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Desejo de cultura e progresso: uma luta pelo socialismo

Andrea D’Atri

Desejo de cultura e progresso: uma luta pelo socialismo

Andrea D’Atri

Apresentamos a seguir o prólogo de um novo volume das Obras Selecionadas de León Trótski publicado pelas Ediciones IPS na Argentina, Problemas da vida cotidiana e outros escritos sobre a cultura na transição socialista, com textos pouco conhecidos ou traduzidos especialmente para esta edição.

A maioria dos escritos de Leon Trotsky reunidos neste volume datam de 1923, o que pode ser considerado um ponto de virada no processo da Revolução Russa que começou com a insurreição triunfante de 1917. O que aconteceu naquele ano?

Desde janeiro, tropas da França e da Bélgica ocupavam a área de mineração do Ruhr, na Alemanha, sob o pretexto de atraso no pagamento das reparações de guerra, conforme ditado pelo tratado de Versalhes [1]. O governo alemão promoveu a "greve patriótica" dos trabalhadores da região, mas a paralisação da indústria aumentou o desemprego e desencadeou um processo hiperinflacionário que levou à catástrofe das grandes massas. Organizaram-se comitês de fábrica e milícias operárias, comitês de controle de preços e comitês de distribuição de alimentos; a onda de greves e manifestações derrubou o governo, levando ao poder uma coalizão que incluía o Partido Social Democrata. León Trótski, do Comitê Executivo da Terceira Internacional, encorajou o Partido Comunista Alemão a seguir a tática da frente única das organizações proletárias para lutar por um governo operário e preparar a insurreição [2]. Ele até pediu para se mudar para a Alemanha para colaborar pessoalmente, mas a maioria da liderança compartilhou a recusa do novo secretário-geral do partido, Josef Stálin. Finalmente, as hesitações dos líderes comunistas alemães e sua submissão à ala esquerda da social-democracia arruinaram o plano insurrecional. O Partido Comunista Alemão não conseguiu dar um aviso de retirada aos revolucionários de Hamburgo que se levantam e são brutalmente reprimidos. O processo revolucionário alemão no qual Lênin e Trótski depositaram suas esperanças para a sobrevivência da Revolução Russa foi finalmente derrotado em outubro, aprofundando o isolamento da jovem União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Mas esses últimos acontecimentos ainda não estavam definidos quando a maioria dos artigos aqui apresentados foram escritos.

Enquanto isso, na recém-nomeada União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, desde 1921, a Nova Política Econômica (NEP) substituiu o comunismo de guerra, introduzindo elementos de mercado com o objetivo de recompor as relações econômicas entre o campo e a cidade. Essa nova orientação possibilitou, junto com o setor nacionalizado da economia, o desenvolvimento de um importante setor privado, tanto no comércio quanto na agricultura. Em 1923, “graças ao primeiro impulso vindo do campo, a indústria renasceu e imediatamente deu indícios de intensa atividade. Basta dizer que a produção dobrou em 1922 e 1923”, lembra Tróski uma década depois [3]. Mas com o retorno da propriedade privada, o setor social dos camponeses ricos (kulaks) foi reconstruído e, em 1923, Trótski alertou para o
efeito da crise das “tesouras” entre os altos preços dos produtos industriais e os baixos preços dos produtos agrícolas. Isso e o atraso da indústria causaram grandes prejuízos ao campesinato, fazendo com que os camponeses ricos buscassem melhores preços para os produtos industriais no mercado mundial, por trás da planificação econômica do Estado operário que, para Trótski, estava intimamente ligado ao desenvolvimento da auto-organização dos trabalhadores. A defesa da auto-organização e da iniciativa das massas foi acompanhada, ao longo deste ano, pela luta decidida em prol da necessidade de aumentar o seu nível cultural, combater o atraso em todos os aspectos relativos aos problemas da vida cotidiana, correndo contra o relógio enquanto o proletariado alemão travou batalhas decisivas pelo futuro da revolução socialista internacional.

Em dezembro de 1923, quando a revolução alemã é finalmente derrotada, Trótski escreve:

Obviamente, o partido não pode prescindir das condições sociais e culturais do país. Mas, como uma organização voluntária de vanguarda dos melhores, mais ativos e mais conscientes elementos da classe trabalhadora, ela pode, em medida muito maior do que o aparelho de Estado, proteger-se contra as tendências do burocratismo. Para isso, deve ver claramente o perigo e combatê-lo sem descanso [4].

O limitado desenvolvimento industrial da Rússia atrasada e o baixo nível cultural das massas – impulsionadas, por seu triunfo sobre o antigo regime, a tomar em suas mãos a administração de seu próprio aparato estatal –, juntamente com o crescente isolamento internacional ainda maior com a derrota na Alemanha, impulsionou as tendências à burocratização. Lênin eTrótski lutaram contra a degeneração do partido, último reservatório de forças revolucionárias capazes de resistir conscientemente a esse processo que mais tarde se tornaria inevitável; mas que, entretanto, era uma batalha a travar.

Porém, o ano de 1923 não começou apenas com a invasão da região do Ruhr. Em 4 de janeiro, Lênin – que encontrava-se em repouso forçado devido ao segundo acidente vascular cerebral sofrido no dia 13 de dezembro anterior – ditou um pós-escrito à sua Carta ao Congresso do Partido, conhecida como seu Testamento [5]. Neste anexo, ele recomenda expressamente a remoção de Stálin da secretaria geral: é sua última intervenção política antes de sua morte, que ocorrerá em 21 de janeiro de 1924.

Entre 17 e 25 de abril de 1923, ocorreu o XII Congresso do partido, o primeiro sem a
presença de Lênin e sem que ele pudesse constituir o bloco político que havia proposto a Trótski, para combater as tendências burocráticas. Anos depois, ele escreve em sua autobiografia:

Eram as primeiras semanas de 1923. Aproximava-se o XII Congresso do partido. Não havia esperança de que Lênin pudesse participar disso. Isso levantou com urgência quem faria o relatório sobre a situação política. Na sessão do Birô Político, Stalin disse: "Trótski, naturalmente". Imediatamente, essa opinião foi apoiada por Kalinin, Rykov e Kamenev, embora visivelmente, com relutância. Eu me opus. Não poderia causar uma boa impressão no partido que nenhum de nós tentou substituir Lênin [6].

Naqueles dias de abril, Adolf Hitler faz seu famoso discurso "Vamos derrotar os inimigos da Alemanha", com o qual começa a ganhar alguma influência. Em setembro, o general Primo de Rivera dissolveu o parlamento do Estado espanhol, suspendeu a validade da constituição e estabeleceu um regime ditatorial na Península Ibérica. Em novembro, o golpe tentado em Munique por alguns membros do partido nazista, liderado por Hitler, falha. Enquanto isso, Stálin, Zinoviev e Kamenev iniciam uma campanha de difamação, de baixo para cima, contra o fundador do Exército Vermelho.

Em 8 de outubro, Trótski expressa à liderança do partido sua preocupação com as decisões arbitrárias do aparato liderado por Stálin. Logo, em uma pescaria no outono, ele pega uma gripe, que é seguida por um caso de malária que o mantém em repouso até o final do inverno. "Isso quer dizer que enquanto toda a discussão em torno do ’trotskismo’ acontecia em 1923 eu estava doente" [7], ele relata. Em 15 de outubro, quarenta e seis líderes soviéticos proeminentes enviam uma carta à mais alta direção do partido que, sem a assinatura de Trótski, mas com base em suas principais ideias, analisa a situação política e econômica, questiona a direção que Stálin assume aproveitando a enfermidade de Lênin e convoca uma reunião de emergência do Comitê Central, estendida a outros camaradas que não concordavam com o ponto de vista da maioria do corpo. Anos depois, verificar-se-á que nenhum dos signatários sobreviveu aos subsequentes expurgos do regime stalinista.

Claro, esse final ainda não estava escrito e a luta contra essa deriva estava em andamento. Mas, em 1926, a greve geral de 9 dias liderada pelo proletariado inglês foi liquidada, em 1927 a direção nacionalista chinesa expulsou e esmagou os comunistas que compunham a aliança. Como Trótski escreveu em 1931,

(…) a estabilização do capitalismo relacionada a todas essas catástrofes forma o quadro internacional da luta dos centristas contra os bolcheviques-leninistas. Os ataques contra a revolução "permanente", em essência contra a revolução internacional, a recusa de adotar uma política ousada de industrialização e coletivização, a confiança no kulak, a aliança com a burguesia "nacional" nas colônias e com os social-imperialistas na metrópole: tal é o conteúdo político do bloco da burocracia centrista com as forças termidorianas. Apoiando-se na pequena burguesia fortalecida e na burocracia burguesa, explorando a passividade do proletariado cansado e desorientado e as derrotas da revolução em todo o mundo, o aparelho centrista esmagou a esquerda revolucionária do partido em poucos anos. [8]

À primeira vista, pode-se questionar quem poderia pensar em escrever sobre a cultura, os clubes operários, a emancipação das mulheres, as transformações da família, a importância da educação, o alcoolismo, a necessidade de difundir o cinema e banir a profanação da linguagem, num ano tão convulsivo como o de 1923.

Em algumas leituras maniqueístas desse período que insistem em contar a História como uma luta personalista pelo poder entre duas figuras supostamente gêmeas e antagônicas, é difícil integrar essa prolífica obra de Trótski sobre os problemas da vida cotidiana e da cultura na transição para o socialismo. A sucessão de Lênin estava em jogo e, a quem junto com ele esteve na vanguarda do maior processo revolucionário do século XX, pode ser apresentado como distraído, lidando com minúcias e questões inconsequentes. Talvez nessa visão maliciosa resida, provavelmente, a menor importância dada a esses textos nas análises de seu pensamento e na maioria das edições de suas obras fundamentais.

No entanto, a obra que aqui apresentamos com o título de Problemas da vida quotidiana e outros artigos sobre a cultura na transição para o socialismo - que reúne artigos maioritariamente publicados no jornal Pravda, entre Abril e Novembro de 1923, bem como outros artigos que permaneceram inéditos em espanhol – marca o início, apenas aparentemente tangencial, do combate político de Trótski contra a burocracia, que, muito em breve, se tornaria uma luta aberta que se estenderia até o fim de sua vida.

***

Como o próprio Trótski relata na introdução de Problemas da Vida Cotidiana, parecia-lhe que

(...) na biblioteca do partido, faltava um pequeno folheto que, de forma muito popular, mostrasse ao trabalhador e ao camponês médio o vínculo que une alguns fatos e certos fenômenos de nosso período de transição e que, ao indicar uma perspectiva adequada, serviria como arma para a educação comunista. [9]

Para trocar opiniões sobre o assunto, organizou uma assembleia de propagandistas do partido em Moscou, distribuiu um questionário e abriu debates. Assim, alertou que “os problemas relacionados com a família e com o modo de vida eram apaixonantes para todos os participantes” [45]; por isso, embora trate de muitas questões relacionadas à cultura – entendida em sentido amplo – as reflexões sobre a emancipação das mulheres dos laços patriarcais ocupam um lugar privilegiado.

E, no entanto, parece que teve de pedir licença ou pedir desculpas ao aparato partidário – onde, recordemos, avançava o processo de burocratização – por se dedicar a essas questões. Tanto que, em uma carta, ele escreve:

Devo rejeitar com indignação todas as insinuações sobre meu trabalho relacionadas ao estudo da vida cotidiana. Para realizar esta pesquisa, que, naturalmente, é muito útil, não roubei um minuto do meu tempo de trabalho, mas o fiz durante minha pausa em Kislovodsk, que me foi dada para me recuperar [10].

As questões relacionadas à transformação da vida cotidiana, à opressão das mulheres e à elevação do nível cultural das massas não pareciam ser questões importantes para o aparato do Kremlin. Talvez porque tenha ficado claro que se tratava – como já apontamos – de uma luta contra a burocratização do partido e do Estado, apelando a uma maior auto-atividade das massas na construção do seu destino e na luta contra o atraso cultural. Este trabalho aqui apresentado pela primeira vez, completo em espanhol, foi um debate político sobre como construir o socialismo em condições de paz, quando a guerra civil já havia terminado e enquanto a revolução na Europa ainda estava em desenvolvimento. Como a atividade de base poderia reformar o regime interno cada vez mais burocrático? Se o lendário fundador do Exército Vermelho tinha suas ideias sobre o assunto, era preciso transformá-las em armas da crítica, apelando para a vanguarda do partido, para aqueles socialistas conscienciosos que sentiam um respeito genuíno e justificado por seu líder, que se temperou na revolução e na guerra civil e que ainda não sucumbiu à desmoralização que virá anos depois. Eles ainda eram uma geração presente e ativa, apesar das grandes mudanças que a composição social do Partido Bolchevique havia sofrido, que, como aponta Isaac Deutscher,

(…) no início de 1917 não tinha mais de 23.000 membros em toda a Rússia. (...). Entre 1919 e 1922, o número de membros triplicou mais uma vez, aumentando de 250.000 para 700.000 membros. A maior parte desse crescimento, no entanto, já era espúrio. Os oportunistas despejaram uma avalanche no campo dos vencedores. O partido tinha que preencher inúmeros cargos no governo, na indústria, nos sindicatos, etc., e era vantajoso preenchê-los com pessoas que aceitassem a disciplina partidária. Nesta massa de recém-chegados, os bolcheviques genuínos foram reduzidos a uma pequena minoria. [11]

Esses autênticos bolcheviques serão os principais destinatários dessas reflexões. Trótski espera que essas palavras, nas vozes de agitadores e propagandistas, inflamem os corações das novas gerações de jovens que despertaram para a vida sob um novo regime social e político nascido da revolução. O mesmo se espera da mulher, onde ela encontra um reservatório de energia e perseverança para lutar pelo novo, por terem sido as que mais sofreram na velha sociedade.

***

Este particular enfoque de Trótski sobre a vida cotidiana e todos os temas relativos à cultura que se expressam nesses artigos, estão profundamente vinculados a sua reflexão, distante de todo dogmatismo e economicismo, do caráter da revolução. Uma elaboração que ele inicia em 1906, mas que se expressa de maneira cabal na generalização que culmina em 1928 na chamada Teoria da Revolução Permanente.

Polemizando com a teoria stalinista da construção do socialismo em um só país, ali ele abordou três aspectos dos processos revolucionários. O primeiro, sobre a relação entre revolução democrática e a transformação socialista da sociedade nos países atrasados; em oposição à concepção da "revolução por etapas" sustentada pelo Stalinismo, segundo a qual os países menos desenvolvidos estariam imaturos para a revolução socialista, justificando assim a subordinação da classe trabalhadora em alianças com setores da burguesia nacional "democrática" ou "anti-imperialista’. Em segundo lugar, o das transformações do conjunto das relações sociais, na revolução social como tal, em outras palavras, quando o proletariado toma o poder e se abre um processo de luta interna constante nos costumes, a cultura, o desenvolvimento técnico, etc., em oposição a ideia promovida por Stálin, de a tomada mesma do poder já constituía "nove décimos" da tarefa de construção de uma sociedade socialista. E, por último, sobre o caráter internacional da revolução socialista, baseado na "mundialização" da própria economia do capitalismo que leva que a revolução não possa se conter nas fronteiras nacionais senão como um regime transitório; também em oposição à concepção stalinista adotada no XIV Congresso do Partido Comunista da União Soviética de 1925, que previa a possibilidade de edificar uma sociedade socialista "em um só país".

Mas para compreender a concepção de Trotski sobre a dinâmica revolucionária demarcada em seus textos de 1923, vejamos como ele irá formular, mais adiante, este segundo aspecto permanentista da revolução:

A sociedade sofre um processo de metamorfose. E nesse processo de transformação cada nova etapa é consequência direta da anterior. (...). As revoluções da economia, da técnica, da família, dos costumes, se desenvolvem em uma complexa ação recíproca que não permite à sociedade alcançar o equilíbrio. [12]

Trata-se de uma boa descrição, expressa como lei da dinâmica da revolução, da intensa atividade transformadora vivida durante os primeiros anos que seguiram a conquista do poder na Rússia. Uma concepção dialética que permite compreender de qual maneira o atraso relativo do capitalismo na Rússia contribuiu na abertura dos caminhos para a revolução socialista e a tomada do poder, mas como, ao mesmo tempo, esse atraso - que também se expressa como atraso cultural- se converteu em um obstáculo para a construção socialista.

Já em um discurso pronunciado em junho de 1924, publicado nesta compilação, o expressava dessa forma:

A classe trabalhadora teve que tomar o poder em suas próprias mãos para que não houvesse obstáculos políticos na construção da nova sociedade. Mas quando conquistou o poder, se encontrou com outro obstáculo: a pobreza e o atraso cultural. Aqui está a diferença entre nossa situação do proletariado nos países capitalistas avançados. Em seu caminho ergue-se um obstáculo direto: o Estado burguês, que só permite uma área definida da atividade proletária, a área que a classe dominante considera permissível. A primeira tarefa no Ocidente é derrotar o domínio de classe, o Estado burguês. Ali é mais difícil resolver esse problema que aqui, porque o Estado burguês é mais forte lá do que aqui. Mas quando for derrotado o domínio da classe, o proletariado ocidental irá se encontrar em uma posição mais favorável que a nossa em relação à produção cultural. [129]

Mais ainda, a visão de Trótski nada tem a ver com a tosca posição etapista segundo a qual a revolução deveria atravessar um período de desenvolvimento econômico e tecnológico centrando-se unicamente no aumento da produtividade, para chegar, mais tarde e automaticamente, a transformações na vida cotidiana das massas. Escreve no artigo ’Do grande ao pequeno", de outubro de 1923:

O que é mais importante? a limpeza e a lubrificação do rifle ou a batalha, ou cuidar de um cavalo de carga, ou explicar a uma camponesa para que serve o Exército Vermelho, ou aprender a geografia e a história da Alemanha, ou a fabricação de mantas para cavalo, etc. etc. ? É ridículo e francamente absurdo colocar a questão desta forma. Justamente porque há grandes provas pela frente, é preciso fazer arados, tecer mantas para cavalos, estudar com diligência a geografia e a história da Alemanha e de todos os demais países, chamar a atenção dos trabalhadoras e trabalhadores mais atrasados sobre as condições de sua vida cotidiana, abrindo-lhes assim a porta ao amplo caminho revolucionário. Cada novo restaurante público é um excelente argumento material em favor da a revolução internacional [273].

Esse mesmo ângulo na análise vai ser fundamental, anos mais tarde, para traçar sua crítica ao retrocesso cultural e nos direitos, imposto por Stálin às massas femininas, às famílias trabalhadoras e à juventude que descreve, com diversos exemplos, em sua obra A Revolução Traída, de 1936.

A posição da mulher é o indicador mais gráfico e eloquente para valorar um regime social e a política do Estado. A Revolução de outubro inscreveu em sua bandeira a emancipação da mulher e produziu a legislação mais progressista na história sobre o matrimônio e a família. (...). Em completa contradição com o ABC do comunismo, a casta dominante estabeleceu deste modo o núcleo mais reacionário e obscurantista do regime classista, em outras palavras, a família pequeno burguesa [13]

Não há uma continuidade entre os felizes decretos do nascente Estado operário de 1917 -quando as leis se imaginavam tão transitórias e episódicas como o Estado mesmo, como toda a sociedade que havia passado pela revolução- e as prescrições solenes da ordem instituída pela burocracia para o progresso crescente da nação. Para isso, foram necessárias muitas deportações, campos de trabalho forçado, milhares de presos, torturados e assassinados. À revolução, era necessário opor a contrarrevolução. A revolução não se degenerava por conta da alguma tendência maliciosa congênita: se para a realização do socialismo era necessária uma vanguarda consciente, para consolidar a reação era preciso liquidar também aquela geração educada na luta clandestina contra o czarismo, galvanizada na guerra imperialista e macerada na guerra civil. Nesse sentido, Wendy Goldman afirma que

Ainda que as condições materiais tenham desempenhado um papel crucial em socavar a visão dos anos 20, não foram em última instância responsáveis pela sua desaparição. (...) A reversão ideológica da década de 1930 foi essencialmente política, não de natureza econômica nem material, e levava a marca da política stalinista para outras áreas. A lei de 1936 tinha suas raízes nas críticas populares e oficiais da década de 1920, mas seus meios e fins constituíam uma acentuada ruptura com as primeiras correntes do pensamento, de fato, com uma tradição de séculos de ideias e práticas revolucionárias. [14]

***

Nessa metamorfose sem pausa e correndo contra o tempo, as tarefas da revolução se concentravam na cultura. Os clubes operários que haviam aparecido precocemente, em 1905 e haviam sido fechados pelo regime czarista, reabriram suas portas no alvorecer da Revolução de 1917. Financiados pelos sindicatos, as fábricas e empresas tinham seus clubes operários, com bibliotecas, restaurantes, salas de reuniões: verdadeiros "palácios da cultura", onde o povo trabalhador debateu política, economia, votou decisões a respeito da produção, mas também avançou em seu conhecimento, acrescentou sua cultura e enalteceu seu espírito a mais ampla liberdade. Escreve Trótski que

(...) o Estado operário tem o direito e o dever de usar a coerção contra os inimigos da classe operária, uma aplicação implacável da força. Mas no que diz respeito à educação da classe trabalhadora, o método de "esta é a verdade, ajoelhem-se diante dela!", como método de trabalho cultural, contradiz a essência mesma do marxismo [136].

Nos artigos dedicados aos clubes operários, a educação e a mídia – muitos dos quais estão sendo publicados em castelhano pela primeira vez aqui -, Trótski demonstra uma profunda compreensão dialética das tarefas culturais do período de transição ao socialismo. Trótski explica que as tarefas da alfabetização e elevação do nível cultural das massas são apenas uma questão elemental. Mas isso é apenas o começo, para alcançar ou igualar as massas trabalhadoras dos países capitalistas, partindo do profundo atraso de um país submerso em um regime autocrático e os patriarcas da Igreja Ortodoxa. Porque na transição ao socialismo, a aculturação tem um duplo aspecto:

Ao mesmo tempo que o curso fundamental de nosso trabalho cultural é em direção ao socialismo e ao comunismo, devemos trabalhar simultaneamente para fazer avançar grandes setores de nossa vanguarda cultural, mesmo que seja o nível de cultura alcançado nos Estados burgueses avançados. Este caráter dual de nosso trabalho, totalmente determinado pelas circunstâncias de nosso passado histórico, deve ser compreendido de forma adequada para que não cometamos erros sobre o sentido e a substância de nosso trabalho. [189]

Despreza que a luta contra o analfabetismo, o alcoolismo, os maus tratos, o banditismo e todos os males endêmicos do atraso sejam batizados com o pomposo nome de "ética comunista". Se nega a denominar tudo aquilo "cultura proletária", porque constantemente insiste no caráter transitório das tarefas que leva a cabo a geração parida pelo atrasado regime czarista, que temperou seu espírito insurreto e que ainda tem como pendência, completar e entender as tarefas da revolução proletária antes de parir uma geração socialista, que carece da necessidade de ser "revolucionária". E explica, de que maneira a educação da classe trabalhadora sob o chicote da exploração é diametralmente oposta a das massas que conquistaram o poder e começam a construir seu Estado operário, com caráter transitório, na perspectiva do socialismo internacional. Porque se o operário explorado encontrava nas definições e conceitos do ABC marxista um eco das suas experiências de classe, agora a situação é diferente. "O explorador agora aparece para nós somente em grande escala, na forma de gigante capitalista mundial, que se utiliza de guerras, bloqueios, exigências abusivas e extorsões baseadas na velha dívida externa para impedir nosso desenvolvimento", em outras palavras, desaparece da fábrica, sua presença já não é uma experiência tangível para os operários da Rússia soviética. Enquanto que por outro lado, "o trabalhador deve chegar a conhecer a si mesmo em sua posição social, ou seja, pensar em todas as consequências que emanam do fato de que ele é a classe dominante" [137].

Nunca havia ocorrido na História algo semelhante: como elevar o nível cultural das massas trabalhadoras em um Estado operário, onde foi suprimida a propriedade privada dos meios de produção e o trabalho humano está cimentando as bases materiais que permitirão avançar na transição de uma sociedade socialista? Se no capitalismo é necessário generalizar as experiências cotidianas da exploração para chegar às leis gerais do funcionamento da sociedade, no Estado operário, só uma visão ampla e profunda do curso da revolução internacional, do papel do Estado operário na luta de classes mundial poderão servir como as chaves para que o trabalhador compreenda sua tarefa específica na fábrica nacionalizada, para que apreenda e assimile cabalmente qual é o seu papel no curso da História.

Não acreditem em tudo que você ouve; não viva de rumores; confirme os números, confirme os fatos; estude, critique, esforce-se; lutar contra a arbitrariedade e o sentimento de que não há defesa contra a injustiça; persevere, imponha seus pontos de vista, amplie seu campo de compreensão ideológica; avancem e empurrem os outros para a frente (…) [199].

Somente este espírito audaz, livre e consciente pode guiar a edificação socialista, começando pela tarefa de elevar o nível cultural do conjunto da sociedade.

Aqui, quando se refere ao papel da imprensa nessa tarefa de aculturação, inclui os temas familiares e da vida cotidiana, ressaltando que estão muito equivocados aqueles camaradas que pensam que não tem importância. E destaca o papel que as mulheres são chamadas a desempenhar nessa imensa tarefa educativa.

Se a velha geração, da qual resta cada vez menos, aprendeu o comunismo a partir de fatos decisivos da luta de classes, as novas gerações estão convocadas a aprender os elementos constitutivos da vida cotidiana (...). Assim como temos nossos agitadores de massas, nossos agitadores nas indústrias, nossos propagandistas antirreligiosos, devemos formar nossos propagandistas e agitadores em questões relacionadas aos costumes. E como as facetas mais cruéis de nossa vida atual ferem as costas das mulheres, devemos supor que os melhores agitadores da vida cotidiana saíram do meio feminino. [211]

Elas estão convocadas para essa tarefa, porque possuem essa atenção criativa a todos os detalhes do cotidiano "imperceptíveis para o olho superficial". Como não vão ocupar um posto de vanguarda, na construção do novo, aquelas que mais sofreram com a velha sociedade?

E mais uma vez, a auto-atividade das massas é insubstituível na eliminação de todos os vestígios da atrasada sociedade feudal e a construção de novas formas de vida cotidiana.

Não podemos nos dar ao luxo de esperar que tudo venha até nós de cima como produto de uma iniciativa do Estado (...) O Estado operário é um andaime; não é um edifício, mas apenas um andaime. A importância do Estado revolucionário em um período de transição é incomensurável (...). Mas isso não significa que todo o trabalho de construção será realizado pelo Estado. O fetichismo do estatismo, ainda que seja operário, é algo que não se dá bem com os marxistas. [212]

***

Ainda que alguns dos textos que integram essa compilação tenham sido publicados em inglês e castelhano sob o título de A mulher e a família, a verdade é que Trótski nunca dedicou uma obra completa e exclusivamente a questão da opressão e a emancipação feminina, como o fizeram Augusto Bebel, até fins do século XIX ou Alexandra Kollontai, nesse mesmo período. Mesmo assim, as agudas observações sobre a matéria, que encontramos nessas páginas compartilhadas com diversos outros assuntos, são suficientes para reconhecer que seu pensamento supera em muito as ideias mais avançadas de sua época; um período de guerras e revoluções que, como sabemos, tendem a perturbar tudo, inclusive os estereótipos de gênero, as estruturas familiares e as relações interpessoais e sexo-afetivas.

Nesse clima revolucionário, era habitual que transcorressem discussões no seio do Partido Bolchevique, entre aderentes a diversas teorias e posições vanguardistas sobre o Código Civil, a proteção da maternidade e as reformas legais e materiais que iniciariam o curso da emancipação feminina. Para dimensionar o andamento desses debates, é mister advertir que a Rússia, havia herdado do regime czarista, quase 90% de mulheres analfabetas; a guerra mundial e a guerra civil as empurraram para o trabalho nas fábricas, mas a revolução devia trabalhar intensamente para eliminar as diferenças descomunais que existiam entre elas e seus camaradas homens.

Como Lênin, Trótski considera como elementares apenas os direitos civis conquistados pela revolução para as mulheres, embora fossem impensáveis nas democracias capitalistas contemporâneas mais avançadas da Europa: direito ao voto e a se candidatar, direito ao divórcio, ao aborto, direito a ter um documento e a trabalhar em troca de um salário sem pedir permissão ao pai ou ao marido. A revolução também despenalizou a homossexualidade e alfabetizou em grande escala. Mas, mais importante que esses gigantes passos no que atualmente denominaríamos "ampliação de direitos", era que a revolução socialista criou as condições materiais necessárias para a liquidação do trabalho no lar, porque como Lênin, Kollontai e outros líderes bolcheviques, Trótski considerava que esse trabalho convertia as mulheres em "escravas domésticas", e de fato, as impedia de exercer aqueles novos direitos civis. Para conseguir essa participação das mulheres na vida política, social e cultural, era necessário avançar de maneira ousada na socialização do trabalho doméstico e de cuidados. Escreve no artigo "Da velha à nova família":

Um dos problemas, o mais simples, foi o de instituir no Estado Soviético a igualdade política entre homens e mulheres (...) Mas para alcançar uma igualdade verdadeira entre homens e mulheres no seio da família é um problema infinitamente mais árduo (...) pois se a mulher está atada à família, à cozinha, à limpeza e à costura, suas possibilidades de participação na vida política e social estarão reduzidas ao extremo. [83]

Somente com a incorporação crescente das mulheres na vida social - e não somente na produção - poderiam ser combatidos, de maneira acelerada, contra os séculos de atraso e obscurantismo impostos pela ordem patriarcal sob a influência da igreja ortodoxa.

Mas o mais agudo desses escritos de 1923 é que, em um período que os revolucionários marxistas concebiam como de transição ao socialismo, seu autor reflete que nem sequer as mais radicais transformações materiais resolvem, em si mesmas e definitivamente, a opressão patriarcal; que é necessário "um desejo íntimo e individual de auge cultural", para investir de forma consciente contra essa subordinação que, de tão milenar, se fez imperceptível, se naturalizou e se converteu em hábitos e costumes. Em outras palavras, Trótski aponta como elemento fundamental da ruptura das bases materiais da opressão, como também a necessária conquista de direitos civis que igualam juridicamente as mulheres com os homens; mas destaca com uma ênfase especial, o necessário esforço, consciente e deliberado, que se requer para transformar de maneira radical os vínculos, os papéis, os preconceitos, toda uma cultura que naturaliza a hierarquização dos sexos e a discriminação [15].

Na primavera boreal de 1923, houve um debate sobre a vida cotidiana no Secretariado da Mulher do Partido. Nessa ocasião, uma dirigente do Comitê Central questionou o aparato partidário sobre as escassas conquistas obtidas, dizendo que a inércia não existe tanto nas massas, como entre os dirigentes. "Todo o problema é que nós sabemos perfeitamente o que fazer, mas não fazemos nada devido a inércia dos órgãos soviéticos e seus dirigentes" [116], disse a camarada Vinogradskaya. Trotski aproveita esse episódio para aprofundar a sua reflexão sobre a auto-atividade das massas: “O burocrata espera (me pergunto se tem em mãos algum plano financeiro brilhante) que quando formos ricos, e sem necessidade de mais palavras, daremos ao proletariado condições de vida mais civilizadas, como se fosse um presente de aniversário" [115]. E questiona, por sua vez, o ângulo da crítica de Vinogradskaya que supõe que os comunistas "sabemos perfeitamente o que fazer, mas não fazemos nada devido a inércia dos órgãos soviéticos e seus dirigentes" [116]. A responde:

A opinião de que todo o problema é simplesmente a estupidez das altas esferas soviéticas é uma visão burocrática, ainda que com sinais contrários. O poder, mesmo o mais ativo e proativo, não pode reconstruir a vida cotidiana sem a maior iniciativa das massas [118].

Trótski fecha seu artigo com essas palavras que concentram, quase de maneira aforística, a verdadeira natureza do processo social de transformação da velha sociedade patriarcal:

Os problemas da vida cotidiana devem passar pelas mãos da consciência coletiva proletária. O moinho é forte e dominará qualquer coisa que lhe seja dada para moer. (...) É bem verdade que na esfera da vida cotidiana o egoísmo dos homens não tem limites. Se realmente queremos transformar as condições de vida, devemos aprender a vê-las com os olhos das mulheres [122].

***

Longe da visão caricatural de emancipação que, anos depois, o chamado “socialismo real” deu ao mundo, onde o Estado se apresentava como provedor de serviços e direitos para as massas, convertidos em meros receptores passivos do tipo concessões de um “líder”, Trótski afirma que o progresso se faz por meio de um processo democrático amplo e dialético, onde a iniciativa das massas assume um valor fundamental. O aparelho de Estado dificilmente se deve limitar a aconselhar e assistir para que os propósitos das massas se concretizem. Nesse sentido, ele escreve:

Para a transformação da vida cotidiana, abrem-se dois caminhos: um, de baixo e outro, de cima. A partir de baixo, ou seja, combina os recursos e esforços de famílias individuais, criando casas familiares comunitárias, equipadas com cozinhas e lavanderias coletivas, etc. De cima, ou seja, por iniciativa do Estado ou sovietes locais para a construção de secretarias comunitárias de trabalhadores, cantinas públicas, lavanderias e creches, etc. Em um estado operário e camponês não pode haver contradição entre esses dois caminhos: um deve complementar o outro. Os esforços do Estado não levariam a lugar algum sem a luta independente das famílias trabalhadoras por um novo modo de vida. Mas sem o conselho e assistência dos sovietes locais e autoridades estatais, mesmo as iniciativas mais enérgicas das famílias trabalhadoras não poderiam levar a realizações significativas [113].

Oposto pelo vértice à atitude da burocracia que repele a participação ativa das massas na administração do Estado operário e seu autogoverno!

(...) o caminho para a nova família é duplo: a) elevar o nível de cultura e educação da classe trabalhadora e dos indivíduos que a compõem; b) a melhoria das condições materiais da classe que forma o Estado. Ambos os processos estão intimamente ligados entre si [86].

E também escreve:

(...) não deve haver nenhum tipo de compulsão de cima, ou seja, devemos evitar a burocratização de novos modos de vida. Somente através da criatividade das grandes massas populares, auxiliadas pela iniciativa artística e pela imaginação criativa, ela pode gradualmente, ao longo de anos e talvez décadas, nos conduzir no caminho para formas de vida novas, espiritualizadas e enobrecidas. [91].

O líder revolucionário penetra na psicologia das massas, exaustas pelos esforços de insurreição, guerra civil, fome e doença. Analisa as profundas contradições de um período criativo e transformador que constantemente colide com as forças opostas do passado, costumes arraigados e limites materiais. Examina que essas mudanças não serão autênticas, se não partirem do desejo das massas de elevar seu nível cultural para abandonar os costumes embrutecidos do passado, que o curso incipiente da burocratização reproduz, na tentativa de silenciar as iniciativas mais ousadas. Ele considera que uma reforma radical de toda a ordem da vida familiar "pressupõe a existência na própria classe de uma poderosa força molecular proveniente de um desejo íntimo e individual de crescimento cultural". [82] Sem isso, é-lhe impossível imaginar a transformação radical dos costumes ancestrais, da instituição familiar e da situação das mulheres.

Não isenta todos os militantes conscientes de trabalhar pela transformação da vida familiar; mas ela espera que as mulheres revolucionárias sejam as únicas a liderar essa batalha. Ele escreve que “infelizmente, a inércia e o hábito são forças poderosas. Em nenhuma área o hábito chato e cego é mais forte do que em uma vida familiar fechada e sombria. E quem é a primeira a ser chamada contra a situação bárbara da família senão a mulher revolucionária?” [114]. A transformação radical da vida cotidiana não é automática; a tomada do poder pela classe trabalhadora não destrói em um ato os costumes que, durante séculos, imperceptivelmente se estabeleceram como camadas geológicas sólidas e imóveis. As reformas legais também não são garantia, nem mesmo a socialização dos meios de produção e as grandes transformações da economia! Embora tudo isso seja necessário, não é suficiente.

Por isso, mesmo em meio a uma situação econômica e política difícil para o Estado operário, Trótski ousa convocar as mulheres a lutar pela maior socialização possível do trabalho doméstico. Ele os convoca a combater, conscientemente, contra a inércia e os hábitos cegos e – como escreve em “Carta a uma assembleia de mulheres trabalhadoras em Moscou” – os convida a pressionar com “a opinião pública coletiva das mulheres trabalhadoras”, para que “seja faz todo o possível para alcançá-lo, considerando nossas forças e recursos atuais” [114]. Ele está convencido de que “a primeira tarefa, a mais próxima, a mais urgente, a mais profunda, é fazer com que a vida cotidiana saia do silêncio” [213].

Seguindo a tradição dos socialistas utópicos do século XIX, parafraseada por Marx e Lênin, Trótski também considera que o desenvolvimento de uma sociedade é medido pelo grau de progresso em direção à liberdade das mulheres. Liquidar a milenar opressão feminina é avançar na construção de uma sociedade socialista e o socialismo não é uma meta predestinada para a Humanidade, não é a consequência inexorável, automática ou espontânea da revolução proletária e da conquista do poder pelas massas. A evolução posterior da União Soviética é um exemplo disso: a revolução foi traída e, com ela, expiraram os direitos das mulheres conquistados no alvorecer da insurreição. A família patriarcal foi consolidada, enquanto a libertação das mulheres passou a ser representada exclusivamente como a participação massiva das mulheres em todas as esferas da produção. Mas a coisa mais perniciosa que o stalinismo fez, neste campo, foi apresentar-se como o herdeiro genuíno da visão socialista original e que as gerações seguintes aprenderam a chamar as experiências deformadas pela burocratização de “socialismo real”.

Em 1923, esse futuro ainda era incerto, ou melhor, era preciso lutar com todas as forças disponíveis para reduzir sua probabilidade. Não eram poucos os que ainda acreditavam que

À medida que a humanidade começa a erguer palácios no alto do Monte Branco e no fundo do Atlântico, para regular o amor, a nutrição e a educação, elevando o tipo humano médio ao nível de um Aristóteles, um Goethe e um Marx, conferirá aos seus modo de vida não só riqueza, intensidade, mas também o mais alto dinamismo. Mal formada, a casca da vida cotidiana vai estourar sob a pressão de novas invenções técnicas e culturais e realizações biopsíquicas [316].

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Direitos que nenhuma democracia capitalista da época poderia sequer imaginar; gigantescas transformações econômicas e sociais que lançariam as bases para a construção de uma sociedade liberta de todas as suas correntes; e auto-organização, liberdade de iniciativa, ousadia e consciência para direcionar essas ações na perspectiva de um futuro comunista. O mesmo vale para a transformação da família, das relações de gênero, a crescente socialização do trabalho doméstico, os desafios dos correspondentes operários da imprensa, a educação da juventude ou o trabalho dos clubes proletários. Estas são as chaves do período de transição para o socialismo, expressas por Trótski nos artigos reunidos neste volume e condensadas no grande empreendimento coletivo de elevar o nível cultural das massas em tudo o que diz respeito à vida cotidiana.

Não há dúvida de que o ser humano do futuro, o cidadão da comuna, será uma criatura muito interessante e atraente, mas terá uma psicologia... Peço desculpas aos camaradas futuristas: acredito que o homem do futuro ainda terá uma psicologia (risos)... terá, quer dizer, uma psicologia profundamente diferente da nossa. Mas nossa tarefa hoje ainda não é – infelizmente, se você quiser – educar esse ser humano do futuro. Não acreditamos no ponto de vista utópico, humanista e psicológico, que diz que primeiro um novo homem deve ser educado e depois as novas condições serão criadas. Sabemos que o ser humano é produto das condições sociais e delas não pode fugir. Mas sabemos outra coisa, e é que existe uma relação complexa e ativa entre condições e pessoas: o próprio ser humano é um instrumento de ação histórica, e não menos importante. Dentro desse complexo quadro histórico de meio ambiente e seres humanos ativos, estamos criando agora, também através da Universidade de Sverdlov, não o cidadão abstrato, harmonioso e perfeito da comuna. Não, estamos formando os seres humanos concretos do nosso tempo que ainda têm que lutar para criar as condições capazes de fazer emergir o cidadão harmonioso da comuna. Isso é muito diferente, pelo simples fato de que, francamente, nosso bisneto, um cidadão da comuna, não será um revolucionário [254].

Era 1923. Na Alemanha estava em jogo o destino da revolução internacional; na Rússia, o desenvolvimento antagônico do campo e da cidade atraiu tesouras que poderiam pôr em perigo a economia do Estado operário; Lênin foi atingido por uma doença e estava à beira da morte; amplos setores do partido expressaram seu desacordo e desconforto com a direção que a liderança estava tomando sob a tutela de Stálin. E Trótski, o criador do Exército Vermelho que enfrentou a invasão de quatorze exércitos imperialistas, mais uma vez pegou as armas da crítica para colocar em destaque as questões "inquestionáveis" da vida cotidiana. Ele estava convencido, como Lênin, de que elevar o nível cultural das massas era uma tarefa crucial nesta fase em que era necessário combater todas as tendências à burocratização do partido e do Estado, favorecidas tanto pelas circunstâncias de atraso nacional quanto pela perspectiva de uma possível derrota da luta de classes internacional. Ele elaborou um plano de guerra, com seus artigos compilados nesta obra, forneceu armas a um exército de agitadores e propagandistas para fortalecer aquela batalha. Uma que ocorreu em meio ao que alguns historiadores e analistas políticos reacionários queriam ver como a luta pelo poder e que, no entanto, era uma luta revolucionária –dentro da revolução– para transformar radicalmente a vida sem ceder um pingo às tendências que pressionavam o rumo da burocratização.

Problemas da vida cotidiana e outros escritos sobre cultura na transição para o socialismo revela novas dimensões do conflito histórico que enfrenta a revolução proletária com excepcional profundidade, sensibilidade e perspicácia. Que mais uma vez, a pena do escritor que não era escritor, transformada em arma pelo chefe do exército que não era soldado, permite limpar as bandeiras revolucionárias profanadas pela casta burocrática que construiu um “socialismo real” que não foi socialismo. As jovens gerações que sofrem com a exploração, opressão e depredação da natureza por um capitalismo que, quase cem anos depois da escrita desta obra, saberão tirar as lições desse trabalho monumental e minucioso para a construção do futuro socialista mundial.


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FOOTNOTES

[1O Tratado de Versalhes – que entrou em vigor em janeiro de 1920 – pôs fim à Primeira Guerra Mundial ao estabelecer, entre outras medidas, que a Alemanha e seus aliados assumiriam toda a responsabilidade moral e material pela guerra e, consequentemente, deveriam se desarmar, fazer concessões territoriais e pagar indenizações onerosas aos estados vitoriosos.

[2Ver Trotsky, León, Os primeiros 5 anos da Internacional Comunista, Buenos Aires, Edições IPS-CEIP, 2016 (Obras Selecionadas 9, co-publicadas com o Museo Casa León Trotsky).

[3Trotsky, León, La Revolución Traicionada y otros escritos, Buenos Aires, Ediciones IPS-CEIP, 2014 (Obras Selecionadas 6, co-editadas com o Museo Casa León Trotsky)

[4“El burocratismo y la revolución” en Trotsky, León, El nuevo curso.

[5Ver em Lênin, V. I., Obras selectas, Tomo 2, Buenos Aires, Ediciones IPS, 2013.

[6León Trotsky, Mi vida. Intento autobiográfico, Buenos Aires, Ediciones IPS-CEIP, 2012 (Obras Escolhidas 2, co-editadas com o Museo Casa León Trotsky), p. 491.

[7Idem

[8León Trotsky, “Problemas del desarrollo de la URSS”, em Naturaleza y dinámica del capitalismo y la economía de transición (compilación), Buenos Aires, CEIP, 1999, p. 509.

[9Citado por Trótski no "Prefácio à primeira edição" de Problemas da Vida Cotidiana, incluído nesta edição. A partir de agora, as citações de textos que fazem parte deste trabalho serão referenciadas com a indicação do número da página correspondente entre colchetes.

[10Citado por Aleksandr Reznik em “León Trotsky, la política y la cultura en los años 20”, semanario Ideas de Izquierda, 21/06/20, consultado em León Trotsky la política y la cultura en los años 20 (https://www.laizquierdadiario.com/Leon-Trotsky-la-politica-y-la-cultura-en-los-anos-20).

[11Deutscher, Isaac, Trotsky, El profeta desarmado, Buenos Aires, Ediciones IPS-LOM, 2020, p. 29.

[12León Trotsky, La teoría de la revolución permanente (compilação), Buenos Aires, Ediciones IPS-CEIP, 2011, p. 418.

[13Trotsky, León, “Twenty Years of Stalinist Degeneration”, Fourth International, Vol. 6 N. 3. Consultado no dia 24/7/21, em: marxists.org/archive/trotsky/1938/xx/stalinism.htm.

[14Wendy Goldman, La mujer, el Estado y la revolución, Buenos Aires, Ediciones IPS, 2010.

[15Em várias ocasiões, Trótski, como outros autores da época, falará de sexos para se referir ao que hoje chamaríamos de gêneros
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Andrea D’Atri

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