Logo Ideias de Esquerda

Logo La Izquierda Diario

SEMANÁRIO

Disputas estratégicas e compromissos de curto prazo entre Alemanha e Estados Unidos

Juan Chingo

Disputas estratégicas e compromissos de curto prazo entre Alemanha e Estados Unidos

Juan Chingo

O gasoduto Nord Stream 2 ligará a Rússia à Alemanha, através de 1.200 km ao longo do Mar Báltico. Sob a presidência de Trump, os Estados Unidos se opuseram ao projeto, mas esta semana Biden chegou a um acordo com Merkel para a construção do gasoduto. Aqui se analisa o significado e as razões do acordo, com o qual os EUA cedem à Alemanha em favor de sua “frente anti-chinesa”, bem como as contradições de fundo que seguem pendentes nas disputas geopolíticas.

A declaração conjunta emitida na última quarta-feira por Washington e Berlim significa que os dois países chegaram a um acordo sobre o polêmico gasoduto Nord Stream 2. Washington permitirá a conclusão do famoso gasoduto que está sendo construído sob o Mar Báltico para transportar gás da região russa do Ártico à Alemanha e que gerou uma forte e longa disputa entre os dois países. Em troca, Berlim dará garantias para proteger o abastecimento de energia da Ucrânia. Este último foi representado graficamente no Twitter pelo chefe da diplomacia alemã, Heiko Maas, que expressou seu "alívio" por uma "solução construtiva". "Vamos ajudar a Ucrânia a construir um setor de energia verde e fazer esforços para garantir o trânsito de gás através da Ucrânia na próxima década", acrescentou. Paralelamente, Kiev e Varsóvia esbravejaram, considerando as contra-medidas do acordo insuficientes; se sentem excluídos por seu principal apoiador, os Estados Unidos. Por sua vez, os oponentes de Joe Biden no Capitólio denunciaram a solução um "presente" ao presidente russo Vladimir Putin.

Interesses estratégicos irreconciliáveis

O custoso compromisso não pode esconder as fortes diferenças que existem entre os dois componentes principais da aliança transatlântica. A Alemanha precisa de energia para seu forte aparato produtivo e para se tornar o centro da Europa e não está disposta a alienar sua relação com a Rússia. Os Estados Unidos procuram impedir que os alemães alcancem a hegemonia europeia e se entendam com o Kremlin. Para esse objetivo estratégico, precisa continuar com a contenção de Moscou, apesar da menor importância da Rússia em relação ao seu papel de superpotência durante a Guerra Fria. Ao mesmo tempo, esses interesses estratégicos contraditórios ocorrem no quadro geopolítico em que Berlim precisa de Washington para garantir sua própria segurança e Washington precisa de Berlim para impedir a ascensão da China e manter a União Europeia na menor desordem possível.

Ambos os poderes, portanto, concordam em manter suas animosidades dentro destes limites. No entanto, o fato de que os EUA cederam na importante disputa sobre o gasoduto Nord Stream 2, de um ponto de vista histórico, mostra um fortalecimento da Alemanha no contexto da submissão que foi imposta a ela após a derrota da Segunda Guerra Mundial e que foi e é a base da hegemonia norte-americana.

Poderíamos dizer que a famosa frase de Lord Hastings Lionel Ismay, primeiro Secretário-Geral da OTAN e principal assessor militar de Winston Churchill durante a Segunda Guerra Mundial, segundo a qual o objetivo da Aliança era "manter a União Soviética fora, os americanos dentro e alemães embaixo” reflete um pouco menos a realidade atual dentro da Aliança Transatlântica. O salto no declínio hegemônico dos Estados Unidos, essencialmente devido a sua fadiga imperial e suas divisões internas, bem como o surgimento de novos atores da China à Turquia permitem que uma potência como a Alemanha, fortalecida após sua reunificação, desfrute de maior margens de manobra no conselho das grandes potências, com o limite de que ainda não recuperou sua plena autonomia estratégica.

E é que, para além dos diferentes compromissos e contrapartidas que os alemães acordaram, o Nord Stream 2 está destinado a transformar a relação germano-russa. Já existe um precedente poderoso nesse sentido, que é a política externa do ex-chanceler Willy Brandt, que resistiu às pressões dos Estados Unidos contra o prosseguimento do oleoduto energético partindo da ex-União Soviética (1973). Uma política de abertura para o leste (Ostpolitik) que desde uma perspectiva histórica abriu o caminho para a distensão e facilitou o quadro geopolítico que mais tarde permitiu a unificação da Alemanha. Hoje, qualquer fortalecimento e consolidação da parceria germano-russa devido aos densos laços energéticos entre os dois países colocaria os EUA em maior desvantagem.

Ucrânia: moeda de troca para a frente anti-chinesa

Os chanceleres de Kiev e Varsóvia emitiram uma declaração conjunta em que criticam o acordo entre Berlim e Washington sobre o Nord Stream 2, argumentando que o gasoduto russo-alemão aumenta a capacidade de Moscou de desestabilizar a Europa e que as contra-medidas oferecidas são insuficientes.

Economicamente, além do sinal verde para concluir as obras, a Alemanha obteve a garantia de não fechar o gasoduto caso Moscou usasse a energia para chantagear Kiev. Em troca, prometeu financiar projetos de infraestrutura em países afetados com o objetivo de reduzir a influência russa na Europa Oriental, investindo na “transição verde” da Ucrânia e compensando o país pela perda de receita com direitos de trânsito de gás (sem dizer quanto ou como).

Mas aos olhos da Ucrânia e da Polônia, representantes das frações mais anti-russas da "Frente Ocidental", a principal capitulação está em outro registro: a realidade é que os Estados Unidos permitem que os alemães não participem da contenção da Rússia, esperando, em vez disso, que contribuam para reduzir a penetração econômica chinesa na Europa. Para os países da Europa de Leste, é um compromisso geopolítico inaceitável. Vendo-se como moeda de troca em uma batalha no quadro europeu e mundial que não tem controle, eles se sentem abandonados por seu principal patrocinador, os Estados Unidos, e depois por Bruxelas. Diante de suas queixas e lamentos, a dureza e a atitude claramente imperial da diplomacia dos Estados Unidos são impressionantes, alertando seus parceiros eslavos para não pressionarem o Congresso contra o Nord Stream 2. Ou seja, não se envolverem. Este tratamento humilhante só pode alimentar o descontentamento de polacos e ucranianos, que exigirão novas garantias e clamarão por atenção. Por exemplo, ao mesmo tempo, a Ucrânia, a Moldávia e a Geórgia prometem unir forças para impedir que Moscou transforme o Mar Negro em um lago interior; as Forças Armadas de Kiev se deslocam para a fronteira da Crimeia; e o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, aprova uma lei provocativa sobre os "povos indígenas da Ucrânia" que exclui os russos étnicos. Ou seja, maior desestabilização nas portas.

O difícil equilíbrio americano em sua luta estratégica contra a China

Por trás da concessão forçada mas dolorosa de Washington está uma aposta tática: que as potências europeias mais próximas de Moscou, especialmente a Alemanha, se concentrem em conter a China, enquanto os países orientais furiosamente anti-russos mantêm as ambições do Kremlin sob controle e evitam todos os tipos de normalização entre os Ocidente e Rússia, de tal forma que esta siga desempenhando seu papel de grande perigo das "democracias", apesar do seu atual declínio económico, demográfico e geopolítico face à superpotência que era a ex-União Soviética. Resta saber se essa manobra tática de mão dupla vai funcionar. Apesar de a Alemanha, sob pressão americana e em seu próprio interesse, ter adotado uma atitude mais dura em relação a Pequim, reluta fortemente em colocar os interesses geopolíticos antes dos comerciais.

Além da tática, a dificuldade da política norte-americana em termos de Grande Estratégia em seu confronto estratégico contra Pequim advém do fato de os Estados Unidos buscarem empurrar a China para trás ao mesmo tempo em que tentam manter o teatro europeu sob seu controle, especialmente impedindo a hegemonia alemã na Europa e seu caminho para o Leste. A dupla contenção de Moscou e Pequim o impede de usar a manobra de Nixon nos anos 1970 contra o Urso Soviético, que criou as condições políticas e geopolíticas, mesmo na época de Mao, de restauração capitalista na China, cujos primeiros passos começam com Deng em 1978, e conseguiu colocar o gigante soviético na defensiva com todas as consequências subsequentes que conhecemos. Em outras palavras, os Estados Unidos devem conter a ascensão de Pequim sem arriscar a frente europeia que é o coração de sua hegemonia desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Somente uma ameaça mais aberta de Pequim à sua hegemonia mundial poderia alterar essa fronteira geopolítica, favorecendo uma distensão duradoura com a Rússia, mas ao mesmo tempo reabrindo a caixa de Pandora europeia. No entanto, os estrategistas de Washington ainda consideram, apesar de seus tons às vezes alarmistas, que o perigo chinês ainda não atingiu esse nível. E por isso se contentam com aberturas parciais a Moscou como a que está se desenvolvendo depois da cúpula de Genebra, embora no caso de Biden sem fazer tanto alarde como foi o famoso “Reset” de Obama, que terminou em um retumbante fracasso. Sem mencionar os pequenos movimentos de Trump em direção a Putin que foram usados ​​pelo "deep state" para declarar guerra à sua presidência. É que a continuidade essencial do domínio norte-americano sobre o mundo continua a repousar na necessidade de continuar a subjugar a Europa geopoliticamente, domínio que eles mantêm através da projeção de um perigo russo.

Como Henry Kissinger lucidamente lembrou o establishment americano no final do século passado após a implosão soviética:

Sem a Europa, os Estados Unidos se tornarão uma ilha na costa da Eurásia, condenada a uma espécie de política de equilíbrio de poder puro que não reflete seu gênio nacional. Sem a Europa, o caminho da América será solitário; sem os Estados Unidos, o papel da Europa se aproximará da irrelevância. É por isso que os Estados Unidos concluíram duas vezes neste século que o domínio da Eurásia por uma potência hegemônica ameaça seus interesses vitais e foram à guerra para evitá-lo.

Esquecer esse imperativo estratégico para a hegemonia dos Estados Unidos e limitar a disputa estratégica entre Estados Unidos e China a uma disputa bilateral impede um entendimento profundo do que está em jogo em termos de hegemonia mundial, por trás dos importantes movimentos tectônicos que abalaram o planeta nos últimos anos. Só uma compreensão sensata e justa desses jogos de poder, distantes do cotidiano de milhões de proletários e explorados, mas que os afetam e vão afetá-los fortemente, pode permitir uma política operária independente, com a renovação do internacionalismo proletário como um guia para ação no próximo período.


veja todos os artigos desta edição
CATEGORÍAS

[Joe Biden]   /   [EUA]   /   [Angela Merkel]   /   [Internacional]   /   [Economia Internacional]   /   [Governo Biden]   /   [Guerra comercial EUA x China]   /   [Vladimir Putin]   /   [Alemanha]   /   [China]   /   [Estados Unidos]   /   [Teoria]   /   [Internacional]

Juan Chingo

Paris | @JuanChingoFT
Integrante do Comitê de Redação do Révolution Permanente (França) e da Revista Estratégia Internacional. Autor de múltiplos artigos e ensaios sobre questões de economia internacional, geopolítica e lutas sociais a partir da teoria marxista. É coautor, junto com Emmanuel Barot do ensaio "A classe operária na França: mitos e realidades. Por uma cartografia objetiva e subjetiva das forças proletárias contemporâneas (2014) e autor do livro "Coletes amarelos: A revolta" (Communard e.s, 2019).
Comentários