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SEMANÁRIO

As eleições, os militares e o fim da Nova República

Thiago Flamé

As eleições, os militares e o fim da Nova República

Thiago Flamé

No nascimento da mal chamada Nova República, a quinta na história brasileira, surgida pelo pacto das elites civis com as cúpulas militares, foi obrigatório integrar ao novo regime político o movimento operário e as camadas populares, que vinham de ser os grandes protagonistas do fim da ditadura. Mal chamada nova, por que já nasceu velha, carregando sem ruptura toda a herança do passado escravocrata, imperial e militar, sobrepondo com essa pesada herança concessões inéditas para as massas. Agora, com as Forças Armadas sendo aceitas oficialmente como instituições fiscalizadoras do processo eleitoral, podemos dizer que a República de 1988 já se modificou qualitativamente, ainda que não tenha se estabilizado e terminado de se conformar um regime pós golpe. Sem ruptura, sem alarde, sem comoção, foi derrotada por ela mesma.

Nesta sexta-feira, 30/09, o título de uma matéria do jornal O Estado de São Paulo chamou atenção e deu aos militares a oportunidade de se posicionar oficialmente: “Comando do Exército indica à tropa que não contestará apuração eleitoral”. Nos grandes jornais e na imprensa petista a decisão foi comemorada e aplaudida como um distanciamento dos militares em relação a Bolsonaro e como uma medida que reduziria os impactos da apuração paralela de urnas a cargo do ministério da defesa e do exército. Sinal dos novos tempos que, ao invés de repudiar uma intervenção política tão descarada, ela foi aplaudida pela frente ampla que se pretende defensora da democracia. Como se essa declaração não fosse ela mesma um atentado contra a democracia, como se o Alto Comando tivesse legitimidade para pautar o reconhecimento ou não das eleições na sua reunião e pior, como se pudesse ter outra posição para a tropa que não respeitar o resultado oficial. Um reconhecimento vergonhoso desses setores de que aceitam e legitimam a tutela militar.

O Alto Comando se apressou a condenar a matéria do jornal, numa nota dura e ambígua. Dizem os generais de quatro estrelas que na reunião de agosto nenhum assunto relativo às eleições foi tratado e que a matéria é mentirosa e contra ela serão tomadas as medidas judiciais cabíveis. Não é para menos, a declaração seria equivalente a confissão de um crime. Um ato assim em qualquer democracia estável levaria a exoneração dos generais, senão à prisão de todos eles. Porém, a nota não esclarece nada. Nega que o assunto foi pautado, mas sobre o conteúdo da declaração nada diz, além de que o exército se mantém fiel à constituição. Um jogo de informação e contra-informação que já se tornou uma regra de conduta em toda atuação dos generais desde pelo menos as declarações de Mourão no longínquo 2015, depois parcialmente desmentidas por Villas Boas, em que ambos assumiram a pauta política de uma reunião do Alto Comando.

O jogo dos generais no pacto de transição pós eleições

A grande manobra efetuada pelos generais está se concluindo com um grande êxito. Ela se parece muito mais com uma conhecida tática de venda do que com qualquer coisa retirada da teoria militar, da mesma forma que os chefes das Forças Armadas se parecem muito mais com políticos do centrão do que com estrategistas militares. Quem já trabalhou em alguma empresas com práticas de venda mais agressivas talvez já tenha assistido palestras sobre a técnica “ferir e curar”. Consiste basicamente em superdimensionar um problema, para em seguida oferecer a solução. Por exemplo, vender um pacote de dados maior e mais caro para uma pessoa desempregada, amplificando ou criando o medo de estar sem internet quando receber a resposta de uma entrevista de emprego. Assim atuam os generais. Apoiaram, estimularam, desfilaram, se manifestaram, ao lado de Bolsonaro, corroborando suas ameaças golpistas, desmentindo suas ações com notas ambíguas como a desta última sexta-feira. Se oferecem como o remédio para o mal que eles criaram e cultivaram.

Nossos generais, mercadores de privilégios, muito distantes de qualquer guerra, são especialistas em galgar posições e sustentar privilégios. O mais próximo que chegaram de uma guerra foi a ocupação do Haiti, onde lideraram as tropas da ONU não numa guerra contra outro exército, sequer numa guerra assimétrica. Sua missão era a manutenção da ordem interna, e lá fizeram escola na repressão à população civil e na tutela sobre o governo. Nos últimos quatro anos, administraram boa parte das obras federais em curso no país e se associaram a empresas de armas estrangeiras, um negócio milionário. Se utilizaram dos cargos conquistados na máquina estatal para amplificar os seus privilégios de casta militar, mais precisamente, os privilégios da oficialidade em detrimento não só da classe trabalhadora e da grande maioria da população, mas também da própria base do exército, os cabos e soldados.

Combinando a ameaça de golpe vocalizada por Bolsonaro com a disposição para negociar, traçaram uma rota de saída para a difícil situação em que se meteram. Atrelados a um governo mal avaliado, que tende a ter uma derrota por uma margem importante nas eleições, os generais corriam o risco de perder todo o terreno conquistado e retroceder ainda mais. A depender do curso dos acontecimentos, temiam inclusive ser alvo de investigações e serem ligados aos escândalos de corrupção que se multiplicam no governo Bolsonaro, suspeito até de ligações com as milícias cariocas. Esticaram ao máximo a corda, buscando negociar o seu futuro na posição mais vantajosa. Com o acordo que chegaram junto ao TSE, tiraram o melhor proveito possível da sua posição. Fazem parte agora das instituições oficialmente reconhecidas para atestar a legitimidade das urnas eletrônicas, e, portanto, do próprio processo eleitoral. As garantias estratégicas que eles conseguiram em 1988, de manutenção da ordem interna, foram reconhecidas amplamente pelo STF e pelo TSE ao aceitar que as Forças Armadas participem da fiscalização das urnas. Vão sair do governo, mas caindo para cima. Bolsonaro pode sair do governo, os militares, generais e coronéis, sobretudo, mas também brigadeiros e almirantes, não vão se retirar da política.

A tutela militar que estava inscrita como possibilidade na constituição, se tornou agora uma realidade, à revelia da letra e do espírito do texto de 1988. Se soma às profundas alterações que já haviam se efetuado no sistema partidário, em que a extrema direita surgiu como força majoritária da direita, e em que a classe trabalhadora sofreu profundas restrições na sua representação e na sua organização sindical. O arranjo político do que poderíamos chamar de um regime do golpe de 2016, que está se formando sobre os cacos da Nova República, está muito mais deslocado à direita. Nesse arranjo, o papel do que Gramsci chamava dos poderes sem voto, assumem um papel qualitativamente superior ao que tiveram até 2016. O acordo atual estabelece uma espécie de tutela compartilhada entre a justiça e as forças armadas, que se elevam a garantidoras de um novo pacto, ainda mais conservador, uma garantia de que garante que as classes dominantes e o imperialismo norte americano não vão perder o conquistado em 2016. O pacto atual é muito mais instável do que aquele que se manteve vigente desde 1988 até 2016 e o que poderíamos chamar do regime do golpe ainda está longe de se consolidar.

Reafirmando a subordinação aos EUA

Na mesma nota do jornal Estado de São Paulo, ao comentar sobre as pressões que o governo Biden está fazendo sobre o exército e o governo brasileiro estão sofrendo para reconhecer a provável vitória da chapa Lula/Alckmin, o jornal também mostra a relação carnal entre os militares brasileiros e seus chefes do norte . O jornal afirma que militares americanos estabeleceram, “por fontes diplomáticas”, contatos diários com os brasileiros. Não há dúvida que esses contatos trataram de muitos mais temas do que a pressão para que os militares respeitem os resultados das eleições.

Nas últimas semanas se intensificou a atuação diplomática do exército brasileiro, que de maneira discreta deu sua colaboração para o esforço de guerra dos EUA na Ucrânia e fechou novos acordos de colaboração com os EUA, numa região sensível para os interesses brasileiros, a chamada fronteira marítima brasileira, onde estão as reservas do pré-sal. No dia 16 foi divulgada a declaração do presidente da Eletronuclear repercutindo o suposto risco às instalações nucleares da usina de Zaporizhzia, ocupada pelas tropas russas. No dia 20 o site especializado em notícias militares publicou nota do Departamento do Estado dos EUA onde se informa acerca de um novo acordo de colaboração no Atlântico. O mesmo site repercutiu uma análise do general da reserva Etchegoyen sobre a situação geopolítica internacional onde afirma que as tensões atuais são um prolongamento das tensões da guerra fria. Não precisaria falar mais nada.

Essas movimentações mostram também o jogo duplo da administração democrata. Publicamente pressionam pelo reconhecimento do resultado de domingo, num apoio pouco disfarçado à chapa Lula/Alckmin e ao fim do governo Bolsonaro, abertamente alinhado ao trumpismo. Nos bastidores buscam garantias de que o salto do alinhamento brasileiro à política norte-americana, um dos principais motivadores da Lava-Jato e do golpe de 2016, seja mantido no próximo governo. E a tutela militar sobre o regime político é uma garantia extrema de que os EUA não perderam as posições conquistadas, o que em troca os generais brasileiros garantem a impunidade dos oficiais e seu lugar no novo regime que está se conformando.

Um pacto que não garante estabilidade

Com a concessão aos militares, a cúpula do judiciário busca garantir a estabilidade do processo eleitoral e diminuir a possibilidade de uma ação dos setores mais radicais da base social bolsonarista. Com as Forças Armadas validando o resultado eleitoral, esses setores vão ser desencorajados a questionar o resultado do pleito. O custo político a ser pago por essa pequena garantia, no entanto, será altíssimo. O fosso aberto entre a farda e a toga se aprofundou de tal forma nos últimos quatro anos, que não será facilmente fechado. Ao contrário, os militares vão explorar ao máximo a posição conquistada, como já demonstraram com o anúncio de que vão realizar uma verificação própria do resultado da votação em algumas urnas escolhidas.

Seria um erro ignorar os interesses específicos de casta, do judiciário e dos militares que influenciam nessa disputa, mas eles por si só não levariam a uma cisão tão grande entre essas duas instituições fundamentais para a manutenção da ordem. Essa cisão é resultado e a forma de expressão de rachas mais profundos na classe dominante, dos setores que convergiram no golpe institucional de 2016 e que depois se dividiram nas disputas que atravessaram o governo Bolsonaro.

A agudização das tensões internacionais e o preço cada vez maior que será cobrado pela subordinação aos EUA, a persistência da estagnação econômica e a falta de um horizonte de crescimento que permita Lula estabilizar o regime político reeditando as condições econômicas dos seus primeiros governos. Uma expectativa das massas de retornar àquelas condições dos tempos do crescimento econômico e a tendência a conflitos e greves pela recuperação do perdido nos últimos serão pontos permanentes de tensão e de instabilidade política.

A classe dominante brasileira seguirá atravessada por divisões e a extrema direita bolsonarista seguirá como uma força política atuante e uma potencial tropa de choque contra o movimento de massas e a esquerda. O exército vai fortalecer ainda mais sua presença e o seu papel de tutela sobre o sistema político. A política de conciliação petista, que já está aceitando todos os condicionamentos seja da administração Biden, seja dos grandes empresários brasileiros, é incapaz de derrotar a extrema direita e se não for superada pela esquerda abrirá o caminho a novas e mais profundas derrotas. A tarefa de construir uma força independente de ambos os blocos burgueses em disputa, que realmente defenda os interesses da classe trabalhadora e do povo e que confie somente nas nossas próprias forças para enfrentar a extrema direita foi abandonada pela maioria das organizações de esquerda, inclusive por aquelas que se reivindicam revolucionárias, que aderiram entusiasticamente à frente ampla. Não por isso ela deixou de ser urgente e o único caminho possível para evitar novas derrotas.


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Thiago Flamé

São Paulo
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