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Bolchevismo e atividade criadora das massas trabalhadoras

André Barbieri

Bolchevismo e atividade criadora das massas trabalhadoras

André Barbieri

Uma reflexão sobre o resgate da experiência partidária leninista diante da crise da esquerda brasileira, em particular o PSOL; e a desmistificação da ideia, muito difundida pelo liberalismo desde o auge neoliberal apoiado na catástrofe do stalinismo, de que o partido bolchevique teria sido “monolítico e burocratizado” desde o seu início. O conhecimento dessa experiência real nos mostra a verdadeira importância de pensar a experiência bolchevique como alternativa em nossa época, para todos aqueles que querem enfrentar seriamente a extrema direita e superar o PT pela esquerda.

A crise das energias vitais dos organismos partidários, em determinado estágio de sua história, desencadeia percepções que frequentemente se opõem entre si. No Brasil da nefasta extrema direita bolsonarista, o núcleo do pensamento estratégico deve ser como melhor organizar-se para combatê-la, tendo em vista que expressa a moderna podridão da classe dominante nacional, atrasada e dependente do imperialismo. O PT, reabilitado pelo regime herdeiro do golpe institucional para derrotar eleitoralmente a figura de Bolsonaro, teme muito mais o movimento de massas organizado do que a direita dura, com a qual se alia. Não é instrumento para essa perspectiva de um combate sério à extrema direita.

No âmbito da esquerda, a rápida deterioração do PSOL, cujos preceitos programáticos reformistas se desagregam na mesma medida em que vão atingindo sua consequência lógica – concretamente, a diluição organizativa e programática no PT – também revela na prática a durabilidade de certas convicções imunes à realidade. Diante do processo de deterioração do PSOL, que dilui na chapa Lula-Alckmin, surgem algumas dessas percepções conflitantes, carentes ambas de razão: à noção algo simplista sobre a impossibilidade de construir no Brasil partidos realmente de esquerda que tenham como substância um programa revolucionário, compete certa esperança de que o “retorno às origens” de um partido amplo poderia resgatar vitalidade, a fim de oxigenar um outro ensaio.

No instrutivo cenário brasileiro, o “eterno retorno” à concepção de partido amplo que une tendências reformistas e revolucionárias, sem definição estratégica, provou não ter a virtude de resistir às pressões do regime e se ligar organicamente à classe trabalhadora e à luta de classes, e na pior das hipóteses está condenado a levar sempre mais água ao moinho do PT, quando o maior desafio partidário dos socialistas é construir uma forte organização que supere o PT pela esquerda.
Já a percepção de que o esgotamento de um partido como o PSOL – cuja existência já não mais se justificava pela realidade, na medida em que muito se assemelhava em suas características centrais ao PT – seria fruto de um “destino manifesto” que impossibilita a construção de partidos revolucionários, devemos dizer que a história tampouco opera por esses caudais. A recente experiência internacional – que já viu o definhamento de projetos neorreformistas como Syriza, Podemos, de um lado, e de outro a crise dos chamados “partidos amplos” como o Novo Partido Anticapitalista (NPA) francês – é um curioso índice da vitalidade de um projeto muito distinto, o de uma organização leninista de combate no século XXI.

É talvez da tragédia da acomodação partidária aos limites impostos pelo regime capitalista que pode emergir a percepção da necessidade de uma força política que a ela se recuse a se circunscrever, que esteja ligado aos trabalhadores com um programa anticapitalista e socialista. Nosso objetivo é dialogar com a base do PSOL, que está descontente com os resultados desse modelo de partido, e com toda a vanguarda de esquerda que está perplexa diante desse cenário, a fim de contribuir a recolocar em pauta o debate profano: e se voltássemos, finalmente, os olhos ao que o leninismo tem a nos dizer no Brasil?

Algo dessa dialética vemos em Gramsci: para a superação de todo e qualquer tipo de Estado, é necessária a utilização temporária de um Estado de transição que, após a tomada do revolucionária do poder pelos trabalhadores, deveria passar imediatamente a definhar paralelamente ao avanço da economia, da cultura e das instituições da “sociedade civil”, assim como para a supressão de toda espécie de militarismo era necessário servir-se provisoriamente de um exército capaz de sustentar uma força política que acabe com o fundamento de todas guerras (a política imperialista que as movia). E o partido leninista de combate, o bolchevique, partido mais revolucionário da história, para suprimir toda a necessidade de partido, soube ser também o mais democrático, ao desenvolver dialeticamente – em proporções adequadas à modificação da situação, mas sempre em existência combinada – o regime do centralismo democrático em sua vida interna.

Emerge como um estranho paradoxo a muitos segmentos da esquerda latino-americana que o partido responsável pelo impulso da auto-organização soviética nos conselhos (encontrando nessa original criação do proletariado russo o gérmen de um Estado de novo tipo) e pelo triunfo da Revolução de Outubro de 1917 tenha sido o mesmo que desenvolveu em seu seio um regime democrático de livre discussão sobre os principais temas políticos nacionais e internacionais. A tal ponto que Trótski, cuja fusão virtuosa com Lênin em 1917, capaz de reunir o bolchevismo leninista com a teoria da revolução permanente, podia dizer sem qualquer exagero que a história do partido bolchevique foi a história da livre luta de opiniões entre seus grupos e frações internos, em distintos períodos da vida política russa. Isso sem mencionar que, na Revolução de Fevereiro, à ausência da direção bolchevique, os “operários forjados por Lênin” tiveram um papel preponderante na derrubada do tsar Nicolau II.

Opiniões que alcançaram convergências e choques em momentos cálidos da luta de classes, como à época da própria decisão sobre a insurreição de Outubro após a conquista bolchevique da maioria dos soviets de Petrogrado e Moscou. Lênin era favorável à tomada imediata do poder, posição que Trótski compartilhava em termos da firme postura para apoderar-se do poder, embora defendesse que o desenlace da ofensiva estratégica deveria ser disfarçado em defensiva tática, fazendo coincidir a insurreição mesma com o II Congresso dos Soviets; enquanto Zinoviev e Kamenev se opunham a todo custo a qualquer medida que desatasse a insurreição. Todos esses debates foram feitos calorosamente no seio do partido, e de fundamental importância foi a pressão das massas, (à esquerda dos militantes bolcheviques, que por sua vez estavam à esquerda de sua direção) para determinar os rumos da decisão partidária, numa fascinante interação dialética entre classe, partido e direção. A publicidade dos debates bolcheviques chegava, através dos vivos vasos comunicantes dos organismos soviéticos, às massas russas que deveriam colocar, no troar dos acontecimentos revolucionários, o seu peso na balança: Lênin conclamava “os operários e soldados conscientes a se encarregarem do assunto, provocarem o debate e exercerem pressão sobre os meios dirigentes”. A simbiose entre os bolcheviques e a auto-organização soviética (um parlamento revolucionário do proletariado, para a elaboração, decisão e ação) permitiu que na “crise de Outubro” as tendências conservadoras se desagregassem em função da concentração de todas as forças no objetivo da destruição do governo provisório.

O historiador francês Pierre Broué narra ironicamente que a decisão sobre a insurreição se dá de tal modo aos olhos de todos, que foi praticamente a mais democrática maneira de derrubar um governo na história, o que desmente eficazmente a lenda de um partido bolchevique de robôs. Apesar de múltiplos exemplos dessa natureza, o paradoxo que mencionamos subsiste no imaginário. E é explicável pelos efeitos deletérios da degeneração stalinista, que não apenas foi a negação contrarrevolucionária do bolchevismo, mas asfixiou o partido bolchevique até liquidá-lo, construindo sobre ele um aparato burocrático monstruoso, impondo uma ditadura contra os trabalhadores. Embora encabeçasse um Estado operário fundado na propriedade social dos meios de produção (que, fruto da expropriação política do proletariado por uma burocracia nacionalista conservadora, resultaria na restauração do capitalismo na década de 1990), o regime stalinista tinha métodos totalitários de perseguição e extermínio dos opositores que o tornavam “astro gêmeo” do nazismo.

A camarilha de Stálin foi associada pela propaganda imperialista ao bolchevismo, e isso não deixou de ter efeitos sobre o imaginário do século XXI. Mas nossa época tem pouca razão para se fundar nos mitos de uma sociedade envelhecida que tem muito interesse em recobrir os fatos constitutivos do bolchevismo. Mesmo na obra de alguém mais afastado do marxismo como o diplomata britânico Edward Hallett Carr, considerado por Isaac Deutscher o primeiro genuíno historiador do regime soviético, a figura burocrática de Stálin é tratada em toda a sua descontinuidade com Lênin e com o partido leninista. O partido bolchevique teve a má fortuna, compartilhada por todo o movimento operário mundial, de ser eliminado pelo stalinismo antes que as provas fáticas de sua trajetória tivessem estabelecido firmemente sua autoridade no mundo.

E o que poderia ajudar na reconstrução da poderosa virtude do partido bolchevique? Sem intenção de fazer mais do que aludir a alguns exemplos, entre 1917 e 1919, seria possível traçar duas coordenadas. O bolchevismo como função articuladora entre partido e auto-organização (de tipo soviético), base para a máxima democracia na discussão e a compacta unidade de ação (centralismo democrático); e como tradição que aposta na atividade criadora das massas, um socialismo por baixo que é a negação revolucionária da tragédia stalinista.

Bolchevismo e a produção criadora dos próprios trabalhadores

Um tipo de partido que saiba articular virtuosamente o programa transicional com centralidade operária, de um lado, e o impulso das instâncias de auto-determinação de massas, de outro, não recebeu ainda a atenção que merece. A esquerda brasileira, em particular, afasta-se como da peste de aprender com essa experiência, e não por desconhecimento, mas por não compartilhar dos mesmos objetivos, encarando de maneira mecânica o exemplo e reduzindo a discussão, de maneira caricata, ao “modelo russo”.

Um primeiro aspecto dessa experiência que passou no teste do século é a democracia operária interna (o regime do centralismo democrático), veículo da articulação entre as instâncias partidárias e a auto-organização dos trabalhadores urbanos e rurais extra-partido. Na vida interna do bolchevismo, os trabalhadores não organizados partidariamente tinham um papel fundamental, inclusive nos momentos centrais da luta política. Desde 1905, observando a iniciativa dos conselhos operários surgida no seio dos próprios trabalhadores em distintas cidades, como Ivanovo-Voznesensk, Nizhni Novgorod e depois Petrogrado, Lênin passa a defender resolutamente a combinação de partido e soviets. Posteriormente à primeira revolução na Rússia, Lênin faz ajustes na sua concepção da relação entre espontaneidade e consciência, contida no seu trabalho clássico Que Fazer? (1902), enfatizando que a experiência soviética de 1905 provou que a espontaneidade das massas não se limitava sempre a sindicalismo, dava muito mais que isso (a atividade criadora soviética) e se tornava fundamental integrar essa função de criação política à sua teoria de partido. Partido que para o próximo ascenso se preparava teoricamente também, após a derrota de 1905 e a reação do regime de Stolypin, com as discussões de filosofia que passaram a atravessar o partido contra os humores (e a orientação) liquidacionista dos mencheviques, dentro de cujo espectro a obra de 1909, Materialismo e Empiriocriticismo, de Lênin, foi um instrumento teórico notável para remarcar a educação do materialismo histórico no pensamento bolchevique contra o idealismo subjetivo de Ernst Mach e Richard Avenarius durante uma situação reacionária.

No âmbito da auto-organização e sua confluência com o partido bolchevique, após a insurreição de Outubro muitos problemas ainda ficam sem solução, o principal deles sendo, apesar da ratificação no Congresso dos Soviets, a chancela ou não da própria insurreição. Mais uma vez, as massas de operários, camponeses e soldados estavam encarregados de limar as divergências. O jornalista estadunidense John Reed relata um desses debates, no regimento de metralhadores, em que o bolchevique Kirilenko disputa com detratores mencheviques e socialistas revolucionários, oponentes da insurreição. Os soldados discutem calorosamente e definem os lados da contenda: cinquenta deles se situam à direita (junto aos oponentes da tomada do poder), e várias centenas junto a Kirilenko. Reed escreve: “Imaginemos esta luta repetida em cada um dos quartéis da cidade, de toda a região, de todo o front, de toda a Rússia. Imaginemos esta mesma cena repetida em todas as sedes sindicais, nas fábricas, nas aldeias, a bordo dos navios; pensemos nas centenas de milhares de russos, operários, camponeses, soldados e marinheiros que contemplam os oradores, esforçando-se intensamente por compreender e tomar uma decisão refletindo com agudeza. Assim era a Revolução Russa”. A simbiose entre a tensão decisiva em agir e a tempestuosa discussão democrática sobre o porvir – própria de toda revolução – conviviam dentro e fora do partido bolchevique. O partido bolchevique, que reuniu os setores mais perspicazes e determinados da classe trabalhadora, liderou com sucesso a tomada do poder, e esses soviets se tornaram o pilar de um tipo diferente de democracia, um poder “do mesmo tipo da Comuna de Paris”, em que os mais oprimidos eram agora chamados a definir não apenas a direção política da sociedade, mas também o planejamento da economia com base na propriedade estatal dos meios de produção. Os bolcheviques animavam a discussão democrática nos soviets, e eram por eles animados.

Em outras palavras, podemos dizer que a vocação soviética do partido bolchevique, organizando e aprofundando o impulso original das massas russas contra as direções conciliadoras antisovietistas, tinha como correlato simultâneo a virtude da auto-organização como um instrumento eficaz para envolver, com um programa revolucionário, trabalhadores e camponeses rumo à tomada do poder. Auto-organização e partido são características indissociáveis no bolchevismo: o partido em função do desenvolvimento da auto-organização, e auto-organização como arena do mais pleno florescimento do partido. É nessa dimensão que devemos entender as características especiais que possuía a democracia operária para o bolchevismo, que buscava dar supremacia à atividade criadora das massas. A declaração do comitê executivo dos soviets, redigida por Lênin a 17 de novembro de 1917, dá uma mostra dessa ambição de abrir caminho à classe trabalhadora como produtora da política: “Os soviets locais podem, de acordo com as condições de tempo e lugar, modificar, ampliar e completar os princípios básicos estabelecidos pelo governo. A iniciativa criadora das massas: este é o fator fundamental da nova sociedade […] O socialismo não é o resultado dos decretos vindos pelo alto. O automatismo administrativo e burocrático é estranho ao seu espírito. O socialismo vivo, criador, é a obra das próprias massas populares”. Nesse espírito é que Trótski propõe a nacionalização da imprensa e das fábricas de papel, atribuindo facilidades de impressão a partidos e grupos operários de acordo como sua influência, o que Lênin transforma em edito, segundo o qual toda agrupação que representasse pelo menos dez mil operários tinha o direito de editar seu próprio periódico, inclusive com financiamento estatal. Trabalhando a ambição de que a comunhão de trabalhadores, camponeses e soldados fosse a usina de criação da política socialista, a circular de 5 de janeiro de 1918 do Conselho de Comissários do Povo chama a que todo o território russo seja coberto por uma rede de soviets estreitamente conectados uns aos outros, que são, em toda parte, “os órgãos da administração que devem exercer o seu controle sobre todas as instituições de caráter administrativo, econômico, financeiro e cultural”.

Os poucos trabalhos em que se registrou a dinâmica vibrante da vida soviética, como o do alemão Oskar Anweiler, mostram fatos em larga medida desconhecidos sobre o alcance da atividade desses organismos, que foram substituindo, entre novembro de 1917 e fevereiro de 1918, praticamente todas as administrações municipais ou comarcais anteriores. Broué menciona que numerosos soviets locais se comportaram como genuínos governos independentes dentro da URSS, proclamando minúsculas repúblicas soviéticas com seu próprio conselho de comissários do povo. Podemos ver nas entrelinhas da história uma fabulosa estrutura de pensamento de massas para forjar os seus próprios futuros, depois de séculos de servidão e obscurantismo. Todas as contradições da realidade atuavam de maneira poderosa, e nesse trabalho da criação, Lênin enxergava o porvir: “Nesta aspiração ao separatismo, existe algo sadio e proveitoso, na medida em que se tratava de uma aspiração criadora”. É parte da concepção mais geral sobre o Estado de transição, enraizado no partido bolchevique em seus anos revolucionários. Como diz o mesmo Lênin, “A burguesia só reconhece que um Estado é forte quando, fazendo uso de todo o poder do aparato governamental, consegue mobilizar as massas no sentido desejado pelos burgueses. Nossa concepção da força é diferente. Para nós, o que dá força a um Estado é a consciência das massas. O Estado é forte quando as massas sabem de tudo, podem julgar sobre qualquer coisa e atuam sempre com perfeita consciência”.
Gramsci tomou nota da experiência russa para alentar o avanço do movimento operário italiano. Com mais ênfase a partir de 1919, passa a escrever inúmeros artigos no periódico L’Ordine Nuovo sobre a necessidade de expandir a experiência dos conselhos de fábrica no Norte da Itália nos moldes do que os bolcheviques concebiam: organismos de auto-educação dos trabalhadores para o comando do Estado de transição. Combatendo já a letargia do Partido Socialista Italiano (PSI) diante dos conselhos de fábrica de Turim e dos comitês de bairro, que deveriam ser “a emanação de toda a classe trabalhadora que habita o bairro”, Gramsci escreve em junho de 1919: “A fórmula ‘ditadura do proletariado’ deve deixar de ser apenas uma fórmula, uma ocasião para dar vazão à fraseologia revolucionária. Quem quer o fim também deve querer os meios. A ditadura do proletariado é a instauração de um novo Estado, tipicamente proletário, no qual confluem as experiências institucionais da classe oprimida, no qual a vida social da classe operária e camponesa se torna sistema difundido e fortemente organizado. Este Estado não se improvisa: os comunistas bolcheviques russos trabalharam durante oito meses para divulgar e tornar concreta a palavra de ordem ‘todo o poder aos soviets’; e os operários russos conheciam os soviets desde 1905. Os comunistas italianos devem assimilar a experiência russa e economizar tempo e trabalho”. Trata-se de uma crítica ácida a Filippo Turati, dirigente da ala direita do PSI, reformista que associava a conquista do Estado a uma maioria parlamentar, segundo o qual “o parlamento está para o soviet tal como a cidade está para a horda bárbara”. Tal como Lênin, Gramsci entrevia no Ocidente o exercício da auto-organização como a criação política dos trabalhadores e de seus aliados para a construção de uma sociedade socialista superior.

Tomando essa experiência, Emilio Albamonte e Matías Maiello explicam a noção do trabalhador como produtor político e social, presente em Lênin e Trótski, e nas reflexões de Gramsci inspirado nos conselhos de fábrica de Turim. Esse “trabalhador como produtor de uma nova sociedade” já tinha irrompido com toda sua magnitude com estes mesmos soviets que para Lênin e os bolcheviques “criam com perfeita consciência” em seu Estado transicional (que existe para a abolição de todo tipo de Estado). “Esta visão do trabalhador, não como mero assalariado, mas como produtor, é o que nos permite discutir por que pode surgir um socialismo a partir de baixo, desde as próprias unidades produtivas. […] De fundo está a perspectiva que nós socialistas apontamos, de colocar os avanços da ciência, da técnica e a cooperação do trabalho não a serviço do lucro capitalista, mas da redução de tempo de trabalho como imposição a um mínimo para que o trabalhador, enquanto produtor, possa desenvolver verdadeiramente sua criatividade e todas suas capacidades humanas”.

Essa combinação virtuosa entre partido leninista (bolchevismo) e democracia das bases, verdadeira unidade dialética entre termos que revigoram, foi desenvolvida por inúmeros intelectuais que se opunham ao marxismo, como Hannah Arendt (como separação entre soviet e partido); no próprio seio do marxismo, à sua maneira, foi-se deixando atrofiar com a evolução centrista do movimento trotskista no pós-Segunda Guerra. O morenismo, corrente advinda de Nahuel Moreno, exacerbou os traços “aparatistas burocráticos” do partido, negando essa combinação, o que levou à dissipação da importância da batalha pela auto-organização em sua teoria de partido, o que implica combater seriamente as burocracias sindicais. Curiosamente, nem mesmo a necessidade de partido revolucionário permaneceu intacto na teoria morenista: segundo Moreno, como toda revolução em nossa época seria em si mesma “inconscientemente socialista” – base de apoio da teoria da revolução democrática – não seria “obrigatório que fosse a classe trabalhadora e um partido marxista revolucionário os que dirijam o processo da revolução democrática rumo à revolução socialista”. A adaptação aos processos tais quais se dão, sob direções quaisquer e programas quaisquer, suplanta a dialética partido-soviets. É o que vemos, por exemplo, por parte do PSTU, que sucumbiu diante das “oposições burguesas” aos regimes ditatoriais durante a Primavera Árabe, que não apenas ajudaram a liquidar os processos de maneira contrarrevolucionária (Egito, Líbia, Síria), como impediram qualquer gérmen de auto-organização de massas, arena para o desenvolvimento da independência de classes (sua capitulação no campismo pró-OTAN, em meio à reacionária invasão russa na Ucrânia, é de semelhante cepa). De outro lado, a corrente oriunda da tradição de Ernest Mandel diluiu a própria importância do partido revolucionário em si, guardando sua concepção num invólucro democratizante que terminou por registrar que o fim da era da Revolução Russa implicava o fim da era do bolchevismo como conceito de partido. Um dos intelectuais adeptos do mandelismo, Michael Löwy, que escreve interessante livro sobre a teoria da revolução no jovem Marx – acentuando os traços da auto-organização e da emancipação dos trabalhadores por suas próprias mãos – diz, entretanto, que o problema dos bolcheviques é que “se afastaram do programa democrático e libertário do comunismo de Marx”, atribuindo a Lênin e Trótski uma “visão pouco democrática do poder”. Os fatos reais da Revolução Russa tornam tais afirmações muito mais que questionáveis. A degeneração burocrática stalinista responde à negação da visão comunista de Lênin e Trótski, integradas com a concepção de uma sociedade de produtores livremente associados de Marx. Pelo contrário, as organizações que derivaram do mandelismo, como o NPA na França, demonstraram-se incapazes de impulsionar as instâncias de auto-organização dos trabalhadores que emergiram no último ciclo de luta de classes, e aprofundam sua proximidade com o programa reformista, já deveras institucionalizada, de Jean-Luc Mélenchon.

Assim, em termos distintos, tanto o morenismo quanto o mandelismo se adequam à separação entre partido leninista e auto-organização soviética, o que é um componente auxiliar para o obscurecimento dos atributos da democracia operária bolchevique (também quanto a seu regime interno). Já a tentativa de reabilitação do stalinismo no Brasil - realmente vergonhosa - parte de um pressuposto totalmente avesso ao marxismo: a teoria “estatista” acima de tudo, segundo a qual o “Estado forte” é o objetivo último do socialismo (“quanto mais Estado, melhor”), o que se baseia na defesa de todos os regimes bonapartistas ou ditatoriais que discursam em oposição ao imperialismo para sustentar a margem de atuação de sua própria burguesia (a defesa da ditadura capitalista na China é uma das pérolas, de Jones Manoel a Elias Jabbour…).

O regime interno bolchevique

Assim como o aspecto externo da democracia operária impulsionada pelo leninismo, outro âmbito ainda enterrado sob os escombros e detritos do stalinismo diz respeito à vitalidade interna na vida espiritual bolchevique. Isso está resumido na mesma configuração do partido, produto da fusão de distintas correntes à tradição leninista. Segundo Broué, o partido bolchevique de 1917 nasceu da confluência, no seio da corrente bolchevique, das pequenas correntes revolucionárias independentes que integravam a organização “inter-raios” de Petrogrado dirigida por Trótski (que incluía Joffe, Uritski, Pokrovski, Riazánov, Lunacharski, Yureniev e Karakhan) e as numerosas organizações socialdemocratas internacionalistas que até então haviam permanecido à margem. A fração bolchevique havia conseguido hegemonizar as demais organizações revolucionárias com sua concepção de partido, o que permitia Karl Radek recordar que se tratava da fusão do melhor que havia dado o movimento operário russo. A homogeneidade estratégica não resultava em apatia crítica. Dessa confluência de correntes e ramificações da vanguarda, que vinha de distintas tradições e que convergiam em base a lições comuns de estratégia e programa, surge um corpo político cujos quadros e direção são, nas palavras de Robert V. Daniels, “tudo, exceto um grupo de disciplinados idiotas”. Essas palavras fortes, dirigidas ao que veio a ser o aparato stalinista, também lançam luz sobre as inúmeras discussões e disputas de ideias no seio do bolchevismo. Dentro de um marco revolucionário comum, a vida intelectual, ideológica e política do bolchevismo esteve mergulhada, em seus melhores anos, na mais profunda liberdade de pensamento crítico, o que não excluiu os anos mais turbulentos da revolução. Um partido coeso e unificado com múltiplas maneiras de pensar os problemas.

As questões envolvendo a organização do novo poder soviético e a decisão sobre a guerra dão um vislumbre do grau de democracia interna nos debates bolcheviques. O partido bolchevique havia sido o único a defender o poder soviético, enquanto mencheviques e socialistas revolucionários, leais à república burguesa que ajudaram a governar com Kerensky, passaram a adotar a política da contrarrevolução e da guerra civil. Disso resultava a composição exclusivamente bolchevique do Conselho de Comissários do Povo, que, entretanto, fora concebido como uma arquitetura provisória, que deixaria lugar ao pluripartidarismo soviético – um governo de coalizão de partidos socialistas que defendessem a república dos soviets – na medida em que as circunstâncias se modificassem. No seio do bolchevismo, distintas opiniões cruzaram lanças abertamente diante da “proposta de negociação” de representantes mencheviques e socialistas revolucionários. Os bolcheviques teriam de aceitar determinadas exigências dos vencidos para obter uma coalizão: o desarmamento dos guardas vermelhos, um governo que excluísse de seus membros Lênin e Trótski, e que deixasse de responder aos soviets. Isso porque Kamenev e Riazanov aceitam os termos dessa discussão, e com Lunacharski declaram estar conformes com a eliminação de Lênin e Trótski do governo (ambos os quais são terminantemente contrários às condições). Broué dá conta das tempestuosas discussões. “Kamenev, que segue presidindo o comitê executivo dos soviets, propõe a renúncia do Conselho de Comissários do Povo exclusivamente bolchevique presidido por Lênin, e a oportuna formação de um governo de coalizão. Volodarski opõe a essa moção aquela contrária que havia sido adotada pelo comitê central bolchevique. Durante a votação, numerosos comissários do povo como Rikov, Noguín, Lunacharski, Miliutin, Teodorovich, assim como responsáveis partidários como Zinoviev, Lozovski e Riazánov votam contra a resolução apresentada por seu próprio partido. No dia seguinte, outro bolchevique, Larin, apresenta ao executivo uma moção acerca da liberdade de imprensa, censurando a repressão governamental contra a imprensa direitista e sua proibição dos periódicos que chamam a insurreição armada contra o governo bolchevique. A moção é rechaçada com uma maioria de apenas dois votos. Lozovski e Riazánov votaram uma vez mais contra o governo”. O centralismo democrático dá mostras de vitalidade mesmo diante da proposta dos conciliadores a que o novo governo se suicidasse. A proposta de Kamenev e da oposição não prospera, sendo condenada nas reuniões de operários e soldados nos soviets que haviam aprovado a insurreição.

Diante da crise de Brest-Litovsky e as negociações para um cessar-fogo com a Alemanha, atritos não menos sérios mostraram a energia dos debates internos. Em primeiro lugar, entre os mesmos Lênin e Trótski surgem divergentes opiniões sobre como responder ao ultimato do general Hoffmann, a 5 de janeiro de 1918, que para uma trégua exige a ocupação da Polônia, da Lituânia, da Letônia e da Bielorrússia pelo exército alemão. Numa situação de destruição e fome, em que a recente república dos soviets sequer contava com um exército para defender-se, Lênin defende a aceitação dos duros termos impostos, a fim de salvaguardar a primeira revolução socialista triunfante das garras do militarismo imperialista, muito mais poderoso, e preparar-se para recuperar proximamente o perdido. Trótski, que consegue vencer nas primeiras decisões da direção bolchevique sobre o tema, defende a tese “nem guerra, nem paz”, segundo a qual a Rússia, ao mesmo tempo em que negava a assinatura de uma paz com anexações, declarava o fim da guerra. Para Trótski, tratava-se de mostrar ao mundo a fraude da calúnia de que os bolcheviques “recebiam ouro do Império alemão”, ao mesmo tempo em que se estendia ao máximo as negociações, usando-as em função da propaganda socialista ao proletariado alemão, para que a revolução na Alemanha fizesse eclodir um novo capítulo da situação mundial. A realidade do avanço alemão – já que os tempos da guerra são muito mais rápidos que os da revolução, que só estouraria na Alemanha em novembro de 1918 – deu razão a Lênin, e mediante exigências muito mais duras (a Rússia seria privada de 27% de sua área cultivável, e de 75% de sua produção de ferro e aço) os bolcheviques votam a aceitação do acordo, dessa vez com apoio de Trótski. Depois de serem obrigados a assinar o acordo que mutilava a Rússia, novas divergências emergem. Bukharin, que era contrário à assinatura do acordo e proponente da “guerra revolucionária” em condições adversas, unifica-se com Bubnov, Rádek, Uritsky, Piatakov e Smirnov – todos membros da direção bolchevique – renunciam de suas funções e cargos no governo e no partido. Chegam a formar um jornal, Kommunist, para dar vazão a suas opiniões. O partido chega à beira da cisão, com a seção regional de Moscou deixando de reconhecer a autoridade do comitê central até que se convocasse um congresso extraordinário. Mesmo em meio a essa crise, ao contrário dos mitos de burocratismo, em base à proposta de Trótski o comitê central vota uma resolução que garante à oposição o direito de expressar-se livremente no seio do partido. Com efeito, um congresso partidário é realizado em março de 1918 para discutir abertamente as distintas posições sobre o acordo de guerra, em que mais uma vez militantes, junto a trabalhadores e camponeses no soviets, definem a corretude da política levada adiante por Lênin e Trótski. Com o início da guerra civil, as discussões em torno de Brest-Litovsky cedem passo à organização dos esforços de resistência. Difícil encontrar razões para um rótulo tão inadequado quanto o suposto antidemocratismo bolchevique…

Uma vez sanada a divergência, um ano mais tarde, a 13 de abril de 1919, Lênin reivindicará a luta de ideias realizada. “A luta que se originou em nosso partido no ano passado foi extraordinariamente fecunda; suscitou inúmeros choques sérios, mas não existe luta que não os tenha”. Esses e outros exemplos de conflitos ideológicos e lutas políticas abundam, e são os argumentos mais eficazes quando a tarefa é dissipar a lenda tenaz de que o modelo de partido dos bolcheviques alentava o monolitismo e a burocratização. Como diz Broué, são as massas revolucionárias que sancionam as decisões, e “a finais de 1917, o partido tolera mais que nunca os desacordos e inclusive a indisciplina, na medida em que a paixão e a tensão das jornadas revolucionárias os justificam e na medida em que, quando o acordo sobre o objetivo da revolução socialista resulta fundamental, aquilo que diga respeito aos meios a empregar não pode resultar senão da discussão e da convicção”. Na melhor tradição do centralismo democrático, a irrupção da vida ideológica e política no partido estava em função da unidade de propósitos na ação, o que permitiu ao bolchevismo combinar, também em seu seio, a democracia operária com a genuína tensão ao objetivo decisivo.

A dramática guerra civil em território russo, que contou com a invasão de 14 potências estrangeiras e exércitos irregulares da burguesia russa, financiados pelo imperialismo, não foi motivo suficiente para impedir a contínua realização dos congressos bolcheviques, assim como os da Internacional Comunista a partir de sua fundação em 1919. Em meio à luta contra os generais tsaristas Krasnov, Yudenich, Denikin, Kolchak, Wrangel, os quatro primeiros Congressos da III Internacional e as discussões de sua “escola superior de estratégia” enriqueceram extraordinariamente o arsenal teórico-estratégico do marxismo. Mesmo no Exército Vermelho os debates e divergências sobre a relação entre teoria e prática militares, a situação da guerra civil e da revolução mundial, e a própria constituição do exército, ocorriam entre soldados e comissários no front. Além de Trótski, fundador do Exército Vermelho, personalidades como Tukhatchevski, Gamarnik, Frunze, Yakir, Voroshilov, entre outros, propunham visões alternativas sobre como encarar a doutrina militar e a combinação entre os elementos de ciência e arte da guerra, assim como o complexo problema da utilização dos especialistas militares do regime anterior, e a divergência sobre a constituição de um estado maior e um exército regular contra o militarismo imperialista. Os soviets locais trabalhavam em comum com as diretrizes do Conselho de Comissários do Povo, a tal ponto que os informes militares se faziam nos próprios Congressos Pan-Russos dos Soviets. O informe de Trótski sobre a situação militar ao V Congresso dos Soviets, em julho de 1918, contou com debates acalorados inclusive diante dos mencheviques Martov e Dan, participantes das reuniões; fruto da acalorada contenda, no VIII Congresso bolchevique, a política militar de Trótski, defendida por Sokolnikov e criticada por Smirnov, é aprovada por 174 votos contra 95, segundo Broué. Em novembro de 1921, quando ainda não se havia terminado a guerra civil, discussões teóricas sobre aspectos distintos da doutrina militar (como o combate de Trótski à abstração de uma doutrina da ofensiva permanente baseada numa espécie de essência de classe do proletariado) e políticas sobre a constituição do Exército (como a que opôs Trótski ao “grupo de Tsaritsin”, inspirado por Stálin, em que o fundador do Exército Vermelho julgou encontrar a primeira manifestação organizada de um grupo burocrático, que se aferrava a seus privilégios sem estar à altura das capacidades exigidas) tinham livre curso no seio do bolchevismo.

As derrotas da revolução internacional, as contradições reais da guerra e da devastação da economia do país, atrasado e sem ter dado tempo suficiente para a aquisição cultural das massas, levaram a decisões que não estavam contidas em qualquer plano fatalista dos bolcheviques, como a ilegalização de outros partidos “socialistas” (que na prática se opunham ao regime soviético e colaboravam com a reação) e o crescente monopólio bolchevique nos soviets em função da oposição de mencheviques e socialistas revolucionários. Como imposições objetivas da realidade, tais desenlaces – fruto das dificuldades concretas da situação, não de normas programáticas pré-definidas para as revoluções – mostram o caráter carnal da defesa das conquistas da revolução, e não uma suposta “visão autoritária” de poder.
Pode-se dizer muitas coisas do regime interno do partido de Lênin e Trótski, mas é tempo de livrar-se dos mitos e recuperar a memória histórica, quando a crise na esquerda brasileira exige pensar que tipo de partido necessitamos.

Marcos para partido no século XXI

Entre os defensores do reformismo, como não poderia deixar de ser, encontram-se aliados da obliteração dessa memória histórica, para que essa tradição siga sendo desconhecida. Nos Estados Unidos, país que viveu o Black Lives Matter e agora um vibrante movimento de sindicalização por parte da juventude trabalhadora em monopólios mundiais como Amazon e Starbucks, Baskhar Sunkara, editor da revista Jacobin e representante ideológico do Democratic Socialists of America (DSA), agrega seu grão à confusão. Segundo Sunkara, ao mesmo tempo em que deveríamos rejeitar a caricatura de Lênin e dos bolcheviques como “demônios dementes” e vê-los como “pessoas bem-intencionadas tentando construir um mundo melhor”, teríamos de procurar “evitar seus erros”, que teriam supostamente conduzido o bolchevismo da revolução ao stalinismo. Sua oferta aos jovens trabalhadores que querem se sindicalizar para arrancar direitos de grandes capitalistas como Jeff Bezos, ou às mulheres que lutam em defesa de seu direito ao aborto contra a Suprema Corte, é uma organização semelhante à velha socialdemocracia alemã, antes de sua traição em 1914.

Cumpre dizer que a promessa mitológica chegou muito menor à vida real: o DSA se subordinou ao Partido Democrata de Joe Biden, o partido imperialista mais poderoso do mundo e que hoje busca conter dentro do controle das suas burocracias, sindical e de mulheres, os movimentos em curso que podem ameaçar a estabilidade do governo. O DSA, ainda que em menor medida e responsabilidade que a burocracia sindical e parlamentar ligada aos Democratas, teve sua contribuição para a manutenção da relação de forças que favorecia as ilusões das massas, e reoxigenar um regime bipartidário em crise. Quanto à ilusão de uma “socialdemocracia alemã pré-1914” representando uma “democracia radical” própria aos nossos tempos, cabe dizer que a traição de 1914 não caiu do céu. Já antes de ter assinado os créditos de guerra do kaiser alemão, o velho Partido Socialdemocrata havia desde muito tempo nutrido em suas entranhas tendências oportunistas de direita – em particular a ala sindical, que atribuía missão civilizatória ao colonialismo europeu – que opinavam que falar em socialismo e revolução colocava em risco seus privilégios obtidos no regime burguês. O projeto neorreformista de repetir a conciliação de classes da velha socialdemocracia já afundou com Syriza, Podemos, e fez o DSA abraçar Biden. Nada a oferecer, senão bloqueios adicionais a uma tradição vigorosa, o bolchevismo, que merece ser conhecida pelas novas gerações em luta no coração do imperialismo global.

Essa é uma tarefa indispensável, em maior medida diante do ressurgimento do interesse político em setores da juventude, como nos Estados Unidos com a onda de sindicalização da geração Union, ou diante do segundo ciclo débil de governos ditos “progressistas” administradores da crise mundial que assola a América Latina.

Não se trata de repetir mecanicamente a experiência bolchevique no século XXI. Nenhum marxista sério se deteria nesse argumento; como diz o próprio Trótski, assimilar a experiência russa não significa copiá-la às cegas, desguarnecendo as diferenças da estrutura social das nações e a posição relativa dos trabalhadores. Entretanto, a falsa antípoda seria negar essa experiência com o argumento de que se trata de um modelo de partido inadequado para a modernidade. É necessário apreender seus fundamentos essenciais, e isso é possível porque tratamos de uma concepção de partido que atende às necessidades de uma determinada época, a do imperialismo em decadência, como volta a ficar claro com a guerra na Ucrânia.

A liberdade de discussão e a franca disposição de empreender um âmbito saudável para a disputa de ideias encontrou um veículo histórico muito útil no leninismo, no partido bolchevique, que por sua tensão ao objetivo colocou essa arena de livre debate a serviço da constituição de forças materiais para a tomada do poder. Abriu caminho, de maneira única, para a capacidade criadora das massas, em primeiro lugar a vanguarda dos trabalhadores, mediante sua educação e auto-educação na concepção de mundo e programa marxistas. Triunfou naquilo que os outros modelos de partido (socialdemocratas, neorreformistas, “amplos”, etc., que sempre estabelecem com a “cidadania em geral” uma relação que as converte em massas amorfas para suas manobras) fracassaram rotundamente: dar vazão à imaginação dos trabalhadores como classe produtora de sociedade, e fazer convergir essa energia vital para uma expansão inédita da auto-organização, sem a qual seria impossível pensar o socialismo que almejamos, via para a sociedade de produtores livremente associados.

O bolsonarismo como corrente política seguirá atuando, e terá força real mesmo que sua figura seja derrotada pelo governo Lula-Alckmin. Combater essa extrema direita, seriamente, também exige o melhor instrumento para isso, que possa articular volumes de força material para enfrentar à altura a reação. O projeto do PT resulta no retorno das condições que nos trouxeram a essa situação dramática.

Diante da crise do PSOL no Brasil, mais que nunca, estamos convocados a resgatar as lições fundamentais da organização leninista, que permanecem universais e resistiram ao teste do último século. Quanto mais complexas se tornam as sociedades “ocidentais” (com suas “estruturas maciças” da sociedade civil, nos dizeres de Gramsci), mais necessário se torna assegurar a forma organizada da atividade criadora das massas trabalhadoras, com organismos de tipo soviético, através dos quais se pode trabalhar a hegemonia política da classe trabalhadora. Da mesma maneira, quanto mais urgente se torna acumular esses volumes de força através da auto-organização, mais atual se torna retomar o exemplo do único partido político na história que provou saber fazê-lo, e com um programa revolucionário: o bolchevique.

Contra o obscurecimento desse legado nos entulhos stalinistas, reformistas e liberais, que comungam para esquecê-lo, vale a pena pensar: quão fascinante é vislumbrar a possibilidade do leninismo vicejar com as características próprias de nossos tempos, aprendendo com o passado?

Notas Bibliográficas:

Robert Vincent Daniels, “The Conscience of the Revolution: Communist Opposition in Soviet Russia”. Literary Licensing, 2011.

Edward Hallett Carr. “The Bolshevik Revolution, 1917-1923”. W. W. Norton & Company, 1985.

Oskar Anweiler. “The Soviets: The Russian Workers, Peasants, and Soldiers Councils, 1905-1921”. Pantheon Books, 1975.

Pierre Broué. “O Partido Bolchevique”. Editora Sundermann, 2014.

Vladimir Lênin. “O que fazer?”. Boitempo editorial, 2020.

Antonio Gramsci. “Escritos Políticos”. Civilização Brasileira, 2007.

Baskhar Sunkara, “Socialism’s Future May Be Its Past”, The New York Times, junho de 2017.


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André Barbieri

São Paulo | @AcierAndy
Cientista político, doutorando pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é editor do Esquerda Diário e do Ideias de Esquerda, autor de estudos sobre China e política internacional.
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