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"Benjamin recoloca a luta de classes também na percepção sobre história", diz Fábio Querido

Vitória Camargo

"Benjamin recoloca a luta de classes também na percepção sobre história", diz Fábio Querido

Vitória Camargo

Fábio Mascaro Querido é professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UNICAMP desde 2017. Nesta entrevista, aborda os 130 anos de Walter Benjamin, suas ideias e atualidade. Esta entrevista foi concedida a Vitória Camargo, mestranda no programa de Sociologia da Unicamp e parte do Ideias de Esquerda.

1- Aos 130 anos de Walter Benjamin, como você avalia a atualidade de seu pensamento?

Benjamin é um intelectual de seu tempo. Toda a sua trajetória intelectual e política está muito marcada pela atmosfera das primeiras décadas do século XX, em especial do entreguerras. No entanto, o pensamento de Benjamin é daqueles que transbordam o seu horizonte original, reverberando questões que somente mais tarde estariam presentes na agenda da esquerda anticapitalista.

Veja-se, por exemplo, o caso da crítica das ideologias do progresso, um dos eixos da reflexão benjaminiana. Desde as décadas de 1970 ou 1980, ela vem se tornando um tópico central no enfrentamento à crise ecológica, vista como desdobramento destrutivo do próprio “progresso” capitalista. Ainda que forçando um pouco a barra, é como se Benjamin tivesse antecipado um elemento central da luta ecossocialista contemporânea.

Algo semelhante pode ser observado na maneira como Benjamin entendia o sujeito revolucionário. Para ele, mais do que o proletariado em sentido estrito, este era composto pelos “oprimidos” do presente, claro, mas também pelos do passado, os “ancestrais escravizados”, como disse nas “teses sobre o conceito de história”, escritas meses antes do seu suicídio na fronteira franco-espanhola, em setembro de 1940.

Ao jogar luz sobre essa “tradição dos oprimidos”, que engloba os vencidos do passado e os trabalhadores do presente, Benjamin tocou em pontos que, mais tarde, se tornariam sensíveis nos debates contemporâneos em torno da articulação - histórica no capitalismo - entre exploração de classe e opressões de raça ou de gênero. Quer seja quando se volta para o passado, ou quando analisa o presente, Benjamin nos estimula – alinhando-se com debates atuais - a um olhar “desde baixo”, ou seja, a partir do ponto de vista daqueles e daquelas que, concretamente, resistiram e resistem à barbárie dos vencedores.

2- Recentemente, você escreveu ao Blog da Boitempo que "Benjamin adentrou nos debates do marxismo implodindo consensos mais ou menos estabelecidos, notadamente aqueles relacionados à concepção marxista da história". Quais consensos você considera que ele implodiu quanto à concepção marxista da história e em que sentido seu pensamento inova?

Quando aderiu ao marxismo, em 1924, Benjamin não abandonou as suas referências anteriores, tais como o romantismo ou o messianismo libertário. O que muda, a partir de então, é o modo como ele vai readequando essas referências à luz de sua interpretação bastante sui generis de Marx e do marxismo. É nesse enquadramento intelectual que podemos dimensionar o alcance da crítica de Benjamin aos socialismos “oficiais” de sua época, em especial a socialdemocracia e, a partir do final da década de 1920, o stalinismo. Para Benjamin, a despeito de suas diferenças, ambas as perspectivas se mantinham apegadas a uma visão “progressista” da história segundo a qual, apesar dos contratempos eventuais, a locomotiva do progresso sempre seguia em marcha.

O primeiro consenso “implodido” por Benjamin, portanto, é aquele edificado em torno do “mito” do progresso, retomado das filosofias iluministas por parte do marxismo. É verdade que não se trata de um consenso total: já em Marx havia uma concepção dialética do progresso, assim como em autores anteriores a Benjamin, como Rosa Luxemburgo (a partir da guerra), Trotsky e mesmo Lênin, ou ainda Lukács. O que Benjamin faz é radicalizar a ruptura do marxismo com qualquer “fetichismo das forças produtivas”, para dizer como Marcuse. Para Benjamin, não somente o “progresso” (ou o desenvolvimento das forças produtivas) pode ser também destrutivo, como a barbárie, longe de significar uma regressão civilizatória, está inscrita como “exceção” quase permanente na própria “norma” capitalista. Que o diga a presença do fascismo ao longo do século XX e, agora, sob novas roupagens, no XXI.

Com este olhar, e aqui um outro “consenso” que ele “implode”, Benjamin desvincula as estratégias políticas da luta anticapitalista de qualquer crença em uma visão “progressista” e, nesse sentido, otimista da história, visão para a qual – tal qual para Plekhanov, célebre menchevique – a vitória do socialismo era tão inevitável como o nascimento do sol amanhã. Não era e não é, infelizmente.

A “inovação” relativa de Benjamin a este respeito reside, assim, na maneira como ele recoloca a luta de classes no centro da análise política, mas também na percepção sobre a própria história. Em si mesma, a História não faz nada, e, nesse sentido, a luta socialista é uma aposta (sem qualquer garantia de vitória) na agência dos “oprimidos” do passado e do presente, como ele dizia. São eles e elas que podem “fazer a história”, rememorando-a de uma outra maneira e, assim, bifurcando-a para um novo caminho.

3- Como você avalia a admiração de Benjamin por Trótski, inscrita no contexto dos anos 20 e 30? Há relação com a crítica que Benjamin direciona à esquerda que se considerava “nadando com a corrente”?

Sem dúvida há relação. Benjamin sempre foi um intelectual radical. Quando se tornou comunista, o fez na direção de um “comunismo radical”, como disse provocativamente a seu velho amigo G. Scholem, que, por sua vez, deplorava a presença do marxismo no pensamento de Benjamin, por ele atribuída à influência perniciosa de amigos como B. Brecht ou E. Bloch. A admiração por Trotsky passava justamente por essa compreensão da radicalidade do processo revolucionário, entendido como ruptura qualitativa com o mundo social capitalista.

Para Benjamin, a revolução é uma decisão coletivamente construída, é o momento em que “a política passa a frente da história”, como escreveu em uma das notas do projeto das Passagens. Ela não é, portanto, o desdobramento de uma “correnteza” em cujo fim estaria o último capítulo de um progresso secular, o socialismo. Foi assim que pensaram os bolcheviques em 1917. Caso contrário, não teriam se atrevido a fazer uma revolução proletária em um país ainda “atrasado” na corrente da história.

Não é por acaso que, já em 1926/7, depois de passar alguns meses em Moscou, Benjamin começou a manifestar certo ceticismo em relação ao desenrolar do processo revolucionário na URSS. Benjamin observou uma certa paralisia da dimensão mais transformadora da revolução, a qual deveria, para ele, assim como para Trotsky, ser “permanente”: era preciso também “mudar a vida”. Nos anos 1930, esse ceticismo vai se transformando em incredulidade diante do avanço do stalinismo, até chegar ao choque com o pacto entre Stálin e Hitler, em 1939. Por outro lado, Benjamin nunca se aproximou da oposição de esquerda ao stalinismo, mantendo-se em uma posição politicamente isolada, o que é, aliás, uma das marcas de sua trajetória intelectual.

4- Você considera que a ideia de "puxar o freio de emergência" de Benjamin se contrapõe a uma visão gradualista, de conquista de reformas por dentro do capitalismo? Pode se relacionar ao combate de Benjamin ao conformismo?

Questão muito interessante e que, em certa medida, dialoga com a anterior. Como metáfora ou alegoria da revolução, “puxar o freio de emergência” significa, para Benjamin, não exatamente a simples interrupção da locomotiva da história, mas sobretudo uma espécie de parada técnica necessária à tomada de um outro rumo, de um outro horizonte de expectativas. Para Benjamin, portanto, o problema da “visão gradualista, de conquista de reformas por dentro do capitalismo”, é que ela permanece nos mesmos trilhos dos quais seria preciso escapar. Com isso, ainda que se continue falando em socialismo, o que se tem é, de fato, uma postura “conformista” diante da reprodução do mundo existente.

5- Como você compreende as interpretações e apropriações de Benjamin no Brasil?

A recepção brasileira de Benjamin não diferiu, no geral, da recepção internacional. Notadamente a partir dos anos 1960/70, o pensamento de Benjamin passou por um processo de compartimentação disciplinar: ora ele foi lido como um teórico das comunicações, ora como um crítico literário, ora como um filósofo idiossincrático. Cada qual tinha o seu próprio Benjamin. Em comum, notava-se uma relativização da presença do marxismo em sua reflexão, como se este fosse apenas mais uma dentre várias outras referências.

Um papel importante, a este respeito, foi cumprido pelo sociólogo franco-brasileiro, Michael Löwy, a partir da virada para a década de 1980. Löwy não apenas restituiu a centralidade do marxismo em Benjamin, mas o fez sem menosprezar outros aspectos do pensamento do autor, como o romantismo ou o messianismo libertário. Para Löwy, a atualidade de Benjamin reside exatamente no seu “marxismo aberto”, capaz de incorporar outras referências a fim de avançar na crítica do capitalismo moderno. No Benjamin de Löwy, o marxismo aparece como núcleo de uma crítica moderna da modernidade, ou seja, de uma crítica da civilização capitalista-moderna que, no entanto, jamais abandona a perspectiva emancipatória inscrita nas contradições do próprio mundo existente.

Com esta leitura, ao lado de outros autores, como Daniel Bensaïd ou Arno Münster, Löwy abriu um novo capítulo das interpretações de Benjamin, reposicionando a sua radicalidade política e, ao mesmo tempo, destacando a sua heterodoxia intelectual. No Brasil, em particular, tal leitura serviu como contraponto tanto às interpretações despolitizadas quanto às apreciações mais “brechtianas” de Benjamin. Como bom benjaminiano, Löwy “traduziu” Benjamin a partir dos desafios do presente, revelando-nos um autor cujo pensamento foi se tornando ainda mais atual quanto mais destrutivo e violento se mostrava o capitalismo. É este Benjamin que, 130 anos depois do seu nascimento e há mais de 8 décadas do seu falecimento, devemos “salvar do conformismo” que também dele “busca se apoderar”, para terminar parafraseando o próprio crítico alemão.


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