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"Com desastre bolsonarista, regime aposta em Lula-Alckmin para se relegitimar", diz André Barbieri

André Barbieri

"Com desastre bolsonarista, regime aposta em Lula-Alckmin para se relegitimar", diz André Barbieri

André Barbieri

As eleições ocorrerão no Brasil no dia 2 de outubro. Quase 156 milhões de brasileiros estão habilitados para votar em uma eleição crucial no maior país da América Latina. As eleições são para presidente, para a Câmara dos Deputados, para um terço do Senado, para governadores e para as câmaras legislativas estaduais. Embora uma dúzia de candidatos estejam disputando a presidência, o cenário é altamente polarizado entre o atual presidente Jair Bolsonaro e Lula da Silva. Convidamos André Barbieri, editor do Esquerda Diário e do Ideias de Esquerda, para falar sobre o cenário político em que estas eleições estão ocorrendo, as mudanças no sistema político brasileiro, que avaliação pode ser feita do fenômeno Jair Bolsonaro, sua base de apoio e as perspectivas para o continente.

1) As eleições no Brasil se projetam como um dos momentos políticos mais destacados do ano. O que está em jogo no panorama nacional e latinoamericano?

Muitas coisas estão em jogo nessas eleições. Desde o destino do governo desastroso da extrema direita, que acabou sendo elevado como a culminação do golpe institucional de 2016, orquestrado por todos os setores políticos do regime que ora se posicionam politicamente avessos a Bolsonaro – embora concordem com seus ajustes econômicos ultraliberais e antioperários – até o destino de importante parcela da esquerda que agora se dilui programática e politicamente na chapa de conciliação de classes de Lula com Geraldo Alckmin, ícone da direita de São Paulo, estado mais rico do país.

O desastroso governo da extrema direita trouxe mais fome, desemprego e miséria a um país que vinha golpeado pela crise econômica desde 2013. A pandemia agravou todos os indicadores sociais contra a população pobre, que viveu incontáveis ajustes econômicos organizados pelo governo golpista de Michel Temer, a partir de 2016, e especialmente durante o governo Bolsonaro. A alta mundial da inflação e dos preços dos alimentos pela guerra na Ucrânia impacta o Brasil, e faz convergir para baixo as instáveis projeções econômicas de 2023. Isso tem implicações diretas para as eleições brasileiras, uma vez que a parcial recuperação do PIB neste semestre não tem fundamentos estruturantes, está baseada em preços conjunturais mais altos das commodities, e não se faz sentir sobre a vida de milhões de pessoas, com a qualidade precária do trabalho e inflação nos preços dos alimentos. Imaginemos que para o governo Bolsonaro os indicadores de melhora na economia se tornam parte do arsenal discursivo de campanha; entretanto, além das quase 1 milhão de mortes no Brasil pela catastrófica gestão da COVID-19, o governo foi responsável pelo aumento do desemprego e do desalento, 33 milhões de pessoas passam fome no país, e 120 milhões se encontram em situação de insegurança alimentar no país que mais produz alimento no mundo.

A economia brasileira perdeu peso relativo na América Latina na última década, e a maior queda se deu com Bolsonaro: em 2011 o Brasil era responsável por 44% do PIB da região, enquanto hoje tem uma parcela de 31%. O atraso e a dependência da estrutura produtiva brasileira se agravaram com a política econômica liberal e ultraliberal. Por outro lado, as promessas de campanha de Lula, de que reeditaria a bonança dos anos 2000, é uma ilusão diante das projeções internacionais, num panorama excessivamente distinto do alto preço das matérias-primas e da entrada de dólares no país, em função do crescimento chinês (que agora se desacelera e cresce no patamar mais baixo em 30 anos) e dos investimentos de capitais ocidentais. Lula já adverte que se vencer as eleições “não poderá fazer milagres”, um eufemismo para a política já projetada de administrar junto com a direita liberal o legado econômico herdado desde 2016, como a reforma trabalhista e da previdência.

Quanto aos EUA, Biden e a administração Democrata passam por dificuldades econômicas e políticas às vésperas das eleições de meio mandato, em que os Republicanos tendem a se recuperar com a figura de Trump. Tendo um histórico de golpes militares na América Latina, a Casa Branca fala cinicamente de “democracia e segurança nas eleições” brasileiras, com o objetivo de marcar seu afastamento de Bolsonaro e da possibilidade de ter um trumpista reeleito na maior economia latino-americana. O alinhamento do regime político com o governo Biden ficou expresso na operação de relegitimação do regime organizado no 11 de agosto, com a leitura das “cartas pela democracia” articuladas contra Bolsonaro pelo capital industrial da FIESP (Federação Industrial de São Paulo) e pelo capital financeiro da FEBRABAN, que congrega as instituições bancárias, e no 16 de agosto com a posse do ministro Alexandre de Moraes no Tribunal Superior Eleitoral, em defesa dos procedimentos eleitorais ameaçados por Bolsonaro. Ao mesmo tempo, a antipatia diante de Bolsonaro implica quererem um Lula bastante condicionado ao capital financeiro e às reformas antioperárias, algo para o qual Lula se disciplina enquanto mantém certos atritos discursivos com Biden.

O resultado das eleições no Brasil tem impacto em toda a América Latina. Lula segue na frente em todas as pesquisas, embora Bolsonaro tenha recuperado certo terreno com medidas econômicas demagógicas para a compra de votos, como a extensão do Auxílio Brasil, um programa de assistência financeira estatal aos mais pobres, até o final do ano. Isso não vem sendo suficiente, e as pesquisas apontaram na última semana uma reversão da reaproximação de Bolsonaro: Lula vem colhendo apoios em setores decisivos do velho regime político de 1988. As perspectivas que tendencialmente levariam as eleições para o segundo turno vão se transformando, e agora existem chances reais de que Lula seja eleito no primeiro turno.

O favoritismo de Lula é parte de uma determinada relação de forças que se estabelece na política pendular da América Latina. O último ciclo de governos da direita na região foi castigado pela catástrofe econômica das políticas liberais, como as privatizações e os ajustes, e pela gestão da pandemia. Foi o que vimos no Chile, com o triunfo de Boric depois da presidência Piñera ter vivido a Rebelião de 2019 (desviada para os canais institucionais com a Convenção tutelada, com ajuda da Frente Ampla de Boric e do Partido Comunista), e na Colômbia com o triunfo de Gustavo Petro. Antes disso, Pedro Castillo havia derrotado Keiko Fujimori no Peru.

Esses resultados foram elogiados pela Casa Branca, que passou a ser obrigada a lidar com uma América Latina sem interlocutores claros, para além da subordinação ao imperialismo. Politicamente, como Lula vem fazendo já na campanha com Alckmin, esses governos ditos “de esquerda” adotaram um programa de conciliação de classes reformista que rapidamente se expressaram na realidade. Boric fortaleceu a direita com sua conciliação com os partidos do regime dos “30 anos”, com a expresso na mudança da situação após o rechaço contundente à proposta de nova Constituição, feita mediante o desvio institucional da Rebelião de 2019 por uma Convenção tutelada aos poderes herdeiros do pinochetismo. Petro anunciou desde o início um pacto de unidade nacional com a ala uribista do regime, tendo triunfado depois de auxiliar na desativação dos protestos na Colômbia contra o direitista Ivan Duque. No Peru, Castillo se encontra numa espiral de crise permanente com as alianças com empresários da direita e funcionários do próprio regime fujimorista, buscando aproximar-se inclusive de Bolsonaro.

Uma política dessa natureza só pode fortalecer a direita, e o PT está no Brasil reeditando a política de conciliação de classes que nos trouxe até aqui, agora com apoio direto do PSOL, diluído na campanha e com uma federação partidária que praticamente funde esse partido com a Rede, um partido burguês. Afinal, como argumentam Daniel Feldmann e Fabio dos Santos, no livro “Brasil autofágico. Aceleração e contenção entre Bolsonaro e Lula”, as bases de apoio do bolsonarismo se foram gestando nos meandros das políticas de Estado do lulismo em particular, e do PT em geral, que ao tratar de conter a crise com conciliação, acabou por acelerá-la. Tudo isso está em jogo no Brasil.

2) Para onde vai o universo partidário brasileiro? Está em crise o regime político pós-ditadura?

Um rápido olhar comparativo sobre o regime partidário brasileiro mostra diferenças profundas em relação ao paradigma das forças políticas tradicionalmente prevalentes. A principal mudança é o derretimento da direita tradicional, representada especialmente pelo PSDB – que com Fernando Henrique Cardoso governou o país entre 1994 e 2001, e com Mário Covas, José Serra e Alckmin tiveram domínio inconteste em São Paulo por décadas. O PSDB perdeu boa parte de sua base social para a extrema direita bolsonarista. Outros partidos da direita tradicional, como o MDB e o Democratas, perderam prestígio, embora sigam, como o PSDB, com força nos interiores do Brasil. O Democratas foi obrigado a se fundir com o PSL, ex-partido de Bolsonaro, para fundar o União Brasil, que como o MDB não tem perspectivas para a presidência e aposta tudo no crescimento dentro do Congresso. Ou seja, olhando o panorama do sistema de partidos, aqueles que eram a extrema direita do regime de 88 (PP e PFL-DEM) agora são parte uma espécie de “centro-direita”, com a nova extrema direita bolsonarista… Estamos, portanto, falando da alteração de um paradigma de polarização das últimas décadas, que opunha o PT e o PSDB nas eleições presidenciais, e que está superada. Mesmo se Bolsonaro perder as eleições, a base social bolsonarista seguirá sendo uma força política de ao redor de 30% do eleitorado, que buscará no próprio Bolsonaro ou em algum político apadrinhado por ele o seu herdeiro. Outro aspecto da estrutura política brasileira é o peso do chamado Centrão, os partidos fisiológicos que controlam as votações e o orçamento a partir do Congresso. Esses partidos liberais, sem qualquer denominador ideológico, sempre foram parte do sistema político desde a redemocratização os pactos de transição pós-ditatura em 1988. Foram parte de todos os governos, do PSDB e do PT, desde então. Agora, entretanto, ganharam força maior com o governo Bolsonaro, que entregou as chaves do orçamento em suas mãos, para que em troca do controle financeiro das verbas necessárias para conquistar votos em seus redutos eleitorais, apoiem Bolsonaro contra as comprovadas acusações de corrupção e criminosa administração sanitária na pandemia. Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados por parte de um partido do Centrão, o Partido Popular, é o principal aliado de Bolsonaro, e organiza esse conjunto de partidos como base de governo.

O politólogo Sérgio Abranches, em seu livro sobre o presidencialismo de coalizão no Brasil, argumenta que a estabilidade do mandato presidencial é um resultado direto do apoio da coalizão majoritária, principalmente nos momentos de crise política, e que a ausência de acordos pragmáticos dificulta as negociações em torno da coalizão, deixando o governo sujeito a crises políticas disruptivas. Esse desequilíbrio aumenta com a força do Congresso sobre a Presidência. Há um evidente fortalecimento do Legislativo diante do Executivo, que após a entrega do controle do orçamento federal à Câmara negocia em termos desvantajosos com os parlamentares, que se aproveitam da debilidade do Executivo para aumentar seu crédito político. Essa transformação dificilmente será modificada num eventual governo Lula-Alckmin, ao menos sem que haja muitos atritos com o Congresso, responsável por levar adiante em 2016 toda a campanha da Lava Jato que resultou no impeachment de Dilma Rousseff e no golpe institucional. O controle do Congresso por partidos como o PP, o Partido Liberal (PL) de Bolsonaro, o Republicanos (que congrega políticos que controlam a cúpulas das igrejas evangélicas), diante do enfraquecimento do PSDB e do MDB, além do aparecimento do União Brasil, reconfiguram as cartas do tabuleiro partidário no interior das forças orgânicas do regime burguês. O PT, que se refortaleceu depois da enorme queda de 2016, em que perdeu mais da metade das prefeituras que comandava, ainda depende excessivamente de Lula (embora novas figuras possam emergir, como Fernando Haddad, que foi candidato à presidência em 2018 e agora pode vencer o governo de São Paulo). Caso eleito, Lula vai ser obrigado a usar o prestígio de quem derrotou Bolsonaro para tratar de encontrar personagens que lhe possam suceder, sem ter o carisma e a simbologia de ligação com o movimento sindical e os movimentos sociais, desde seus tempos na presidência da burocracia do Sindicato dos Metalúrgicos no ABC, em que teve papel chave na contenção do ascenso operário do final dos anos 70, e inclusive durante os anos 80.

Outro aspecto é a força política dos tribunais e do poder judiciário, em que juízes que não foram eleitos por ninguém continuam a definir políticas, assim como o poder dos militares na política. Em muitos momentos, esses atores, com políticas heterogêneas, se superpõem, como vemos no acordo do Tribunal Superior Eleitoral para que os militares participem da apuração dos resultados presidenciais, um pacto autoritário já que desde a redemocratização as Forças Armadas não tinham voz na organização de pleitos eleitorais. Isto dá ao regime um caráter extremamente autoritário. Uma política democrática coerente, até mesmo básica, exigiria a abolição de todos os privilégios dos juízes, que devem ser eleitos e revogáveis, recebendo o salário médio de um trabalhador, com julgamentos realizados por júri popular.

Desse ponto de vista, podemos discutir não tanto em termos da crise do regime da Nova República de 1988, e sim da reconfiguração complexa, ainda em curso, de um novo regime político sobre as suas ruínas. Era o que já apontávamos no livro que publicamos, Brasil: Ponto de Mutação.

3) Que significou o governo Bolsonaro do ponto de vista da atuação dos militares na política?

O bolsonarismo, como fenômeno de governo, representa uma variante de bonapartismo. Trótski definia mais em geral o “bonapartismo” como forma de governo que busca se elevar por cima dos campos em luta, apoiando-se mais diretamente nas forças armadas em detrimento do parlamento, sempre com o fim de preservar a propriedade capitalista e para impor a ordem, sem ainda soar o alarme de enfrentamentos físicos mais decisivos. Bolsonaro se apoiou nos generais de seu governo e no autoritarismo judiciário para impor ataques favoráveis ao capital financeiro e industrial. Apesar disso, Bolsonaro não conseguiu prescindir do parlamento, dependendo sistematicamente de sua base no Congresso para evitar crises, o que nos permite precisar ainda mais as características do seu governo, como pré-bonapartista, já bastante frágil porque amplos setores da classe dominante que lucraram com seus ajustes e reformas agora apoiam a candidatura de Lula, tendo assegurado que um possível governo Lula-Alckmin não altere as reformas econômicas aplicadas. Esta variante pré-bonapartista de direita serviu para a contenção da luta de classes enquanto se apoiava no imperialismo para aplicar ajustes. Ao mesmo tempo, representou o agravamento do atraso e da decadência econômica do país, seu enraizamento na estrutura primarizadora de uma economia dedicada à exportação de bens agrícolas e ao extrativismo, altamente dependente de capitais estadunidenses e chineses. Seu fundamento é o ultraliberalismo como modus operandi, como defendem Trump nos EUA, Giorgia Meloni na Itália, ou Javier Milei na Argentina, com ajustes e contrarreformas que esmagam sob seu peso as massas trabalhadores na precariedade, na fome e na miséria. Do ponto de vista das opressões, robusteceu o ódio aos negros, às mulheres, à população LGBTQIA+.

Todo esse autoritarismo reacionário, que tem seu correlato na arbitrariedade do Supremo Tribunal Federal e do judiciário (que ora se opõe politicamente a Bolsonaro, mas foi o primeiro violino junto à Lava Jato na arquitetura do golpe institucional) está expresso no peso dos militares na política. Vimos novamente na celebração do 7 de setembro, jornada de apoio político a Bolsonaro, o peso ultraconservador. Os generais e oficiais de alta patente ocupam milhares de cargos civis. São 8.000 militares distribuídos em todos os escalões do governo, fortalecendo o lobby internacional no mercado de equipamentos bélicos e aumentando seu controle sobre o lucrativo comércio de armas, o que explica a convocação do clã Bolsonaro por “voluntários armados” na campanha. Esses generais dominam as verbas públicas de ministérios, empresas estatais, secretarias de todo o tipo, com múltiplos privilégios num país asfixiado pela fome e a pobreza. Os generais foram aqueles que deram origem ao Centrão durante a transição pactuada pós-ditadura militar, para impor um dique reacionário contra os anseios democráticos das massas.

Como explica o pesquisador Pedro Campos, em seu livro “Estranhas Catedrais”, os militares estiveram envolvidos em todos os principais esquemas de corrupção com as empreiteiras brasileiras entre 1964 e 1988, e seguem umbilicalmente ligados a essa trama de desvio de verbas, alocação de cargos e privilégios na máquina estatal, que é inerente ao capitalismo. Através dos seus porta-vozes no Superior Tribunal Militar, esses generais falam impunemente das torturas documentadas e comprovadas durante o regime militar. Assim, a presença dos militares na política é um aspecto central do autoritarismo bonapartista do novo regime, mais especificamente do bolsonarismo como corrente política em sua integração ao regime, e que atendem aos interesses do imperialismo e do grande capital, os verdadeiros amos do país.

Os militares enquanto atores da política nacional foram fortalecidos nos governos de Lula, como no caso do envio das tropas brasileiras para o Haiti em missão da ONU (denunciada por inúmeros escândalos contra a população negra), em que inúmeros generais da operação - como Augusto Heleno, braço direito de Bolsonaro - hoje são ligados ao governo. Lula já admitiu que “não tem problemas com os militares” e que provavelmente não mudará demasiado a configuração que dá ampla margem para a participação dos generais na política, ou seja, não quer indispor-se com um dos pilares mais reacionários do regime e divulgando o mito de uma ala “democrática” nas Forças Armadas. Um programa sério da esquerda que se opõe à conciliação com a direita e os militares “democráticos” defendida pelo PT exige a abolição de todos os privilégios materiais dos militares de alta patente, suas pensões vitalícias, os altos salários, etc., o fim dos tribunais militares e a realização de todos os julgamentos por júri popular, ligado à abolição da Lei da Anistia de 1979 com a punição de todos os responsáveis civis e militares pelos crimes de Estado durante a ditadura militar.

4) Há uma participação enorme da cúpula evangélica na política, como você avalia o peso que esses setores adquiriram?

As cúpulas evangélicas também adquiriram destaque na política como uma das principais bases de apoio da extrema direita bolsonarista. Caminhou junto ao bolsonarismo como reação ao forte movimento de mulheres que se levantou nos últimos anos (como vimos na Argentina com a Maré Verde), porque consideram as mulheres um setor social que pode questionar seus planos conservadores e o domínio patriarcal das igrejas. Como mencionei, partidos como o Republicanos ou o Partido Social Cristão, pertencentes ao Centrão, são representações parlamentares das grandes igrejas evangélicas, com pastores-políticos milionários como Edir Macedo e Silas Malafaia, que servem de base a Bolsonaro. Formam a Frente Parlamentar Evangélica na Câmara dos Deputados, criada em 1990 pela Igreja Universal do Reino de Deus, hoje com 194 membros num universo de 513 deputados (em 1986, 33 evangélicos haviam sido eleitos para a Assembleia Constituinte). É um bloco heterogêneo em seus interesses particulares, mas responsável por atacar permanentemente os direitos das mulheres e da população LGBTQIA+, e envolvida em inúmeros casos de corrupção, como se viu com o ex-ministro da Educação de Bolsonaro, Milton Ribeiro, que desviava dinheiro público da Educação para favorecer com propinas as prefeituras indicadas por pastores aliados. É importante diferenciar aqui os milionários pastores que controlam o “estado-maior” das direções evangélicas, dos trabalhadores evangélicos comuns, que não pertencem às milícias fanáticas da extrema direita, muito menos dos lucros e privilégios das cúpulas dessas igrejas. Fruto da dramática situação econômica, uma fração considerável dos evangélicos pode terminar rompendo com Bolsonaro, contra as instruções dos pastores: as enquetes mostram que entre os evangélicos Bolsonaro segue tendo vantagem (46% nesse eleitorado), mas Lula colhe ganhos, com 27%. Embora tenha ficado marcada como base do bolsonarismo, as cúpulas dessas igrejas receberam estímulo nos governos do PT, de Lula e de Dilma, que chegou a formular a infame “Carta ao Povo de Deus” em seu primeiro mandato, entregando direitos elementares das mulheres como o direito ao aborto livre, legal, seguro e garantido pelo Estado. A defesa da separação entre Igreja e Estado e o fim do culto na política é um direito democrático elementar que não está contemplado na conciliação petista, e que exige um feminismo socialista ligado à batalha contra o capitalismo brasileiro.

5) A aliança Lula-Alckmin é apenas um cálculo eleitoral? Qual seu verdadeiro significado?

A política brasileira dá razão ao bom Sancho Pança quando diz, “tanto anda como desanda, e os que ontem estavam nos cornos da lua, hoje estão estatelados no chão”. Lula, que foi preso arbitrariamente pela regime golpista de 2016, encabeçado pelo Judiciário, agora é recolhido no seio desse mesmo regime herdeiro do impeachment de Dilma e das eleições manipuladas de 2018 para resgatar o rosto do sistema político em crise com os efeitos do bolsonarismo.

A chapa Lula-Alckmin não é apenas um cálculo eleitoral para a derrota de Bolsonaro. É uma aposta do regime político para se relegitimar depois das operações arbitrárias e autoritárias que manipularam as eleições de 2018, que levaram Lula à prisão e que conduziram a extrema direita ao poder, para aplicar ajustes em um nível mais acelerado do que o PT foi capaz de fazer. No curso desses últimos anos, esse regime político foi sumamente desgastado na opinião pública com as crises provocadas por Bolsonaro. Diante disso, a chapa de conciliação de classes do PT é um instrumento útil para que o grande capital evite que a insatisfação contra Bolsonaro se manifeste de maneira independente e se volte contra as reformas ultraliberais. É importante levar em conta que a repactuação do regime com o PT, que inclui o grande capital que em 2018 estava politicamente com Bolsonaro, tem como ponto de partida a preservação dos ataques econômicos do atual governo. Alckmin foi escalado como porta-voz do PT junto às patronais para garantir que um novo governo Lula manteria de pé a reforma trabalhista do golpista Michel Temer. Assim também, a chapa busca relegitimar esses atores econômicos e o regime político após tantos anos de ataques e golpes contra as condições de vida da população trabalhadora e pobre.

Politicamente, é impossível enfrentar seriamente o bolsonarismo e os militares junto com as personalidades da direita que se aglomeram ao redor do PT. Basta olhar a galeria "ilustre" de apoiadores que Lula colheu na última semana para examinar o efeito relegitimador buscado. Além de ter Alckmin como vice, Lula ganhou o apoio mal velado de Fernando Henrique Cardoso, símbolo da direita neoliberal no país, que aplicou os ajustes comandados pelo Consenso de Washington na década de 1990 e reprimiu a histórica greve dos petroleiros em 1995. Ademais, Lula ganhou o apoio de Henrique Meirelles, ex-funcionário do capital financeiro internacional. Meirelles, que foi presidente do Banco Central de Lula entre 2003 e 2011, atuou como Ministro da Fazenda do golpista Michel Temer, e em festa de gala da campanha do PT para acolher seu apoio, disse que só vai apoiar a chapa Lula-Alckmin na condição da manutenção dos ataques econômicos herdados. Ameaçou mais, dizendo que quer "fechar estatais que já perderam finalidade, cortando benefícios indevidos". Como se não bastasse, Lula recebeu apoio público de ninguém menos que Miguel Reale Jr., um dos autores do pedido de impeachment contra a então presidente Dilma Rousseff, que abriu todo o processo do golpe institucional que culminou na eleição de Bolsonaro, com a ajuda da Lava Jato e do STF, lembrando que Reale Jr. já tinha sido Ministro da Justiça. Como mostrou o exemplo do Chile, a conciliação de classes sempre fortalece a direita. Sempre. Ciro Gomes é um político burguês que fala ao campo de influência já hegemonizado por Bolsonaro. Mas o que dizer de Lula junto a Alckmin, FHC, Meirelles, Miguel Reale Jr. e toda a galeria de direitistas em todos os estados do país? Só aumentará a pressão que a base conservadora e reacionária do bolsonarismo terá sobre o governo.

A questão central é que as alianças com a direita hoje já não se dão na situação de bonança dos anos 2000. Se tomarmos a política como economia concentrada (Lênin dixit), é forçoso admitir que as dificuldades econômicas latino-americanas vão erodindo qualquer margem de manobra política para fenômenos “pós-neoliberais” do início do século, que puderam passivizar e desorganizar a classe trabalhadora mediante concessões limitadas, ao passo em que mantinham de pé os pilares do neoliberalismo (a precarização do trabalho, privatizações dos serviços públicos, a penetração das multinacionais, a reprimarização exportadora com especialização em commodities, a dependência do capital financeiro internacional). O lulismo significou essa combinação no Brasil, e à sua maneira específica traduziu para o país o que se verificava com o kirchnerismo na Argentina, com o chavismo na Venezuela, o evomoralismo na Bolívia, apoiados todos sobre as bases de economias capitalistas que serviam de apêndices às grandes potências.

Em uma carta de debate com o Partido Socialista Independente (OSP) da Holanda, em 1934, Trótski recordava que “sem reformas não há reformismo, e sem capitalismo próspero não há reformas. A direita reformista se torna anti-reformista no sentido de que ajuda, direta ou indiretamente, a burguesia a esmagar as velhas conquistas da classe operária”. No cenário da crise mundial, o “reformismo sem reformas” é a sina daquelas forças políticas que se afiguravam como “progressistas” ou “pós-neoliberais” nos anos 2000. Sem poder reeditar as condições daquele momento, Lula já prometeu que não vai reverter a massa de ataques anti-operários e anti-populares realizados desde 2016, como a reforma trabalhista e a reforma da previdência. Com isso em mente escrevi que Lula se encontra no espelho de Alberto Fernández, da Argentina, ou seja, se verá compelido pelos aliados, pelo regime, e por seu próprio DNA - de garantidor máximo da governabilidade capitalista - conviver com uma herança econômica que renuncia a revogar. Isso também fortalece a direita. Ao contrário, portanto, de pragmáticos petistas como José Genoíno, é importante que a classe trabalhadora se unifique e se organize para batalhar após as eleições para quebrar a herança maldita do bolsonarismo nas condições de vida e trabalho, qualquer que seja o novo governo - também no caso de que Lula-Alckmin vençam.

5) Que papel desempenharam os sindicatos e movimentos sociais no governo Bolsonaro? Como chegam às eleições?

As direções burocráticas dos sindicatos e dos movimentos sociais no Brasil, ligadas majoritariamente ao PT, estabeleceram um ciclo de trégua sepulcral com a burguesia e o regime desde o golpe institucional de 2016. De memória recente foi a traição das centrais sindicais após a greve geral do 28 de abril de 2017 contra a reforma trabalhista de Michel Temer, cancelando a continuidade de um plano de luta de derrubasse o governo golpista pela luta de classes, auxiliando o regime a recompor-se e lidar internamente com seus atritos sem o sujeito operário mobilizado. No governo Bolsonaro não houve paralisações nacionais da classe trabalhadora, apesar dos inúmeros ajustes e contrarreformas ultraliberais, como a reforma da previdência, arrocho salarial, novos dispositivos precarizantes na legislação trabalhista, assim como se calaram em momentos dramáticos como o assassinato dos ambientalistas Bruno Pereira e Dom Phillips por capangas da extrema direita, que causou comoção internacional. Nessas oportunidades, estava colocada a necessidade de uma greve geral que colocasse o sujeito operário em ação, aterrorizando a burguesia e estabelecendo, com um programa de emergência de caráter anticapitalista, a hegemonia sobre os setores empobrecidos e agravados pela fome e o desemprego.

Ao contrário, as burocracias sindicais da CUT (ligada ao PT) e da CTB (ligada ao PCdoB) impuseram uma passivização do movimento de massas que gerou uma impressão distorcida sobre o controle do regime sobre os conflitos sociais. Quanto mais próximo fomos chegando das presidenciais, com as enquetes apresentando a probabilidade do triunfo eleitoral de Lula, as centrais sindicais impuseram o silêncio dos cemitérios nos locais de trabalho: nada poderia sair do script e afetar as possibilidades eleitorais, e os atos convocados foram completamente controlados e transformados em comícios de apoio à chapa Lula-Alckmin.

Recordemos que depois das intensas jornadas de luta em dezembro de 2017 na Argentina, contra a reforma da previdência de Mauricio Macri, a burocracia sindical peronista da CGT e da CTA estabeleceram uma trégua com o governo direitista, com o lema “existe 2019” (ou seja, a solução dos problemas sociais deveria ser canalizado para a eleição de Alberto e Cristina). No Brasil, a concepção das burocracias ligadas ao PT é muito semelhante: “aguarde as eleições e vote em Lula, existe 2023”. Facilitam o objetivo do regime político de enquadrar os trabalhadores na comunhão com empresários da Fiesp e do grande capital para subordinar o ódio a Bolsonaro a uma transição controlada, eleitoral, que preserve seus ataques. Essa é a expressão no movimento de massas da política desmobilizadora e passivizante do PT em todo o curso de seus governos entre 2003 e 2016. Se os governos pós-neoliberais no Brasil e na América Latina, no início dos 2000, foram uma expressão distorcida de uma determinada relação de forças, da luta de massas contra as políticas neoliberais, devemos reconhecer conceitualmente que implantaram – como o PT fez – a passivização daqueles processos de mobilização dos quais se originaram, no sentido de uma desmobilização e subalternização das massas, como categoriza o sociólogo Massimo Modonesi. Ao realizar concessões parciais, tomando demandas que vinham das camadas mais populares, retiram sua raiz mais radical ou disruptiva, e bloqueiam a emergência de um sujeito operário que atue com seus próprios métodos. A questão é que esse modo de operação continua, inclusive diante de um governo de extrema direita. As burocracias seguem cumprindo esse papel auxiliar chave para a estrutura estatal e a estabilização do regime, freando as lutas contra o governo Bolsonaro e magnificando a lente que retrata de maneira distorcida a força dos atores dos poderes constituídos, que gozam do luxo de brigar entre si enquanto os trabalhadores que querem lutar são contidos por suas organizações. Por isso é fundamental a exigência às direções majoritárias do movimento de massas, em primeiro lugar da CUT, CTB e UNE, que impulsionem um verdadeiro plano de luta contra Bolsonaro e suas ameaças golpistas, e pela revogação de todas as contrarreformas e ataques, para convocar à luta pelas demandas econômicas da classe trabalhadora contra a carestia de vida e a fome.

7) Quais os desafios da esquerda brasileira hoje?

Como disse no início, a esquerda brasileira tem muito em jogo nessas eleições. São eleições marcadas pela possibilidade de uma importante reorganização da esquerda em função da crise do PSOL, partido surgido em 2004 a partir de uma ruptura de parlamentares do PT, e que agora vai culminando um processo de dissolução programática e organizativa no petismo, com sua diluição na campanha Lula-Alckmin. Ademais, o PSOL configurou uma “federação partidária” com um partido burguês, a Rede Sustentabilidade de Marina Silva (apoiadora do golpe institucional de 2016, financiada pelo capital financeiro e inimiga do direito ao aborto); por essa federação, PSOL e Rede estão obrigado a ter o mesmo programa e uma atuação parlamentar comum pelos próximos 4 anos. Esse giro à direita levou a rupturas de figuras parlamentares importantes do partido para o PT, PSB (como Marcelo Freixo, para o mesmo partido de Alckmin), e também rupturas à esquerda, como um importante grupo de ativistas e intelectuais como Plínio de Arruda Sampaio Jr, o que indica o descontentamento da base. O PSOL foi sempre um partido afastado da luta de classes, sem centralidade operária como sujeito revolucionário, com uma concepção de partido amplo que engloba correntes heterogêneas, sem definição estratégica entre reforma e revolução. A crise do NPA na França, com suas diferenças em relação ao PSOL, ilumina essa debacle da concepção de partido amplo no mundo, que cedendo progressivamente ao mal menor vai se identificando programaticamente com o reformismo. A crise do PSOL é um aspecto muito importante da conjuntura eleitoral, e uma oportunidade para a esquerda revolucionária através balanços estratégicos que podem remodelar a esquerda brasileira. Nós do Movimento Revolucionário de Trabalhadores (MRT) estamos atuando nesse novo cenário e na conjuntura eleitoral, agitando contra Bolsonaro e as reformas, sem nenhuma aliança com a direita e os patrões, o que significa unificar os trabalhadores com uma política de independência de classe, que enfrente seriamente a extrema direita, os militares e todo o regime golpista na luta de classes, sem nenhum apoio à chapa de conciliação Lula-Alckmin. Isso está com a perspectiva de influir no processo de reagrupamento da vanguarda para levantar um projeto político socialista e revolucionário que supere o PT pela esquerda. Esse é o conteúdo das candidaturas do MRT pelo Polo Socialista e Revolucionário estão colocando todas as suas forças para isso, assim como o Esquerda Diario. Para isso também lançamos o Esquerda em Debate, programa de entrevista e debate com importantes dirigentes da esquerda, ativistas e intelectuais sobre os rumos da esquerda no país, com mais de 20 episódios. Também parte desse esforço teórico-político é o Suplemento teórico do Ideias de Esquerda e os livros que estamos publicando pelas Edições ISKRA.


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André Barbieri

São Paulo | @AcierAndy
Cientista político, doutorando pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é editor do Esquerda Diário e do Ideias de Esquerda, autor de estudos sobre China e política internacional.
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