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Fascismo ou bonapartismo? Lições de Trótski para pensar o Brasil

André Barbieri

Fascismo ou bonapartismo? Lições de Trótski para pensar o Brasil

André Barbieri

O marxismo é um guia para a ação e, enquanto tal, um guia para o pensamento que ordena e diferencia os fenômenos de acordo com a situação concreta. No Brasil, a organização e a luta decidida contra a extrema direita bolsonarista é uma necessidade de primeira ordem, reafirmada pelos resultados do 1º turno eleitoral em que a selvageria bolsonarista obteve êxitos no interior do regime. Ocorre que, com a finalidade de impedir a mobilização das bases nas ruas contra a extrema direita, a direção de campanha de Lula e o PT elegeram o artifício de dizer que estamos diante da “ameaça fascista”. Isso serve para melhor acobertar o obstáculo que estão opondo ao enfrentamento sério contra Bolsonaro.

Baseando-se nos traços fascistizantes reais de Bolsonaro, a operação trata de criar a dualidade “fascismo vs. democracia” e insuflar terror em setores de massas para que o rechaço à extrema direita seja canalizado às urnas para a chapa Lula-Alckmin. Uma fórmula presidencial que, diante do programa ultraliberal e trumpista de Bolsonaro, oferece a conciliação de classes com a direita, com o grande capital industrial e financeiro, e com a ala Democrata e dirigente do imperialismo norte-americano, todos responsáveis pela direitização do país a partir do golpe institucional de 2016, que facultou a vitória da extrema direita e nos trouxe até aqui.

Correntes como a Resistência/PSOL aderem de corpo e alma à operação petista. Valério Arcary ecoa a propaganda de ideólogos petistas como Emir Sader na dualidade “fascismo vs. democracia”. Com larga tolerância à substituição aleatória de conceitos, Arcary agita a necessidade de derrotar ora o “neofascismo à brasileira”, ora os “fascistas”. Isso se daria por meio das urnas, nas eleições. É o que determina a Resistência, que convoca a “avermelhar o país para derrotar o fascismo nas eleições”. Nessa adesão flamante à política de conciliação da chapa Lula-Alckmin, essa organização “não resiste” nem mesmo ao insólito argumento do chamado “fascismo de segundo mandato”, que reza que, se Bolsonaro não foi capaz de erguer um governo fascista em sua primeira estadia presidencial, certamente o faria na segunda.

Mais abaixo vamos discutir o que é o fascismo e o que existe hoje no Brasil. Mas antes disso queremos mostrar como a Resistência rompe terminantemente com o marxismo, inclusive se fosse verdade que no Brasil estivéssemos sob a égide do fascismo.

Como combater o fascismo na tradição marxista?

A extrema direita bolsonarista é a inimiga central de toda a classe trabalhadora, das mulheres, dos negros, dos indígenas e dos LGBTs. Bolsonaro e seus esbirros possuem elementos protofascistas notáveis. Transformemos, hipoteticamente, esses elementos protofascistas individuais em uma tendência de massas. Imaginemos que o que se vive no Brasil seja uma ascensão fascista. Isso só poderia se tornar realidade diante de um ascenso, no outro polo, da classe trabalhadora com seus próprios métodos, numa situação que prefigura choques entre revolução e contrarrevolução. O que faria a organização de Valério Arcary diante de um fenômeno fascista real? O Resistência – que se sente à vontade dissolvido numa chapa com Alckmin, a Fiesp, a Febraban, o Partido Democrata norte-americano, todos dotados de exímias credenciais golpistas – considera que o fascismo se combate com o voto nas urnas, votando nas urnas uma aliança do PT com a direita.

Derrotar o fascismo nas eleições” é a bandeira da Resistência. Essa organização agita através de Arcary e seus portavozes a urgência de utilizar as urnas e o voto como eficaz arma antifascista. A conclusão lógica é retirar o enfrentamento ao fascismo do terreno da luta física entre as classes, e inseri-la nos canais normais de domínio da burguesia em “tempos de paz”. Ato seguido, a tarefa da esquerda seria reunir a mais ampla frente com as “forças antifascistas” (no caso de Luciana Genro do MES/PSOL, se convertem em “forças democráticas”), denominação que muitas personalidades do regime político utilizam ao se referir à Frente Ampla Lula-Alckmin – celebrando a adesão da direita e dos funcionários econômicos neoliberais dos 90, como Persio Arida, Armínio Fraga, Pedro Malan e cia.

Mas, é essa realmente a maneira de se enfrentar um fenômeno de ascensão fascista? Na tradição marxista, a lógica política opera com vetores exatamente inversos a esses. O combate ao fascismo só se dá pela luta de classes, com uma política hegemônica da classe operária, independente de todas as frações da burguesia. Em outras palavras, à luz da teoria marxista o combate ao fascismo passa pela unificação do conjunto dos trabalhadores no terreno da ação contra o conjunto da burguesia,em aliança com as mulheres, os negros, a juventude e os povos oprimidos. Estamos tratando do terreno da política de frente única operária, elaborada pela direção de Lênin e Trótski na Internacional Comunista.

A tática da frente única operária, elaborada nos III Congresso da Internacional Comunista em 1921 (teorização inspirada no êxito da luta dos operários alemães contra a tentativa de golpe de Estado de Wolfgang Kapp e Walther von Lüttwitz), é parte do arsenal de tesouros legados pelo marxismo com predominância estratégica na nossa época. Implica, por um lado, em acordos com os reformistas como aliados circunstanciais, com o objetivo de unificar as fileiras operárias para lutas parciais em comum, incluindo o rechaço aos ataques da extrema direita aos direitos democráticos (aspecto tático). Por outro lado, como objetivo principal, busca a ampliação da influência dos partidos revolucionários como produto da experiência em comum (ou do seu rechaço pelas direções reformistas), no sentido de ganhar a maioria dos trabalhadores para a tomada do poder (aspecto estratégico). Sempre de maneira independente a todas as distintas frações da classe dominante. O triunfo de Hitler na Alemanha, em 1933, se deu pelo menosprezo do stalinismo à tática da frente única operária – adotando a prorrogação da luta de classes, impedindo qualquer unificação dos operários comunistas com os socialdemocratas contra as bandas fascistas. Posteriormente, com um giro de 180º, a prorrogação da luta de classes por parte de Stálin passou a ser representada pelas Frentes Populares, que tiveram o mesmo fim de derrotar revoluções e conceder o triunfo ao fascismo na França e na Espanha.

Antes do triunfo de Hitler em 1933, a Oposição de Esquerda trotskista empenhava esforços para lograr a unificação dos operários socialdemocratas e comunistas no terreno do combate aos fascistas (na defesa das fábricas, dos bairros operários, dos direitos democráticos da população alemã e dos povos coloniais oprimidos, etc.). Essa política de unificação independente dos trabalhadores foi sabotada pela direção stalinista da IC, na Alemanha e na Áustria, fruto da diretriz do “terceiro período”, em função da disputa do aparato comunista contra o reformismo socialdemocrata no seio do movimento operário, desvantajoso àquele após os desastres oportunistas na Inglaterra em na China. Com o triunfo dos nazistas fruto da catastrófica política sectária dos stalinistas, a IC passa a encampar a política simétrica oposta, não apenas aliando-se à socialdemocracia europeia (abstendo-se de criticar os reformistas durante a vigência dos acordos) mas também com a ala “democrática” dos partidos burgueses imperialistas. O acordo Stalin-Laval na França - em que a aliança militar com o imperialismo francês ficava afiançado mediante a garantia da “paz social” por parte do PCF - foi o modelo para a generalização da linha das Frentes Populares “antifascistas” a todo o mundo. A frente única operária, que tinha como núcleo a unidade de ação dos trabalhadores (em aliança com todos os setores oprimidos) por objetivos práticos na luta de classes, foi direcionada por Trótski para o combate à política de oportunista de conciliação de classes das Frentes Populares.

Na década de 1930, Trótski combateu frontalmente a política de conciliação com a chamada ala republicano-democrática da burguesia sob a denominação de “frentes antifascistas”, que sempre encontra sua expressão eleitoral. Essa foi a bandeira sob a qual o stalinismo instituiu uma frente de colaboração de classes (“Frentes Populares”) com a burguesia republicana na França e na Espanha, destruindo estes enormes processos revolucionários e facilitando o caminho dos fascistas. No Brasil, o eco dessa política na segunda metade do século XX pavimentou uma série de derrotas. Sob os auspícios do PCB no pré-64, essa política de conciliação havia levado à derrota do ascenso operário e camponês e facilitado o triunfo dos militares. A conciliação com a “burguesia democrática” no período pós-ditadura levou à permanência da tutela militar sobre a Constituição de 1988, e aplainou o caminho ao neoliberalismo dos anos 1990. São fartas as referências históricas que levam à mesma conclusão.

Enfrentando uma situação de ascensão real do fascismo, Trótski ilumina o problema em um diálogo com os operários austríacos, de julho de 1936. Criticando a política dos socialistas e stalinistas da Áustria, que propugnavam a aliança com as “forças antifascistas” nacionais contra Hitler, dizia: “Toda sua política se baseia na seguinte idéia: o principal inimigo dos trabalhadores austríacos e russos é Hitler. Portanto, a primeira tarefa é golpear Hitler. Por isso é necessário que o proletariado se alie às ‘forças antifascistas’, um termo vergonhoso que inclui a burguesia ‘democrática’ dentro e fora da Áustria. Logicamente, esta aliança não pode ser formada sem o adiamento da luta de classes. A aliança do proletariado com a burguesia é inconcebível em qualquer outra base. Mas, como mostramos, esta política facilita a vitória dos nazistas”.

Trata-se de uma reflexão lapidar. A aliança com a burguesia (considerada como parte das “forças antifascistas”) significa prorrogar a luta de classes, secundarizar a mobilização e organização independente para enfrentar a extrema direita. Do ponto de vista do enfrentamento a um fenômeno fascista, significa renunciar à aplicação cirúrgica do único remédio eficaz. Se abstrairmos temporariamente a caracterização do que existe no Brasil, podemos enxergar no aspecto da “prorrogação da luta de classes” o modus vivendi da burocracia petista. A título de exemplo, mesmo diante do ataque de Bolsonaro às universidades federais, as direções burocráticas ligadas ao PT fogem como da peste da organização da luta. Lula não deseja dar qualquer sinal de instabilidade aos empresários que corteja com Alckmin. A solução é deixada às urnas, apostando eleitoralmente na conciliação com a burguesia para “derrotar o fascismo”, quando os eventos do 2 de outubro revelaram que uma política tal só fortalece a extrema direita.

Em suas cartas a Andreu Nin e aos oposicionistas de todo o globo, Trótski critica que tais alianças com a burguesia, seja sob a denominação de “frente antifascista” ou Frente Ampla, eram apresentadas na década de 1930 como a “frente única das massas” por figuras como Henri Barbusse, Romain Roland ou pelos dirigentes da Internacional Comunista já stalinizada. “Entretanto, esta ideia elementar, que é correta quando se refere às organizações de massa do proletariado, perde todo o sentido quando se refere a personalidades burguesas, pacifistas, democratas do mundo literário, etc.” Conclui que “todos estes blocos, congressos e comitês têm como objetivo esconder a passividade, a covardia e a incapacidade de resolver as tarefas que constituem a própria essência da luta de classes do proletariado”.

Trótski esteve correto em seus prognósticos. Os que queriam resolver “eleitoralmente” o problema fascista levaram milhões ao pesadelo dos anos 1930. A aliança da socialdemocracia e dos stalinistas austríacos com a burguesia nacional levou à passivização da luta de classes em nome da “luta antifascista”; aproveitando a desmoralização dos trabalhadores, o governo Dollfuss encenou uma série de provocações a fim de gerar um incidente que, em fevereiro de 1934, permitiu às tropas austríacas aniquilar os trabalhadores. Na França, a aliança dos partidos socialista e comunista com a burguesia republicana (Partido Radical) levou à conformação da Frente Popular em 1936; supostamente arquitetada para “frear os fascistas” que avançavam desde 1934, a Frente Popular freou a luta de classes, representada na expansão da onda de ocupação de fábricas, e facilitou o caminho para a derrota do ascenso revolucionário, abrindo caminho para o regime entreguista do Marechal Pétain após a ocupação nazista. Na Espanha, a Frente Popular de anarquistas, socialistas e stalinistas (contando com Nin e o POUM) com a burguesia republicana de Manuel Azaña e Martínez Barrio, sustentando os mesmos princípios de defesa da propriedade e do domínio capitalista, destruiu a heróica revolução espanhola. Sabotou gradativamente todas as formas de organização e luta dos trabalhadores espanhóis, dissolveu os comitês, desarmou as milícias operárias, entregou as fábricas e as terras aos antigos proprietários, pavimentando o caminho para o fascista Francisco Franco. Em todos esses cenários, ficou claro que a derrota do fascismo não tinha nada a ver com as “urnas”, como agita a Resistência em sua ruptura com o marxismo.

Então, qual seria o método para enfrentar seriamente um fenômeno fascista real, na tradição marxista? A luta contra o fascismo não se resolve em eleições, mas nos confrontos da luta de classes, que envolvem a luta física, cuja premissa é a independência política diante de todas as frações burguesas. Tomando o exemplo da Espanha, Trótski opôs à Frente Popular a luta veemente pela entrega imediata das terras aos camponeses (abolição do latifúndio e expropriação dos grandes proprietários rurais) e a entrega imediata das fábricas aos operários (expropriando os capitalistas). Tão importante quanto isso, Trótski hierarquiza o combate contra a opressão imperialista espanhola no Marrocos, defendendo contra a Frente Popular a emancipação dos povos oprimidos pelo governo de Madri, que era um golpe frontal aos exércitos franquistas. Trata-se do oposto da lógica da aliança com as “forças antifascistas”: a garantia das demandas sociais e econômicas anticapitalistas é o fundamento mais eficaz para a organização da defesa dos direitos democráticos elementares. Isso se faz pelo método da frente única. A frente única operária, a unidade de ação que organiza os trabalhadores por objetivos práticos na luta de classes contra o conjunto dos ataques da burguesia (inclusive a dita “democrática”), é a política correta para enfrentar a extrema direita (e o fascismo). Discutindo a situação alemã pré-nazista contra os stalinistas, Trótski afirma que “não compreendem a diferença que existe entre um acordo parlamentar e um acordo para a luta por meio da greve ou em defesa das imprensas operárias. Os acordos eleitorais e os compromissos parlamentares celebrados entre o partido revolucionário e a socialdemocracia costumam servir, regra geral, aos reformistas. Acordos práticos para a ação de massas, por fins concretos de luta, servem sempre aos revolucionários”. A sugestão de Trótski é simples e categórica, “Nenhuma plataforma comum com a socialdemocracia ou os dirigentes sindicais alemães, nenhuma publicação, nenhuma bandeira comum! Marchar separados e golpear juntos! É necessário e suficiente colocar-se de acordo unicamente em como golpear, quem golpear, e quando golpear!”. É preciso notar, ademais, que nesse momento Trótski problematiza os métodos parlamentares dos compromissos eleitorais (em detrimento dos métodos da luta de classes) entre organizações operárias, ou seja, com partidos reformistas como a socialdemocracia. Não havíamos entrado no período das Frentes Populares. Quão pior é a adaptação oportunista da Resistência, que se dilui numa fórmula presidencial aliada com a direita, o grande capital e a ala Democrata do imperialismo estadunidense!

Esse método da frente única operária de Trótski (como golpear, quem golpear e quando golpear) se mostrou exitoso na realidade? Sim, em muitos momentos. Em 1917, na luta contra a intentona de Kornilov (de caráter fascista, contra a revolução russa) a política de frente única proposta pelos bolcheviques aos mencheviques e socialistas revolucionários (reformistas que estavam à cabeça dos soviets conciliadores no governo de Kerenski) unificou os trabalhadores e aniquilou a ofensiva dos generais aliados a Kerenski, abrindo caminho ao fortalecimento dos bolcheviques às custas dos conciliadores. O combate a Kornilov foi feito sem nenhum apoio a Kerenski, e não mediante o auxílio das urnas, e sim com armas nas mãos. Em março de 1920, a frente única dos sindicatos alemães foi a razão da derrota da tentativa de golpe de Estado de Kapp-Lüttwitz. Na mesma Alemanha, na luta contra Hitler, Trótski sublinha que em regiões como de Bruchsal e Klingenthal a frente única operária foi concluída entre os operários comunistas, os membros centristas do SAP (dirigidos por Brandler-Walcher, ex-Oposicao de Direita) e os sindicalistas, apesar de suas próprias direções, derrotando os nazistas locais. Na Revolução Espanhola, as jornadas de Barcelona de 1936 integraram operários socialistas, anarquistas e comunistas, esmagando a reação fascista (antes de serem contidos e desarmados pelo exército da Frente Popular). No mesmo Brasil, ainda que em menor escala, a Revoada das Galinhas Verdes, em 1934, com protagonismo dos trotskistas na frente única com trabalhadores de distintas organizações políticas, varreu os integralistas da Praça da Sé.

A tática da frente única operária, elaborada nos III Congresso da Internacional Comunista, é parte do arsenal de tesouros legados pelo marxismo com predominância estratégica na nossa época. Implica, por um lado, em acordos com os reformistas como aliados circunstanciais, com o objetivo de unificar as fileiras operárias para lutas parciais em comum (aspecto tático). Por outro lado, como objetivo principal, busca a ampliação da influência dos partidos revolucionários como produto da experiência em comum (ou do seu rechaço pelas direções reformistas), no sentido de ganhar a maioria dos trabalhadores para a tomada do poder (aspecto estratégico). Sempre de maneira independente a todas as distintas frações da classe dominante. O triunfo de Hitler na Alemanha, em 1933, se deu pelo menosprezo do stalinismo à tática da frente única operária – adotando a prorrogação da luta de classes, impedindo qualquer unificação dos operários comunistas com os socialdemocratas contra as bandas fascistas. Posteriormente, com um giro de 180º, a prorrogação da luta de classes por parte de Stálin passou a ser representada pelas Frentes Populares, que tiveram o mesmo fim de derrotar revoluções e conceder o triunfo ao fascismo na França e na Espanha.

Ao contrário da política marxista da frente única operária, o Resistência adota uma variante da política antimarxista das Frentes Populares. Sua política privilegia os blocos eleitorais com a direita “antifascista” e a mistura de bandeiras com a Fiesp, Alckmin e Biden. “Marchar juntos e não golpear jamais” é sua fórmula. Não tem outro sentido sua adesão à política-programa de conciliação da chapa Lula-Alckmin, incapaz de enfrentar o bolsonarismo, mas suficientemente útil para fortalecê-lo. É uma política vergonhosa, de adiamento da luta de classes em nome da unidade com nossos algozes.

Assim, se houvesse um ascenso fascista no Brasil, a política da Resistência levaria fatalmente à derrota dos trabalhadores. Trata-se de uma ruptura sem mediações com a tradição marxista.

Qual o objetivo de chamar de fascismo aquilo que não é?

Mas, o que existe realmente no Brasil?

Apesar do Resistência fazer uma fotocópia (até mais exacerbada) da propaganda petista sobre o “fascismo”, essa não é a realidade política do país. É preciso distinguir a atuação reacionária da extrema direita bolsonarista da categoria teórico-política do fascismo.

Na tradição marxista, que aprende com a realidade sobre a base da prática generalizada teoricamente, a essência do fascismo consiste em liquidar completamente todas as organizações operárias e através de sua atomização impedir que ressurjam. Diz Trótski que na sociedade capitalista desenvolvida, “não é possível alcançar este objetivo apenas por meios policiais. A única maneira de consegui-lo consiste em opor diretamente à pressão do proletariado – quando esta se debilita – a pressão das massas pequeno-burguesas desesperadas. É este sistema particular de reação capitalista o que entrou para a história sob o nome de fascismo”. O fascismo nasce da união do desespero das classes médias e da política terrorista do grande capital financeiro, que impulsiona estes setores arruinados da pequena burguesia a considerarem que a razão de sua ruína é a luta de classe dos trabalhadores. Trata-se da resposta contrarrevolucionária, posterior ou preventiva, diante de choques francos e abertos entre as classes, que assumem suas posições de luta direta.

Bolsonaro é, mais uma vez, a selvageria da extrema direita trumpista, e é preciso captar em toda a sua dimensão o caráter profundamente reacionário de sua política. Não é por outra razão que deve ser combatido seriamente, com os melhores métodos históricos dos trabalhadores. Como disse Luiza Eineck, estudante do Serviço Social da UnB e integrante da Faísca, “precisamos construir a unidade para combater os cortes na educação, o bolsonarismo e essa extrema direita nojenta, que não esteja aliada aos patrões e à direita, como está o PT”. Entretanto, o mínimo rigor teórico revela que, exceto em determinadas fantasias eleitorais, não existe fascismo ou ascensão fascista no Brasil. Há muitos estágios de transição intermediários entre a democracia burguesa degradada e o fascismo, variadas gradações bonapartistas, nenhum dos quais é atingido sem comoções importantes. O conceito de bonapartismo nos ajuda a captar o núcleo do governo. Trótski definia o bonapartismo como forma de governo que busca se elevar por cima dos campos de classe em luta, apoiando-se mais diretamente nas forças armadas em detrimento do parlamento, sempre com o fim de preservar a propriedade capitalista e impor a ordem, sem ainda soar o alarme de enfrentamentos físicos mais decisivos. O bonapartismo “é o instrumento da ‘ordem’. É chamado a salvaguardar o existente. O bonapartismo, ao erigir-se politicamente acima das classes como seu predecessor cesarismo, representa no sentido social, sempre e em todas as épocas, o domínio do setor mais forte e firme dos exploradores”. Esta definição, pensada para os países europeus, diz respeito ao poder determinante do capital financeiro imperialista, “que dirige, inspira e corrompe os setores mais altos da burocracia estatal”. Aplicado a governos de regiões dependentes com traços semicoloniais, como na América Latina, tem o sentido da representação nativa do entreguismo ao capital financeiro estrangeiro. Bolsonaro é o símbolo da submissão mais grosseira ao imperialismo. Ademais, entregou-se nos braços dos generais de seu governo e no autoritarismo judiciário para impor ataques favoráveis ao capital financeiro e industrial. Apesar disso, não conseguiu prescindir do parlamento, dependendo sistematicamente de sua base no Congresso para evitar crises. Esta variante bonapartista bolsonarista serviu para o amedrontamento dos setores de vanguarda, o que ajudou a revitalizar a outra ala do bonapartismo, o judiciário, que defende métodos “democráticos” (que inclui preservar dispositivos da ditadura, como o artigo 142 que assegura aos militares o direito de intervir na política “em caso de desordem pública”) para perseguir os objetivos do capital financeiro. Além de reoxigenar a noção clássica do petismo da aliança “capital-trabalho”, a impossível tentativa de conciliar os interesses do capital financeiro e as massas.

Esse olhar científico sobre a realidade, que não confunde etapas políticas distintas, é indispensável para melhor combater a extrema direita. Não há choques entre revolução e contrarrevolução no Brasil; não há mesmo agitação nas bases operárias nem um grau de luta de classes que determine à grande burguesia preparar a utilização de métodos de guerra civil contra os trabalhadores e a população pobre. Bolsonaro não pode dispensar sua base parlamentar, sem a qual é frágil; foi condicionado por meses às instituições legislativas e judiciárias (STF) do atual regime, que buscam “normalizá-lo” ao absorver em si a extrema direita. As condições de possibilidade de um movimento fascista não dependem dos desejos pessoais de um líder, mas das exigências objetivas de uma das classes em luta para reter seu domínio ameaçado. Isso não significa reduzir a importância dos elementos de direitização no país, nem exclui as ameaças golpistas, ataques aos procedimentos eleitorais, e outros ademanes próprios do bolsonarismo. Implica compreender o atual estágio dos conflitos sociais, a fim de desenvolver uma orientação justa.

Dito isso, devemos esclarecer: não nos encontrando diante de tal fenômeno, qual o objetivo das direções que enaltecem a “ameaça fascista”? O objetivo é gerar uma atmosfera de medo capaz de convencer de que a única maneira de evitar o endurecimento do regime e os “arrebatamentos fascistas” é a “liderança de Lula”, ou seja, seu triunfo eleitoral. Valério Arcary e a Resistência são as vozes sonantes, a baixo custo, da campanha de Lula-Alckmin, que se esmera agora em mostrar boas relações com as cúpulas das igrejas e fazer propaganda de que não defende o direito das mulheres ao aborto. A adesão ao conteúdo de campanha do PT vai ao ponto de assumir o discurso oficial sobre as reformas antioperárias. Segundo Arcary, a reforma trabalhista deve ser “revisada”. Essa maneira de negar o programa da revogação integral de todas as reformas ultraliberais atende aos desígnios do grande empresariado. A conciliação tem consequências, e o rebaixamento do programa em questões vitais das mulheres e da classe trabalhadora é a conclusão.

Chamar de fascismo o que acontece no Brasil hoje serve não apenas para impedir o movimento de massas de se preparar para uma verdadeira ameaça fascista. Serve para legitimar a corrente política do PT, sua coligação social-liberal atual, que freia a mobilização para enfrentar os ataques econômicos e sociais impostos pela extrema direita. Como diz Trótski, a aliança com as “forças antifascistas” serve apenas para prorrogar a luta de classes, já que a conciliação com a burguesia só se pode dar sobre as bases da “paz social”. É o que o PT vem fazendo desde o golpe institucional de 2016. Quem poderia esquecer a greve geral do 28 de abril de 2017, contra a reforma trabalhista de Temer, cuja continuidade foi bloqueada pelas centrais sindicais ligadas ao PT? Ou a passagem da nefasta reforma da previdência em 2019, sem resposta? O próprio assassinato de Marielle, do mestre Moa, ambos em 2018, ou a dos ambientalistas Bruno Ferreira e Dom Phillips, em 2022, que mereciam paralisar o país contra a extrema direita, e que foram ignorados pelas centrais? Os itens da Carteira Verde e Amarelo, de Paulo Guedes, passados durante a pandemia da Covid-19 e que incrementam o inferno da ditadura patronal, passaram sem luta. Nem falar dos inúmeros ataques à educação pública. A ação do PT através das direções da CUT, da CTB e da UNE foi paralisar o movimento de massas diante dos ajustes mais nefastos da extrema direita. Enganam-se os que pensam que uma situação à direita não permitiria cenários de forte luta de classes; os Estados Unidos de 2020, em pleno governo Trump, mostrou o equívoco dessa tese. O papel das direções é fundamental para entender o momento.

Toda essa ação de contenção da direção do PT, coligada com Alckmin, Biden, o STF e o grande capital, é legitimada pela política da Resistência. É a esse governo Lula-Alckmin, de posse do Estado capitalista brasileiro, que Arcary e a Resistência relegam a tarefa de combate ao dito fascismo, algo que “melhoraria” as condições de luta da classe trabalhadora. Essa concepção socialdemocrata de Arcary, de que o Estado burguês atue como instrumento contra os fascistas, é o último elo de uma grande cadeia de rupturas com o marxismo. Ao contrário desse resgate socialdemocrata de Arcary, o marxismo parte do pressuposto de que o Estado burguês é um órgão de opressão das classes subalternas pelo grande capital. Nesse aspecto, se utiliza, na medida de suas necessidades, de distintos veículos de transmissão do seu domínio, quer “democráticos”, quer fascistas, quandoe xigidos pela luta de classes – num país como o Brasil, inclusive variantes bonapartistas (ou pré-bonapartistas) de direita.

Ademais, à Resistência não importa a estatização dos sindicatos, e o poder da burocracia sindical, ligada ao Estado, para submeter à passividade a necessária organização e luta dos trabalhadores. Rompem com um dos princípios mais básicos do marxismo: que a burocracia sindical é uma “coluna vertebral” da democracia capitalista, sem a qual as classes dominantes não poderiam conseguir um mínimo de estabilidade frente a situações de empobrecimento agudo das massas. Fogem da luta de classes como da peste, e ainda asseguram as ilusões geradas pelo PT na suposta “segurança estatal” de um “governo progressista” contra essa extrema direita atroz que precisa ser esmagada com o punho da auto-organização e de um programa operário que lute pela revogação (não “revisão”!) de todos os ataques econômicos e sociais.

Há 6 anos, quando o MRT lutava contra o golpe institucional da direita contra o governo de Dilma Rousseff, a corrente de Valério Arcary se encontrava em debates internos no PSTU acerca de questões elementares como se posicionar a favor ou contra um golpe institucional da direita. O PSTU, infelizmente, como debatemos inúmeras vezes, assumiu uma posição que se adapta aos golpistas na medida em que considerava um passo adiante que a Lava Jato tirasse o PT do poder. Diante de tamanho equívoco a corrente de Valério Arcary deu um passo adiante naquele momento assumindo uma posição elementar do marxismo contra golpes institucionais deste tipo, o que em si mesmo era apenas o ABC do marxismo e não um grande avanço como a capitulação do PSTU fazia parecer. A situação era trágica, mas depois de infelizmente não terem participado das manifestações contra o golpe, a corrente de Valério Arcary organizou uma festa chamada “É preciso arrancar alegria ao futuro”. Ali se aprofundou um caminho de afastamento do marxismo revolucionário que se consolida com o papel vexatório que essa corrente cumpre neste momento. Sua diluição no petismo, em base ao mais frenético eleitoralismo, já está tendo consequências nefastas para esta corrente, que declara sua “alegria” de mãos dadas com os golpistas, neoliberais e reacionários do STF, da Fiesp, da Febraban e longo etcétera, sem falar de Alckmin e Biden. Resistirá a Resistência? O futuro dirá e será implacável.

Mas a história brasileira e internacional, generalizada pela teoria marxista, deixa grandes lições. É impossível combater a extrema direita e conquistar uma relação de forças favorável aos trabalhadores através de alianças com a burguesia. Foi isso que a Juventude Faísca demonstrou nas distintas intervenções nas universidades pelo país – como na UnB em Brasília, na Unicamp em Campinas, na USP em São Paulo – dialogando com os estudantes e transmitindo uma política firme de independência de classes no combate frontal ao bolsonarismo, sem nenhum apoio político à chapa Lula-Alckmin. Como disse Mariana Duarte na USP, “A primeira tarefa desse momento é organizar a luta contra a extrema direita, e isso só pode acontecer pela via da nossa organização de base, por assembleias, paralisações, e por nossos métodos de luta". Juliana Begiato, na Unicamp, definiu o espírito de combate que deve preencher as discussões: “O bolsonarismo vai seguir no Brasil como força social, com a eleição de figuras asquerosas como Damares, Mourão, Ricardo Salles, e a gente precisa responder o bolsonarismo reacionário na luta e com mobilização sem aliança com a direita; por outro lado ficou claro que a conciliação de classes do PT com os patrões e os empresários não serve pra derrotar o bolsonarismo. Precisamos derrotar a direita com nossas forças, exigindo das centrais sindicais e da UNE assembleias de base em que possamos autoorganizar os estudantes com os trabalhadores, por assembleias de base que deliberem um plano de luta contra todos os ataques”.


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André Barbieri

São Paulo | @AcierAndy
Cientista político, doutorando pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é editor do Esquerda Diário e do Ideias de Esquerda, autor de estudos sobre China e política internacional.
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