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Golfo Pérsico | Catar: entre o Mundial, o trabalho escravo e a geopolítica

Catar é o emirado mais rico do Golfo Pérsico. Conquistou uma influência política ao extensa, que o levou a ser sede do Mundial 2022. Mas qual é a base de seu poderio? Os trabalhadores imigrantes da construção, que visibilizaram mundialmente as condições de trabalho semi-escravas sobre as quais se apoiam o regime monárquico.

domingo 20 de novembro de 2022 | Edição do dia

Faltam poucos dias para começar o Mundial e a grande mídia bombardeia cada vez mais com diversas notícias (muitas irrelevantes) sobre o evento esportivo. Mas pouco se fala do regime de exploração que rege no Catar, verdadeiro responsável pela notoriedade que alcançou este pais nos últimos anos. Em 5 de agosto de 2019, milhares de trabalhadores da construção fizeram uma greve duríssima, que foi o começo de diversas manifestações que produziram ao longo desses anos nas obras de construção de estádios e infraestrutura para o Mundial.

Na península do Catar os sindicatos e partidos políticos estão proibidos, a liberdade de imprensa está limitada, e claro, a democracia liberal parece um horizonte vermelho. Nesse artigo veremos qual a estrutura sócio política e econômica da península, para entender as greves da construção civil contra as condições semi-escravas de trabalho, atravessada pela geopolítica dos emirados e uma das principais vias para ganhar influência política mundial.

A FIFA como organismo de disputa de influencias, é um dos mais tradicionais. Benito Mussolini havia comprado os votos para o mundial de 1934 para legitimar sua ditadura militar na Itália. Catar, como outros emirados, lhe dá o mesmo significado, sendo destino de investimentos milionários como um braço a mais de sua política internacional. Para os países do golfo, o esporte é um meio para aumentar sua influência política internacional e difundir uma imagem positiva para os investimentos atraindo o foco midiático, organizando grandes eventos. Além disso, compraram prestigiosos clubes e nacionalizaram atletas de elite, alguns desses clubes o Manchester, são também patrocinadores do FC Barcelona e da FIFA. Mas, como é que chegou um país três vezes menor que Porto Rico a conquistar um lugar semelhante no terreno geopolítico?

De produtores de perolas a fabricante de Ferraris

Catar foi uma colônia britânica até 1971, famosa por abrigar as alas mais radicais do Islã, uma pobreza profunda e a produção de pérolas. No entanto, a partir da década de 90 seu crescimento foi meteórico. Para isso foram fundamentais suas relações com os Estados Unidos, que em 1990/1991 levava adiante a Primeira Guerra do Golfo. Catar teve um papel chave no apoio ao imperialismo dando espaço a base das Forças Armadas de Udeid e da Força Aerea de Catar, localizada há 32Km de Doha. Esta base que abrigava cerca de 5.000 soldados, é utilizada desde então para a grande maioria das operações militares norte-americanas no Oriente Médio. Desde a invasão ao Iraque em 2003 até as tensões atuais como o Irã.

Hamad Bin Jalifa Al Thani deu um golpe de Estado em 1995 contra seu pai, ambos, pertencentes da família Al Thani, que manteve o equilíbrio tribal durante séculos na península. A partir desse momento, Jalifa, começa uma série de reformas estruturais internas. Por um lado, econômicas, investir em tecnologia que não estava muito desenvolvida até o momento: o Gás Natural Liquefeito (GNL), que permitiu a península a transportar o gás da maior reserva do mundo para qualquer parte do globo. Uma tecnologia que hoje é fundamental para abastecer a Europa no contexto de guerra com a Ucrânia.

Essa base de acumulação catari que os levou a pensar um plano de diversificação econômica criando grandes fundos de investimentos. Passaram a ser acionistas importantes de grandes multinacionais como Volkswagen, Iberdrola ou Rosneft, entre outras. Chegaram a quarto lugar em investimentos imobiliários nos Estados Unidos e a ser competidor de primeiro nível na cidade de Londres. Este é o plano para o futuro, quando se esgotarem os 160 anos de reservas de gás que possui o país.

Um pouco mais de 20 anos se converteu no país mais rico do mundo, com o PBI per capto mais alto, 137.000 dolares, onde vivem 3 milhoes de pessoas, sendo consideradas apenas 300 mil como cidadãos. Atualmente os catari conformam somente 12,5% da população total do país, superados pelos indianos, nepaleses e parte de outras nacionalidades, como bangladenses, filipinos e egípcios, como parte de uma absorção gigantesca de mao de obra devido a exigência que provocou a extração de gás. Se estima que na região da península arábica há uns 23 milhões de trabalhadores imigrantes.

Catar desenvolveu o sistema politico mais avançado e aberto de todos os emirados instaurando um Conselho Consultivo, parlamento – onde só votam os cidadãos e os partidos estão proibidos – como uma Constituição nacional. Investiram em um sistema educacional de alto perfil, com universidades internacionais. Sua capital Doha é um centro financeiro que compete com os grandes jogadores mundiais; em “ West Bay” se fecham os grandes negócios multimilionários. Além disso, abriram centros religiosos para todas as confissões. Um verdadeiro oásis em meio as “petromonarquias”.

A partir do desenvolvimento diferente da Arábia Saudita por sua abertura comercial e sistema político, avançou em reformas internas chegando a aspirações geopolíticas. Catar, buscou uma política independente afastada dos interesses da Arábia Saudita a partir da guerra do Golfo em 1991, temendo ser ocupada como o Kuwait pelos sauditas. Em 2003 ganhou importância regional, quando Riad expulsou as tropas norte-americanas de seu território por acusar as monarquias de abrigar terroristas. Mas o Catar, apesar de estar na mesmo saco, permitiu aos Estados Unidos que estabelecesse uma base dentro de suas fronteiras.

Um dos pilares de sua influência geopolítica é o canal estatal de notícias Al Jazeera. Foi fundada com o objetivo de ganhar influencia regional, para maximizar aos “amigos” e limitar os “inimigos”. Al Jazeera apoiou abertamente a Primavera Árabe, ganhando um enorme prestigio regional, ainda que sua edição local é muito mais controlada. Esse canal se caracteriza por ter uma linha aberta a todas as correntes políticas e religiosas, como o Hamas, Hezbollah, os Talibãs e funcionários do Estado de Israel. Além de ser crítico com o resto das monarquias do Golfo.

No plano interno, Al Thani, renovou os conselheiros, chamou eleições municipais livres onde o voto feminino estaria permitido e criou a figura de Primeira Dama do país. No entanto, a personalidade de poder central seguiria sendo o Emir, a liberdade de impressa, os partidos políticos e os sindicatos seguiram proibidos.

Essa abertura política autônoma chegou a ter laços com a Irmandade Mulçumana brindando um apoio fundamental durante a Primavera Árabe; com Irã e Turquia sendo ambos países chaves para sair do bloqueio econômico imposto em 2017 pela Arábia Saudita e o resto das monarquias árabes pertencentes ao Conselho de Cooperação do Golfo (CCG, aliança econômica e militar criada para conter a influência iraniana a partir de 1979). A posição conquistada pelo Catar o converteu em um ator regional de peso decisivo nos conflitos geopolíticos regionais abertos com o Irã.

Um mundial de escravos

Apenas são comprados os votos na FIFA para ser sede do Mundial em 2022, Catar começa as incontáveis obras dos estádios, hotéis e infraestrutura correspondente para ser anfitrião. Uma tarefa gigantesca. Quem são os que se animam em balançar nas pontas desses arranha-céus característicos desse pequeno país? Os 2 milhões de imigrantes vindos do sul da Asia e Africa. Sobre as costas desses repousam o destino desse Mundial.

As sucessivas greves que levaram adiante os trabalhadores nepaleses, indianos e bengalês estão rompendo a imagem de Catar na arena mundial. Visibilizaram uma situação escandalosa no país mais rico do mundo, mostrando qual é a verdadeira base de acumulação do modelo econômico catari: a “Kafala” é o que podemos traduzir como trabalho semi-escravo. O maltrato e a falta de direitos trabalhistas são a base da Kafala, que consiste nas patronais cataris poderem reter os passaportes dos imigrantes para extorqui-los quando quiserem. Os trabalhadores têm que pedir permissão se quiserem sair do país ou mudar de trabalho, fazem horas extras chegando a trabalhar 16 ou 18 horas diárias por um salário de 200 reais mensais, uma vida de superlotação no país dos arranha-céus.

Mas não é o pior das condições de trabalho. O trabalho na construção é na intempérie como em qualquer outro lugar do mundo. No Catar isso significa trabalhar sob temperaturas que chegam aos 50 graus. O número de mortes alcançado até o momento pelas altas temperaturas e maus condições de trabalho na construção de estádios foram de 6.500 trabalhadores. Se no Mundial de 2022 quiseram fazer um minuto de silencio por cada trabalhador morto, teriam que fazer 1 hora de silêncio por cada partida, segundo a Conferencia Internacional Sindical.

As empresas tentaram, sob ameaça de deportação, mudar os contratos de trabalho para abaixar os salários. Pressionaram os trabalhadores atrasando salários. Apesar das proibições, isso explodiu em uma onda de greves que mostraram as condições subumanas em que trabalham no Catar. Realizaram um piquete na autopista de Durkham, onde participaram centenas de trabalhadores do sul da Asia. Os protestos triunfaram conquistando a negociação coletiva, salário mínimo e o pagamento dos salários atrasados. Além da prisão de funcionários das empresas por abusos nas leis internacionais do trabalho. De qualquer modo, o regime catari não aboliu a Kafala como sistema de contrato, a exigência mais importante dos trabalhadores.

O governo catari, que tem laços blindando as empresas construtoras, soltou um comunicado em 22 de agosto de 2019, colocando que estavam em crise financeira para justificar aquela falta de pagamentos. No entanto, se mostraram com uma flexibilidade sem precedentes para solucionar o escândalo apesar de não tolerar nenhum tipo de protesto. Por outro lado, a crise financeira do governo catari tem suas bases nas tensões com a Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e outros membros da CCG, que vinham retirando fundos do sistema financeiro do Catar para gerar uma crise de liquidez ao longo de quase uma década de distanciamento desde as rivalidades iniciadas pelos posicionamentos frente a Primavera Árabe. Isso terminou em 2021, quando as relações começaram a se reconstruírem.

A partir desse conflito geopolítico é provável que Doha esteja cada vez mais longe de garantir direitos trabalhistas mínimos aos trabalhadores e de abolir a Kafala, necessitando cada vez mais do trabalho escravo para sustentar seu império financeiro e gasifico. Terão que decidir entre enfrentar as monarquias do golfo ou ir contra um movimento de trabalhadores, de maioria imigrantes, que está se rebelando contra uma petromonarquia.




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