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Opinião | Chile: como passamos da rebelião popular de 2019 ao triunfo da Rejeição?

Muitos dos que votaram na Rejeição hoje mobilizaram e apoiaram a rebelião popular de 2019. Nenhuma análise séria dos resultados pode evitar a questão de como passamos de uma rebelião popular a um triunfo avassalador da rejeição. Qual é a explicação para esse deslocamento à direita?

quarta-feira 7 de setembro de 2022 | Edição do dia

Esta semana o Chile será marcado pelas análises e balanços de um resultado eleitoral inesperado. A Rejeição foi imposta em todas as regiões do país e ficou com 62% dos votos. Foi um verdadeiro terremoto eleitoral. Houve um salto na participação: 85,6% dos eleitores inscritos (comparável apenas aos 86,8% do plebiscito de 1988), ou seja, mais de 13 milhões de pessoas. Nunca tantas pessoas votaram na história do Chile. A polarização eleitoral, o voto compulsório e as modificações que permitiram pela primeira vez que as pessoas pudessem ir a pé aos locais de votação [antes eram longe de suas casas], empurraram esses números recordes.

A votação pelo Aprovo superou a votação do segundo turno de Boric, quando ele se tornou presidente em 2021, mas a maioria dos milhões de novos eleitores preferiu o Rejeito. Teria vencido em todas as faixas etárias, embora, como previam as pesquisas, a distância fosse menor naqueles com menos de 34 anos, segundo um estudo realizado pela Unholster.

Apenas em 8 distritos do país obteve-se a Aprovação, entre eles devemos destacar Pedro Aguirre Cerda, San Joaquín, Puente Alto e Maipú. O Aprovo perdeu em todos os distritos eleitorais, embora nos distritos 12 e 13 (Santiago Sur) a diferença tenha sido de alguns milhares de votos.

Foi nas regiões sul e norte que o triunfo da Rejeição foi mais pronunciado. Na Região Metropolitana, a rejeição chegou a 56% contra 44% dos votos.

A direita comemora e o Governo dá a outra face

A direita e os grandes empresários comemoram a vitória. As comemorações foram sentidas nas comunas mais ricas do país. Os capitalistas comemoraram na bolsa de valores, que atingiu recordes históricos.

A condenação dos extremos, do maximalismo e do "outubrismo" [a rebelião de 2019] foi o tom dos grandes empresários. Por sua vez, foi a pauta obrigatória para todos os partidos, começando com Gabriel Boric em seu discurso na noite de domingo. De fato, segundo o presidente do Partido Comunista, Guillermo Teillier, agora seu partido não teria problemas em sentar-se para negociar com o Partido Republicano de extrema-direita de José Antonio Kast [que enfrentou Boric no segundo turno eleitoral no ano passado].

"Você vê um espírito de união, diálogo e acordos", assegurou Richard Von Appen, da federação de empresas industriais SOFOFA. Por sua vez, Juan Sutil, presidente da Confederação Empresarial da Produção e Comércio (CPC), afirmou que "há uma mudança no eixo político" e que é hora de "tirar os extremos e a barulheira".

Consultados, os grandes empresários garantem que o triunfo da Rejeição mitigará as incertezas para os capitalistas, mas não completamente. A derrota da Aprovação é apenas o primeiro passo. Todos concordam que um novo processo constitucional mais controlado e antidemocrático deve ser negociado para cumprir a promessa de uma nova Constituição. Agora deve ser elaborada inteiramente por seus partidos.

As demandas abundam. “Consideramos muito importante que futuros acordos fortaleçam a democracia e suas instituições, garantindo governabilidade, estado de direito e segurança jurídica”, foi o pedido da Câmara de Comércio Chileno-Americana. Sem se falar na plurinacionalidade, direitos aos povos indígenas, desprivatização da água, fim do Senado, entre outros temas.

Mas eles não se acomodam. Eles querem mais: devemos limitar ainda mais as reformas do governo. "A discussão das reformas que pretende realizar deve incorporar esses elementos de forma realista, afastando-se de qualquer maximalismo", foi a linha que o diário direitista El Mercurio esboçou em seu editorial de segunda-feira. Por sua vez, o Governo já anunciou uma mudança de gabinete para acompanhar os novos ventos.

Muitas questões permanecem em aberto e não há dúvida de que o resultado do plebiscito implicará uma reconfiguração do mapa político, com o governo e seus partidos como os grandes perdedores, e a direita e a Concertación da Rejeição [alguns dirigentes da antiga Concertación, uma coalizão de centro-esquerda que governou o Chile por vários períodos desde o fim da ditadura, e que agora pedia um voto de Rejeição] como os grandes vencedores. Mas o que fica muito claro é que Gabriel Boric e sua coalizão de governo, Frente Ampla e Partido Comunista, assumiram o mesmo balanço da direita (a Convenção Constituinte era maximalista, "não estava em sintonia com os cidadãos", etc), e agem de acordo.

Ficaram sem iniciativa política e, um a um, cumpriram as demandas e o plano de ação traçado pelos dirigentes da Rejeição.

Por que o discurso da direita teve entrada?

Há muitas arestas políticas que podem ser abordadas para testar uma explicação. A Rejeição representou para amplos setores um voto contra a situação econômica e social. Como o Governo não tomou medidas sérias para enfrentar os efeitos da crise econômica e da inflação; como tem governado zelosamente respeitando o ajuste fiscal; como deu um miserável IFE (assistência social) e enterrou definitivamente os saques dos fundos de pensão; Por tudo isso e muito mais, não é de surpreender que Gabriel Boric tenha se tornado o símbolo da deterioração econômica que começou durante a pandemia, mas aumentou durante este ano. E isso foi transferido para a Aprovação, que muitos eleitores identificaram com o Governo. A isso, devemos acrescentar que a própria Convenção Constitucional permaneceu totalmente afastada das urgências populares.

A direita aproveitou esse cenário para promover uma campanha demagógica e odiosa. Basta conversar com colegas e companheiros de trabalho ou vizinhos para perceber que a campanha da direita infelizmente teve um amplo impacto. Os argumentos em defesa da casa própria, contra os privilégios dos imigrantes e mapuches não eram apenas vindos de bots. Mas a questão é por que esses argumentos surgiram, algo que era impensável há dois anos.

Foi o Governo de Gabriel Boric, juntamente com o Apruebo Dignidad, Socialismo Democrático, quem liderou a campanha de aprovação (a que devemos acrescentar os Movimentos Sociais Constituintes que fizeram campanha sem qualquer delimitação com o Governo. Além disso, nas últimas semanas fizeram campanha juntos). O compromisso da Aprovação em sua campanha foi muito claro: ceder os principais argumentos à direita e apostar no centro. Disseram que era para ampliar o arco de apoio para que ganhasse a aprovação, mas aconteceu exatamente o contrário. Ajudou o eixo discursivo da direita a ter mais legitimidade.

O governo acabou validando a campanha de direita anti-mapuche mantendo a política de militarização e mão pesada em Wallmapu [região reivindicada como terra ancestral pela comunidade mapuche]. Da mesma forma, enquanto a direita dizia que a Convenção era maximalista e pouco séria, o governo validou esse discurso assinando um acordo pelas costas do povo para reformar a nova constituição, pedindo um novo pacto de unidade nacional com a direita para que não não haveria “vencedores”, nem derrotados” e convocar uma comissão de especialistas para corrigir eventuais erros que possam estar no texto. Enquanto a direita instalava a ordem e a agenda de segurança, o governo manteve Ricardo Yáñez, um general dos Carabineros acusado de violações de direitos humanos, em seu posto. A lista continua e continua.

No entanto, todos esses argumentos são parciais e não explicam a vitória esmagadora da Rejeição. O destino da Aprovação foi traçado antes mesmo de a Convenção terminar suas sessões. A utopia de acabar com o Chile da transição de forma pacífica e feliz que muitos abraçaram, bateu contra a parede.

Não foi um problema de comunicação, é a luta de classes

Pablo Iglesias, líder do Podemos do Estado espanhol, sustentou que a chave para a derrota da aprovação foi a falta de poder midiático por parte do progressismo. No entanto, o plebiscito foi um marco fundamental em uma grande operação burguesa para canalizar a rebelião popular e buscar a restauração da governabilidade perdida diante da crise orgânica do regime de transição. Encruzilhadas fundamentais como essa não são resolvidas com uma disputa midiática sobre a história, mas apelando para as forças materiais da classe.

Como explicar que dias antes do plebiscito houve um grande ato de massa em favor da aprovação, enquanto a rejeição não conseguiu cumprir seus próprios atos ou mobilizar representantes? Isso reflete que houve um enorme divórcio entre a base social da aprovação, dirigida e hegemonizada pelas camadas médias com um programa de direitos sociais (mas sujeito à restauração progressiva do Estado capitalista), e os amplos setores das massas que votaram na rejeição.

Esse divórcio começou com o Acordo de Paz e a Nova Constituição assinados em meio à rebelião popular de 2019.

Um dos objetivos declarados deste Acordo assinado em 15 de novembro de 2019 foi dividir a aliança de classe “de fato” (nas ruas) que se forjou durante a rebelião - entre setores precários, trabalhadores e trabalhadoras que atuaram de forma diluída nos protestos, e as camadas médias. A greve nacional de 12 de novembro de 2019, a mais importante desde a ditadura, foi o momento em que se mostrou o potencial dessa aliança e a possibilidade de a classe trabalhadora entrar em cena. Este foi o “ponto de virada”, como disse o ex-presidente Sebastián Piñera. Apenas alguns dias depois foi assinado o Acordo de Paz para dar início ao processo constituinte.

O foco era envolver plenamente os setores médios no itinerário constitucional com a ilusão de uma mudança pacífica do regime herdado da ditadura. E com essa história, dirigiram um amplo setor das massas que se manifestaram no plebiscito de entrada em 2020.

Esse esforço, orquestrado por todos os partidos (aos quais o Partido Comunista aderiu) e apoiado pelas potências econômicas, foi bem-sucedido. A classe trabalhadora, não intervindo como sujeito próprio na revolta e não tendo instâncias de auto-organização no auge que pudessem se opor ao desvio, não tinha um programa alternativo ou força material para impô-lo. Nesse quadro, a juventude combativa foi isolada e a linha de “revolta permanente” só poderia aumentar o desgaste e o isolamento da maioria da população.

A pandemia e a crise econômica aumentaram esse divórcio e a indiferença de amplos setores ao que estava em jogo no processo constituinte. Com uma Convenção subordinada aos poderes constituídos, falando a linguagem de uma "refundação progressiva" do Estado longe das urgências populares, com gestos de "Outubrismo" totalmente vazios, com negociações de corredor entre bancadas para chegar a dois terços [o número acordado para aprovar artigos na Convenção]; milhões viram a Convenção como mais uma instituição dentro de um regime contestado. E nisso tinham razão, a Convenção Constitucional, longe de ser um triunfo da mobilização popular e uma expressão genuína do povo mobilizado, foi uma instituição fundamental para desviar a luta de classes e recompor a governabilidade do regime.

As principais lideranças sindicais e dos movimentos sociais, sem exceção, entraram nesse jogo parlamentar ao invés de se mobilizar por demandas urgentes e vinculá-las a um programa conjunto para extirpar todo o legado da ditadura. O resultado? Longe de dar sustentação social ao processo, a separação entre a classe trabalhadora e os setores populares aumentou com a própria Convenção.

A conclusão de organizações como o MIT (PSTU no Chile) de María Rivera é que, agora, "devemos voltar às bases". Ainda hoje, após a esmagadora derrota da Aprovação, continuam a sustentar que o processo constituinte foi uma vitória da rebelião. O problema seria que a maior parte da Convenção foi defendida pelo reformismo. Seu balanço, então, é que deveríamos ter conquistado a maioria da Convenção? Um balanço totalmente parlamentar e alheio à luta de classes.

O que o fracasso da Convenção Constitucional e o progressismo pequeno-burguês demonstram é que uma rebelião e um processo constituinte no quadro do regime não são suficientes para resolver as questões profundas que estão por trás da luta para acabar com todo o legado da ditadura. Não será com lápis e papel que conseguiremos derrotar a resistência dos capitalistas que se agarram com unhas e dentes aos pilares do Chile neoliberal herdado da ditadura. Contra todo pensamento fácil, a conclusão estratégica destes três anos é que é necessário passar da revolta à revolução, para o que é necessário levantar um programa socialista e revolucionário e uma estratégia baseada na auto-organização da classe trabalhadora que consiga conduzir os setores populares e oprimidos, ganhando as camadas médias para a luta por um governo das e dos trabalhadores.

Há muitos exemplos assim na história e, se queremos vencer, devemos aprender com eles. Por exemplo, Trotsky frente aos primeiros movimentos revolucionários na Espanha em 1931, argumentou que o desenvolvimento semi-espontâneo das lutas muitas vezes constituiu um momento necessário no despertar das massas. Mas que nada substitui os fatores subjetivos: partido revolucionário, programa, organizações de massa: “o que no estágio atual constitui a força do movimento – seu caráter espontâneo – pode se tornar sua fraqueza amanhã. Admitir que o movimento está doravante entregue a si mesmo, sem um programa claro, sem uma direção própria, significaria admitir uma perspectiva sem esperança. Não se pode esquecer que não se trata de nada menos que a conquista do poder. Mesmo as greves mais turbulentas e esporádicas não podem resolver esse problema. Se, no curso da luta, o proletariado não tiver a sensação, nos próximos meses, da clareza dos objetivos e dos métodos, de que suas fileiras estejam coesas e fortalecidas, começaria inevitavelmente a desmoralização. Os setores amplos, impulsionados pela primeira vez pelo movimento atual, cairiam na passividade. Na vanguarda, à medida que se sentisse o chão sob os pés vacilar, as tendências de ação de grupos e o aventureirismo em geral começariam a reviver. Nesse caso, nem os camponeses nem os elementos pobres das cidades encontrariam um endereço de prestígio. As esperanças levantadas rapidamente se transformariam em decepção e exasperação”.

No nosso caso, a fragilidade desses fatores subjetivos foi fundamental para impor o desvio institucional orquestrado pela classe dominante e a passivização da luta de classes, o que permitiu à direita retomar a iniciativa em um momento em que estava no chão.

Se reagrupar contra um novo processo constituinte fraudulento de maneira independente do Governo

Nós, marxistas revolucionários, devemos nos preparar para esse tipo de tarefa. Uma preparação que, embora hoje estejamos num momento mais adverso e defensivo, deve ser ativa e partir das necessidades do presente.

É muito provável que um novo processo constitucional fraudulento seja aberto no Chile. Hoje a classe dominante está comprometida com uma nova Constituição que reconheça os direitos sociais, mantenha os pilares do regime político e econômico de transição, sem os “excessos” da Convenção Constitucional. Ricardo Lagos chega a falar impunemente em imitar o Leão de Tarapacá e convocar uma comissão de “notáveis” como fez Arturo Alessandri para redigir a constituição de 1925.

Neste momento, será fundamental lutar contra a ofensiva de direita que buscará enterrar definitivamente todas as reivindicações da rebelião e denunciar fortemente o novo pacto de unidade nacional, promovido pelo governo com todos os partidos oficiais e de oposição, e seus novo processo constituinte fraudulento e antidemocrático. É fundamental colocar um programa no centro para que os grandes empresários paguem pela crise e não os trabalhadores.

É preciso pensar com clareza a tarefa de preparar as condições para voltar às ruas e as reivindicações de outubro, lutando para acabar definitivamente com todo o legado da ditadura, na perspectiva de uma greve geral em direção a uma Constituinte Livre e Soberana. Mas para isso é insubstituível promover a luta por um programa emergencial diante da crise econômica e social em um momento em que a inflação devora salários, aluguéis e contas aumentam e as condições de vida se tornam mais precárias. É fundamental reagrupar as diversas organizações sindicais e sociais para esta perspectiva. As lideranças sindicais e sociais chilenas devem pôr fim à trégua com o governo e deixar de esperar que suas demandas sejam atendidas por manobras institucionais, objetivo para o qual devemos lutar pela independência diante do governo e dos empresários.




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