que Raul começou em 2010 e que se aceleraram de 2014 em diante, essa burguesia passa a ser uma classe para si.

Então podemos ver agora essa burguesia conformada da seguinte maneira: é uma burguesia periférica que se encontra nos cordões de Havana, em todo o interior do país e nos campos, que é uma burguesia conservadora, tendendo ao cristianismo; uma burguesia que nasceu do campesinato rico, uma burguesia que nasceu de negócios do lumpemproletariado, que nasceu dos cubanos que emigraram e regressaram de Miami, principalmente. E há uma outra burguesia cosmopolita, culta, que vive como tal, principalmente em Havana, e são os que tem feito negócios de fato, que são artistas que acumularam riquezas com a venda de seus quadros, europeus vinculados com a intelectualidade que vieram a Cuba e posto seus negócios vinculados com o setor de design, de design de roupas, com uma gastronomia que reproduz os cânones estéticos da burguesia hipster, millennial, que se vê no México como na colônia Roma [bairro hipster da cidade do México] e que podemos encontra na Europa mais cosmopolita, um fenômeno que se repete ao longo de toda a América Latina e que é um fenômeno produto da globalização. Uma vez que Cuba começa a se inserir nessa globalização, uma vez que esses estrangeiros desembarcam em Cuba e iniciam esses negócios, começa a gerar uma cultura burguesa liberal: artistas das artes plásticas, cantores, diretores de cinema ou pessoas vinculadas ao cinema ou pessoas vinculadas as artes plásticas no geral, então essas são as principais origens da burguesia.

Temos um terceiro núcleo, que muitos conhecem exemplos pessoais, como familiares de burocratas e dirigentes cubanos que, assombrosamente, tem reunido o capital necessário para abrir bares de luxo, docerias de luxo, spas. Esse tipo de coisa sempre chama muita atenção porque o salário de um dirigente cubano não corresponde com a quantidade de dinheiro necessária para fazer um grande investimento e manter todos os insumos, partindo de que o salário não corresponde com o capital necessário para abrir um negócio privado. Faço uma comparação: o salário do presidente é de 25.000 pesos, que na taxa atual seria aproximadamente uns 250 dólares. Com isso não se pode abrir um bar de luxo, não se pode montar um restaurante de luxo nem se pode montar um doceria de luxo. Estou falando do salário do presidente e um salário que está recebendo depois da Tarefa de Ordenação. Ou seja, antes, em 2019, 2018, ou 2017, quando vários burocratas ou seus familiares já tinham esses negócios, o salário mais alto que poderiam ganhar era ao redor de 50 dólares, 60 dólares, nenhum salário chegava a 100 dólares. Existe, portanto, algo turvo, por assim dizer.

Você fala de uma burguesia, mas quando se compara com os países capitalista, lá representaria uma pequena-burguesia ou média burguesia. Não é um setor burguês dono de uma rede hoteleira, dona de setores da indústria, de grandes setores de serviços, quer dizer, dos grandes meios de produção; são setores que estão acumulando. Poderia nos falar um pouco sobre isso?

Sim, sim, muito boa a colocação que fez. A contribuição que o setor privado gera ao Produto Interno Bruto não passa de 20%, mas o setor da economia privada já emprega quase 30% da população e as empresas não têm mais apenas três ou quatro empregados. Essa é uma das medidas que o governo recentemente adotou: a lei das mipymes foi mais do que reconhecer empresas de 100 empregados, por exemplo, como redes de vários restaurantes que completam 100 empregados ou com capacidade de 200. Lembro-me perfeitamente do secretário de Conselho de Estado, Homero Acosta, dizendo nos debates da Constituição que não tinha problema com a acumulação de riqueza, mas o que proibia e o que se proíbe na Constituição é a acumulação de propriedade. É quando se diz: bem, esse homem é cínico ou ingênuo, desconhece a história da luta de classes, porque a acumulação de capital é o que dá origem à burguesia.

Então, sim, temos que falar sobre que tipo de burguesia. Não estamos ante uma burguesia proprietária de fábricas, que ainda é proibido, proprietária de minas, que ainda se proíbe, proprietária de áreas centrais como usinas de açúcar, proprietária de hotéis, mas sim é uma burguesia, pois é proprietária de restaurantes de muito sucesso, proprietária de várias casas de aluguel, de empresas que nascem com 100, 200 trabalhadores e que tem se constituído com mais força. Com relação aos generais tecnocratas, que podem estar acumulando propriedades, é muito incerto, porque não tem como demonstrar que são proprietários de empresas e de meios de produção. É aí que entra o grande debate com os cliffistas e quando se pode responder-lhes: bom, essas pessoas são burocratas de maneira demonstrável. Outro dia alguém me perguntou “agora vocês, Comunistas, estão utilizando o termo burocracia capitalista” e estamos chamando de burocracia capitalista, não porque passamos ao cliffismo, mas porque é um fato que essa burocracia é proprietária de empresas privadas. O capitalismo de Estado de Tony Cliff o que defende é que a burocracia é proprietária de todos os meios de produção de um Estado Operário.

No entanto, a melhor forma de demonstrar que a burocracia não é uma classe – que também nos explica Karl Marx, é o principal mérito de Karl Marx, demonstrar como funcionam as sociedades capitalistas modernas e as socialistas – é quando a burguesia é derrotada politicamente. Na Rússia bolchevique em 1917, por exemplo, sai completamente do poder, e seguiu sendo burguesia porque seguiu conservando seus meio de produção até que fossem nacionalizados e expropriados, mas até que isso ocorresse seguiram possuindo essas empresas. Por outro lado, a burocracia, quando perde o poder, os burocratas soviéticos, tomemos um exemplo mais grosseiro, os burocratas da República Democrática da Alemanha e da Polônia, quando perderam o poder político, deixaram de ser burocracia imediatamente. A existência da burocracia não está condicionada por motivos econômicos, por razões puramente econômicas, mas por razões políticas. Nós que moramos em Cuba podemos ver isso aqui, assim como quem viveu em outros Estados Operários – Estados Socialistas, como queira chamar, economias não capitalistas -, que uma empresa estatal, digamos, vamos novamente aos restaurantes e bares, um restaurante estatal pode estar em crise, falir constantemente, estar no vermelho e não fecha. Não depende das relações econômicas, e fecha-se uma empresa estatal, talvez, porque o burocrata é deposto. É uma decisão política, são as relações políticas que decidem a existência da burocracia, e não as relações econômicas. Entretanto, estamos presenciando a conversão dessa burocracia em burgueses ao possuir empresas privadas, mas ao mesmo tempo são burocratas, ao mesmo tempo são dirigentes, então, por isso, nós Comunistas estamos utilizando o termo burocracia capitalista.

Levando em conta tudo isso que você está desenvolvendo, e todos os elementos de progressão na implantação desse setor social que estamos discutindo; acreditamos que desde o ponto de vista do que é Cuba, esse setor segue sendo minoritário e não muda o caráter do Estado, ainda que o mine e se desenvolva no calor das políticas de restauração e da desigualdade. Parece-nos que, no essencial, vai se constituindo como uma importante base social para uma política de restauração muito mais ofensiva, e este é o perigo do que está tomando forma. O que você opina?

Um detalhe muito importante as vezes nos é perguntado, a diferentes membros do Comunistas, por alguns ingênuos: bem, que problema existe com o fato de que os dirigentes cubanos tenham empresas privadas se vão continuar construindo o socialismo? É aqui que entra a questão de que é importante quem está governando. Porque é obvio que se uma pessoa é proprietária de um negócio privado, vai legislar em benefício de seu negócio privado e não em benefício da classe trabalhadora. Dou um exemplo concreto, o governo cubano – como esperávamos todos- lidou muito bem com a crise do Coronavírus até dezembro de 2021, desde o início de março até dezembro. Em dezembro, evidentemente, se impôs a ala chinesa, por assim dizer, a ala restauracionista da burocracia, e foi visto claramente, não tanto pela flexibilização das medidas sobre o Coronavírus, mas no tipo de medida que adotou. Imediatamente ordenou a abertura do setor de gastronomia privada. Alguém poderia pensar “bom, o fez para ajudar os trabalhadores do setor privado da economia”: lhe informo que os trabalhadores do setor da economia privada não tiveram nenhum apoio, que muitos perderam seu trabalho. No entanto, havia alguns burocratas que tinham empresas privadas no setor de gastronomia e que estavam legislando a seu favor, expondo a classe trabalhadora para poder salvar seus negócios. Esse é um simples exemplo, e o que importa é quem está governando: os trabalhadores ou os burgueses.

Esse era um dos debates que eu mantinha com membros do desaparecido 27N, que mais tarde deram lugar ao grupo Archipiélago. Eu lhes dizia: “Supondo que vocês triunfem, que sistema econômico propõe? Que sistema político irão implementar? Capitalismo? Ou vão tentar construir o socialismo?”. Me diziam: “Não Frank, o que você está dizendo é muito dogmático”. Lhes respondia: existe essencialmente dois sistemas, um que se pode chamar de não capitalista e que no melhor cenário termina no socialismo e outro que é capitalista. Isso está dado por pura matemática. Quem tem o controle dos meios de produção? Quem vai ter pelo menos 50 + 1 dos meios de produção? A classe trabalhadora ou a burguesia? É um fato. É um fato, não é uma interpretação dos fatos, e é aí onde essas pessoas tratavam de evitar a respostas, porque não tinham outra resposta para dar sobre quem vai ter os meios de produção. Não vai ser a classe trabalhadora, mas a burguesia.

Estava lendo recentemente Lênin, O Estado e a Revolução, e é preciso ter claro aquela frase de Lênin que diz “o estado é uma classe oprimindo outra”. Claro, aqui não é a classe trabalhadora oprimindo a burguesia, não é a classe trabalhadora oprimindo a contrarrevolução, é um sistema onde a burocracia supostamente defende a classe trabalhadora, mas também, além de enfrentar a classe trabalhadora, também está enfrentando a contrarrevolução por sua própria existência. Como ocorreu com a burguesia ao longo da história, a burocracia cubana hoje não tem mais um caráter revolucionário, mas se enfrenta com a contrarrevolução pela sua própria sobrevivência; mas assim como dissemos que a burocracia cubana é hoje em dia irreformável e praticamente indefensável, nunca vamos defender a contrarrevolução.

Me espanta a existência de marxistas revolucionários que defendem a Lei de Anistia para todos os presos políticos cubanos de 11 de julho em geral. Assim como a maioria dos presos são trabalhadores que exerceram o direito à legitima manifestação, sem serem convocados por nenhum grupo direitista, também está preso, para dar apenas um exemplo, Luís Manuel Otero Alcántara, que foi preso no dia 11 de julho e é um forte anticomunista com vínculos diretos com os Estados Unidos. Existe uma fundação da extrema direita argentina chamada Cadal que apoia abertamente Alcántara e sua organização: o Movimento San Isidro. Então me pergunto, como pedir a liberdade desses personagens? É um dever revolucionários exigir a liberdade das trabalhadoras e dos trabalhadores presos no dia 11 de julho. Aproveito a oportunidade para tornar público minha reivindicação pela liberdade e por todos os direitos da menina trans Brenda Díaz, presa no dia 11J, que foi tratada como homem na prisão, obrigada a ficar presa em presídios masculinos, vestir-se como homem e chamada pelo nome com que nasceu. Isso não aconteceu apenas com a Brenda: quando fui preso no dia 11 de julho, em um dos centros de detenção em que estive, compartilhei cela com duas meninas transgêneros, também detidas nesse dia e que lhes deram roupas de homem, estavam na sessão dos homens e as chamavam pelo nome que ainda constam na carteira de identidade.

Se a burocracia é irreformável, isso significa um tipo de programa político pelo qual lutar. Gostaríamos que desenvolvesse um pouco mais sobre o assunto e como o vincula ao programa político se deveria defender em Cuba nesses momentos.

Um camarada nosso que vive em uma das províncias localizadas no centro do país sempre nos diz, aos camaradas de Havana, que a propaganda oficial sobre o dia 11 de julho foi muito eficaz. As posições do governo cubano sobre os protestos do dia 11 de julho, em seu discurso, em sua propaganda, foram mudando. Inicialmente tinha um tom conciliador, de conciliar a sociedade cubana. Depois começou a insistir que os protestos não eram contrarrevolucionários, mas que foram provocados pelo mal-estar, com revolucionários confundidos entre os manifestantes, e que tinha sido provocada principalmente por uma propaganda a partir das redes sociais. Essa teoria caiu imediatamente, porque a situação atual é praticamente a mesma que a de antes da explosão do dia 11 de julho. Houve várias tentativas de convocar manifestações a partir das redes sociais e não foram bem-sucedidas. Existe algo que a burocracia cubana não vê, e agora que passou um tempo, o discurso oficial do Governo cubano, de Díaz-Canel e de investigadores do Ministério do Interior, utiliza o termo de “golpe brando”, fazendo alusão ao Maidán na Ucrânia. Então, essa propaganda política é muito eficaz, no sentido de que, além disso, a burocracia cubana reivindica e ainda mantém parte do capital político que herdou da revolução cubana.

Isso tem consequências nefastas: uma é a desmobilização e inclusive o anticomunismo de uma boa parte da juventude, e a migração de mais de 145.000 cubanos para os Estados Unidos pela fronteira com o México desde que a Nicarágua liberou o visto para Cuba, ou seja, desde dezembro do ano passado até hoje. Mais de 145.000 cubanos e a maioria jovens. O fato de o governo cubano hegemonizar o discurso socialista provoca, entre outras coisas, isso. Por sua vez, isso faz com que governo ainda tenha um forte poder de convocatória. Baseado nisso, a propaganda atual do Governo cubano mente, ao ponto de dizer que milhões de trabalhadores esmagaram os protestos do dia 11 de julho; claramente se vê nos vídeos que não foi assim. Portanto, temos esse fator bem complicado. O governo cubano detém o discurso socialista, hegemoniza parte do capital político herdado da revolução, e cria novos instrumentos, como os supostos jovens críticos que recebem todo o amparo da burocracia, todos filhos de burocratas, todos assessores de altos burocratas, trabalhando na chancelaria, por exemplo.

Também promovem jovens para novos cargos: jovens que perseguiram jovens intelectuais críticos, que desempenharam um papel perseguidor com aqueles de nós que foram presos no dia 11 de julho, que, como no meu caso, lutaram e conseguiram minha demissão. No geral, esses jovens oportunistas promovidos a cargos ou com determinados benefícios, em algum momento distante que gostariam de apagar, foram críticos e a melhor maneira de negar todo o passado revolucionário é perseguir seus antigos acamaradas. Representam a atualização da degeneração política da burocracia. Essa é uma tentativa frustrada de lavar a cara, porque a juventude sabe que esses jovens não são críticos e são os mais leais. Em meio a esse cenário, fica muito difícil o trabalho político da esquerda crítica, porque nos encontramos diante de uma situação duplamente complexa. Paradoxalmente milhares de jovens não acreditam no socialismo porque acreditam na propaganda da burocracia: acreditam que Cuba é socialista e enxergam como socialismo todos os erros e a degeneração política da burocracia. Por isso, muitas vezes os jovens trabalhadores nos respondem que não querem saber nada de comunismo.

Pessoalmente fiz amizade com os trabalhadores de um restaurante muito bem-sucedido, que não vou dizer o nome. Esses trabalhadores trabalham mais de 12 horas, sem direito a férias, sem direito a sindicatos, sem direito a adoecer ou engravidar. Dependem de nada menos do que a “boa vontade” do patrão, da administração. Quando lhes fazia ver que eles são os que detêm o poder e que podem expulsar o burguês e criar um sindicato, rapidamente se assustaram e me disseram, “lá vem você com seu discurso comunista”. Esse é um dos restaurantes mais bem sucedidos de Cuba e o patrão não lhes dá nem sequer almoço. Não lhes dão nem um prato de comida, tudo precisam pagar. Os outros trabalhadores dos restaurantes são como eles.

Então, essa é a situação política. Acrescente a isso que, se saímos as ruas para distribuir os mesmos artigos que colocamos em Comunistas, corremos um alto risco de ir preso por divulgar algo que é chamado “propaganda inimiga”. Isso é um artigo que está tipificado no Código Penal; não do novo Código Penal reforçado para a penalização dos protestos, mas do mesmo Código Penal que estava desde a Constituição do ano de 76. Nos aplicariam o artigo de “propaganda inimiga”. Esse foi um dos artigos com os quais proibiram o Partido Obrero Revolucionário Trotskista, indo para a prisão entre eles, o último militante do POR-T, Juan León Ferrera, ao que eu sempre digo que necessitava um reconhecimento muito maior, porque tudo o que estamos fazendo hoje e o que dizemos em Comunistas, custou a eles a prisão, anos de prisão, anos de repressão.

Nem a opressão política nem a repressão política aos dissidentes de esquerda são novas, vem desde a década de sessenta. Como é essa situação hoje?

Olha, não nós enquanto Comunistas, mas particularmente me marginalizaram politicamente, e a muitos a burocracia persegue diretamente. Porém, claro, não estamos presos como esteve Juan León e Idalberto Ferrera, que foram companheiros que cumpriram anos de prisão pelo fato de dizer o mesmo que nós estamos dizendo e fazendo; além de que o POR-T se constituiu como partido enquanto nós somos uma pequena agrupação, nucleada em um comitê editorial.

Isso complexifica muito a situação da esquerda crítica hoje, de criar consciência na classe trabalhadora. Tudo isso faz com que a luta de classes seja cada vez mais complexa, porque mesmo no exterior a percepção é complicada. Temos dentro dessa esquerda crítica, que é uma esquerda ampla, desde socialistas republicanos, social-democratas abertamente social-democratas, socialistas que apostam em uma linha de socialismo de mercado de Deng Xiao Ping, esse socialismo de mercado (entre muitas aspas fica a palavra socialismo) que na realidade é um capitalismo dirigido por um partido comunista. Também estão os anarquistas e estamos nós, marxistas, além de outros coletivos pequenos de esquerda também socialistas.

Aproveitando o gancho a partir do que nos falava sore os trotskistas da década de sessenta, em um recente artigo você falou do “desembarque” dos trotskismos em Cuba. A que você se refere com isso?

Ponho essa esquerda crítica depois dos protestos de 11 de julho, porque antes de existir, existiam os anarquistas que sempre estiveram organizados, mas essa esquerda crítica se consolidou e internacionalizou depois do 11 de julho. O salto para a internacionalização da esquerda crítica também tem suas origens no evento León Trótski, de 6 a 8 de maio de 2019, quando desembarcou os trotskismos em Cuba, e para ficar. Estavam ausentes em Cuba desde 1973. Claro, esteve a companheira Celia Hart, mas o surgimento de um setor interessado pela presença do pensamento de León Trótski, de estudantes pedindo o livro “A revolução traída” para ler, isso não tinha acontecido novamente desde o ano de 7. O evento León Trótski que mencionei provou a chegada dos trotskismos, algo que se consolidou com a fundação do Comunistas em 10 de junho de 2020 e os acontecimentos de 11 de julho, Comunistas servindo de ponte para os trotskismos desembarcarem, mas sobretudo – mais que organizações – as ideias de Trótsi, que são as principais ferramentas para poder entender a queda da União Soviética, porque se ficamos apenas com Lênin, torna-se quase impossível entender a degeneração do Estado Operário.

Nada, nenhum marxista antes de Trótski tinha anunciado e descrito tão bem a queda da União Soviética de maneira tão certeira, exposta magistralmente em “A Revolução Traída”. Isso não tinha acontecido até o momento. Rosa Luxemburgo fez um apontamento muito rápido em seu texto “A Revolução Russa”, mas duas ou três orações. Neste caso, Trótski se dedica inteiro a um excelente livro chamado “A Revolução Traída”, além de todos os outros textos que já conhecemos. É um livro que cada vez mais nos pedem no Comunistas “um exemplar de A Revolução Traída, um exemplar de A Revolução Traída”, e sempre dizemos a todos os companheiros trotskistas para trazerem um exemplar de “A Revolução Traída” quando vierem para Cuba, não para nós lermos, mas para a pessoa, ao jovem que conheça, no lugar onde está hospedado, que veja que é de esquerda e que está descontente, que é crítico à burocracia, para dizer-lhe: bom, leia isso e depois, se quiser, entre em contato com o Comunistas, mas primeiro leia isso, “A Revolução Traída”.

Na esquerda crítica e jovens, muitos jovens que também não tinham vínculos conosco começaram a ver publicações e diferentes organizações trotskistas. Inclusive, está ocorrendo um fenômeno interessante de jovens que têm certa predisposição positiva com o trotskismo, apesar de tanta propaganda burocrática contra o trotskismo. O mesmo se vê quando existe uma proposta marxista revolucionária que alterne, que seja eficaz ao discurso da burocracia, o que se encontra até agora são as ideias trotskistas. E se fez e se faz muito interessante como os trotskistas construíram uma resposta marxista ante à crise. Isso demonstra a quebra da hegemonia política da burocracia, que o mesmo foi demonstrado nos fatos – e é o que temem – com o 11 de julho, onde milhares de jovens trabalhadores protestaram contra eles. Porque em Cuba existe uma avidez por uma saída à crise desde a esquerda. Eu sempre falo dos trotskismos porque não creio que todas as correntes sejam iguais, o que representa vocês como corrente trotskista internacional FT-CI, as agrupações do morenismo, de alguma agrupação posadista, que uma agrupação cliffista, do Secretário Unificado, do Partido Obrero, do Política Obrera, são posições diferentes.

Voltando ao tema do programa político para Cuba, como se processa na esquerda crítica?

É preciso entender também que essa ampla gama da esquerda crítica também complexifica a luta. Mas é normal que surjam novos coletivos, novas imprensas dentro da esquerda crítica, dentro de uma oposição de esquerda à burocracia, porque é o ciclo natural da luta de classes. A burocracia está cada vez mais desgastada; Comunistas batem na nossa porta, falam com nossos estudantes de todas as províncias. Aos poucos surgirão outros coletivos, surgirão outras imprensas, porque é inevitável ver que a burocracia se faz cada vez mais indefensável.

O que aconteceu? Como dizia antes, recentemente a burocracia, por exemplo, anunciou 75 medidas que reforçam a Tarefa de Ordenamento, e ali entra o da convertibilidade que não gera mais que inflação à medida que o dólar dispara. Em 2003, quando a economia cubana estava muito estável com Chaves nos fornecendo todo o petróleo e os alimentos que nos faltavam, o companheiro Juan León Ferrera já estava anunciando que a inflação seria o chicote da classe trabalhadora, porque a classe trabalhadora cubana não tinha o controle dos meios de produção.

Então essa medida se soma ao fato de que o ministro, naquele pacote de medidas, anuncia que vai analisar o setor orçado, quer dizer, aquele setor das instituições que recebem diretamente dinheiro do Estado e não geram produção, que vão revisar os programas de ajuda social. Estamos falando evidentemente de um corte da política social, um corte nos empregos estatais. Vai ser evidentemente visto, vai ser reforçado o setor da economia privada, então esse programa não pode ser defendido pela esquerda crítica. Ao mesmo tempo, as liberdades políticas e sociais se reduzem.

Então, que programa levantar ante isso? Controle operário dos meios de produção e democracia trabalhadora. A classe trabalhadora cubana não pode decidir sobre o rumo econômico e político de Cuba. Então o programa do Comunistas – e é o programa que deve ter todo marxista coerente e consequente em Cuba – é defender que a classe trabalhadora tome o controle dos meios de produção diretamente, e possa decidir as políticas econômicas, exteriores e nacionais a serem seguidas, que possam decidir diretamente. E como fazê-lo, o que fazer, como diria Lênin, é aí que a situação se complica por tudo o que estava explicando. Por que, como podemos fazer para que a classe trabalhadora tome o poder? Porque evidentemente tem que tomar o poder.

A burocracia não vai ceder os privilégios políticos, o poder político, não vai dá-lo à classe trabalhadora, não vai dar-lhe o poder de decidir sobre as empresas que controla, que não são sua propriedade, mas que controla; sobre seus negócios privados. Não vai dar à classe trabalhadora a capacidade de decidir economicamente, porque a classe trabalhadora não vai legislar contra ela, não vai se desempregar, não vai fechar empresas, não var cortar políticas sociais. Que classe trabalhadora vai fazer isso? Que pessoa vai ser afetada? Em nome de que?

Então, evidentemente é uma burocracia irreformável, mas então temos também outra disjuntiva. Se a burocracia cubana cair agora, quem subirá ao poder? Quem está organizado? Quem tem dinheiro? A contrarrevolução. Se cair agora mesmo a burocracia por protestos populares, o mais provável é que esses grupos organizados pela contrarrevolução, com apoio direto dos Estados Unidos e ante a ausência de poder que isso geraria, estariam desembarcando. O que viveríamos seria uma ditadura anticomunista e neoliberal. Isso sabemos todos. É preciso ver também que também nesse processo de luta, no mesmo momento que ocorra, que papel conseguiria ter a esquerda crítica.

Trótski teve um dilema muito similar ao nosso, inclusive quando Stálin invade a Finlândia vem a primeira grande discussão entre os defensistas, Sachtman e Trótsi. Trótski disse constantemente que era preciso defender o estado operário, era preciso defender o pouco que restava da União Soviética. No “Em defesa do marxismo”, ele diz abertamente que é preciso haver uma revolução, diz que se deve aproveitar a Segunda Guerra Mundial para isso. Mas, ao mesmo tempo que defende o estado operário ante a contrarrevolução, contra o imperialismo, defende que era preciso fazer uma revolução política contra a burocracia, os trabalhadores precisavam fazer essa revolução. Então, temos esse mesmo dilema aqui em Cuba.

Muito obrigado Frank por essa entrevista. Seguramente voltaremos a nos encontrar para tratar sobre diversos temas que tocamos nessa conversa, mas que por razões de espaço não foi possível abordar, e que por sua profundidade seria necessária outra reportagem.


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