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Argentina, 1985. Desaparecidos: contexto, presenças e ausências

Gonzalo Adrian Rojas

Argentina, 1985. Desaparecidos: contexto, presenças e ausências

Gonzalo Adrian Rojas

O filme Argentina, 1985, dirigido por Santiago Mitre, contando com atuação de Ricardo Darín - sucesso na Argentina e no Brasil, foca no julgamento das juntas militares que governaram o país entre 1976 e 1983 e tem como protagonistas o procurador Julio Cesar Strassera, seu secretário Luis Moreno Ocampo e sua equipe de jovens advogados. Com poucos dias desde seu lançamento, já existem rios de tinta escritos sobre o filme que destacamos, baseado em fatos, mas que não deixa de ser uma versão livre. Sem pretensão de originalidade, me interessa apresentar para o público brasileiro elementos do contexto histórico que podem permitir entender melhor como foi possível o governo de Raúl Alfonsín, o primeiro depois do que os cientistas políticos chamam a “transição à democracia”, realizar tal julgamento.

Para tanto, é preciso destacar frente ao que nos apresenta o filme, que este cumpre seu objetivo naquilo que se propõe e reabre debates políticos em tempos em que o negacionismo dos crimes da ditadura tem força social no Brasil e tem alguma expressão política na Argentina com a extrema direita de Javier Milei, aliado de Bolsonaro. Destacarei incialmente de maneira breve seis ausências de forma cronológica que podem contribuir para contextualizar e entender melhor o por quê e o como foi possível o julgamento aos militares em 1985 na Argentina, bem como seus limites:

a) O processo revolucionário aberto na Argentina entre 1969 e 1976;

b) A instauração de uma ditadura militar ente 1976-1983 que derrota política, militar e teoricamente esse processo revolucionário impondo um projeto político neoliberal;

c) Os atores sociais que apoiaram o golpe, o conjunto das classes dominantes junto a Igreja Católica e seu comportamento a partir de 1980 procurando uma saída “democrática” após os militares já terem realizado o “trabalho sujo”, triunfando no que denominavam o combate na “guerra contra a subversão”;

d) A guerra das Malvinas em 1982 contra a Inglaterra de Margaret Thatcher, como uma tentativa bonapartista da ditadura de se “autonomizar” da classe dominante que lhe deu origem para perpetuar a ditadura, visando garantir a impunidade de seus crimes, resultando em uma contundente derrota das Forças Armadas;

e) A força do movimento pelos direitos humanos que cresceu exponencialmente após as Malvinas e as lutas do movimento operário contra a ditadura que já vinham desde antes da guerra;

f) A política de direitos humanos do governo de Alfonsín, que por sua vez fazia parte de sua política para as Forças Armadas na qual se enquadra o julgamento, objeto do filme.

Entre 1969 e o Cordobazo (uma rebelião operário-estudantil no estado de Córdoba contra a ditadura anterior presidida pelo General Juan Carlos Onganía), e 1976 com o golpe de estado que dá lugar ao que autodenominaram os militares como “Processo de Reorganização Nacional”, o pais vivencia um processo revolucionário que não se expressa somente na força das organizações político-militares, mas também na luta do movimento operário e suas coordenadoras fabris que, em 1975, expressam a possibilidade de superação classista através de uma direção alternativa à da direita peronista que dirigia a Central Geral dos Trabalhadores (CGT). Estamos falando de um ascenso das lutas do movimento operário. Nesse mesmo ano de 1975, ainda no governo constitucional de Isabel Martínez de Perón - viúva do General Juan Domingo Perón que assume a presidência depois de sua morte, aprofunda-se uma política repressiva já alentada por Perón de forma estatal e para-estatal contra essas lutas do movimento operário. Em síntese, este é um período de crise de hegemonia, tanto econômica como política. O golpe de estado de 24 de março de 1976 tenta resolver essa crise de hegemonia, no campo econômico adotando uma política de valorização financeira e no campo político derrotando o processo revolucionário, condição para obter o objetivo anterior. No filme, não encontramos menção a este processo revolucionário.

A ditadura militar, através do terrorismo de Estado, derrota essa força social revolucionária. Mais de 350 centros clandestinos de detenção e cerca de 30 mil desaparecidos de uma população que no ano 1978 era de 25 milhões de habitantes, nos apresenta uma dimensão do genocídio. O que não aparece no filme é a militância revolucionária dos desaparecidos, estes aparecem como pessoas, sujeitos individuais com direitos que foram violentados, mas no marco dos direitos e obrigações do direito burguês.

O conjunto das classes dominantes, a Igreja Católica e a maioria dos partidos políticos apoiaram a ditadura cívico-militar na Argentina, isto inclui desde forças políticas conservadoras, a União Cívica Radical, o Partido Socialista Democrático e o Partido Comunista Argentino. Defendiam a luta da ditadura contra a “subversão apátrida”. As classes dominantes apoiam com força, através do Ministro de Fazenda José Alfredo Martínez de Hoz, o início das medidas neoliberais no país e a adaptação da Argentina às novas condições do mercado capitalista mundial sob hegemonia do capital financeiro. A ditadura em 1978, após a Copa do Mundo no país, já havia derrotado o processo revolucionário e com isso frações da burguesia como os grandes industriais, exemplificados no Presidente da fábrica Ford – que aliás tinha um campo clandestino de detenção na própria fábrica, iniciam propostas para saídas políticas da ditadura militar com mais força a partir de 1980.

Depois da derrota do processo revolucionário, sem os riscos que isso implicava, era melhor instaurar para as classes dominantes uma forma de dominação política com elementos mais consensuais. Simultaneamente, temos lutas operárias que vão recompondo certa força e um constante movimento de direitos humanos.

Frente a esta situação, as Forças Armadas se depararam com um problema: como garantir a impunidade depois do realizado. Nesse contexto, decidem ocupar as Ilhas Malvinas, em território argentino, mas sob a dominação colonial inglesa, não enxergando como uma luta anticolonialista, senão como uma tentativa bonapartista de autonomização do bloco de classes dominantes que lhe deu origem, na tentativa de prolongar a ditadura militar. Sem apoio das classes dominantes entraram em guerra com uma potência colonial em decadência, mas ainda um imperialismo governado por Margareth Thatcher que contava com apoio dos EUA e da Europa sob a OTAN. Os militares vão à guerra e não tomam nenhuma medida real, nem mesmo mínima de guerra, como por exemplo a expropriação dos bens dos ingleses no país e demais. A derrota nas Malvinas gera um movimento de massas pela derrocada da ditadura, onde a Multipartidária - que agrupava os partidos políticos, vai canalizar o movimento pela via institucional.

A derrota dos militares nas Malvinas não aparece no filme, assim como quase não é mencionada a luta do movimento pelos direitos humanos, salvo em alguma mostra pontual das Madres de Plaza de Mayo e em algumas imagens da época apresentada no final do filme na parte dos créditos com a música Inconsciente Coletivo de Charly García.

Em 1983, Raúl Alfonsin ganha a eleição sobre o candidato peronista Ítalo Argentino Luder, e a força do movimento de direitos humanos continua crescendo com duas consignas centrais: “Aparição com Vida” (dos desaparecidos) e “Julgamento e Castigo a todos os culpados”. O governo de Alfonsín elabora uma política de direitos humanos que tem como objetivo institucionalizar o movimento e recompor o papel das Forças Armadas no plano estatal no marco do novo regime político. Para isso, primeiro cria uma Comissão Nacional sobre a Desaparição de Pessoas (CONADEP) que era uma comissão de notáveis muito longe de uma comissão independente, com o objetivo de acumular informação.

Tanto o governo de Alfonsín como a Conadep apresentavam a “teoria dos dois demônios”, que no filme aparece no discurso final de Strassera, segundo a qual a sociedade argentina foi uma vítima passiva primeiro dos guerrilheiros e depois dos militares. A crítica não é ao combate dos militares à subversão, mas aos métodos para esse combate. A sociedade nesta leitura não aparece dividida em classes, mas os mesmos dados da Conadep confirmam na distribuição de desaparecidos por profissão ou ocupação que as porcentagens de vítimas foram: 30,2% de operários, 21% de estudantes, 17,9% de empregados, 17,8% de profissionais, 5,7% docentes, 5% de autônomos e vários, 3,8% donas de casa, 2,5% das forças de segurança, 1,6% de jornalistas, 1,3% de atores e artistas, e 0,3% de religiosos. Os desaparecidos eram militantes e a ditadura foi uma ditadura de classe a serviço da classe dominante. No filme não aparece a explicação dos crimes dos militares vinculados aos setores econômicos e religiosos que apoiaram a ditadura militar, o que nos faz perder uma visão de totalidade.

O julgamento das juntas militares divide o movimento de direitos humanos. Este movimento havia obtido alguns triunfos, uma lei de autoanistia feita pelos próprios militares é derrotada pela luta, assim como a segurança de que a justiça militar não poderia julgar os crimes da ditadura, somente a justiça civil. Mas essa justiça como aparece no filme havia sido cúmplice da ditadura e muitos juízes haviam jurado pelo estatuto da junta militar. Alfonsín decide realizar o julgamento dos responsáveis máximos e mesmo que o governo na ditadura fosse um triunvirato, um representante do exército, um da marinha e outro da aeronáutica, o julgamento foi realizado responsabilizando de forma individual. A reivindicação de julgamento e castigo a todos os culpados, assim como julgamento por junta militar - responsabilizando as três armas pelos crimes, não foi aceita. O que quero destacar são duas coisas: está ausente a luta do movimento pelos direitos humanos e suas reivindicações específicas.

Faço estas seis observações iniciais sobre um filme que fala de um fato político histórico e que abre debates políticos, permitindo uma maior contextualização. Não entrei em questões da adaptação livre como por exemplo, já que o julgamento não poderia ser passado pelas rádios nem pela TV, a TV nos noticiários poderia colocar imagens sem som e os militares só poderiam ser filmados de costas. Pelo qual um ponto alto do filme foi a declaração de Adriana Calvo de Laborde, que por si mesma já vale assistir ao filme, nunca poderia haver convencido a mãe do promotor Moreno Ocampo da inumanidade dos militares. Convido a que assistam e a debater, justamente porque serve para politização, e gostaria de fechar com dois parágrafos sobre minha experiência pessoal nessa época.

Para aqueles que a vivemos, o filme tem algo que nos impacta, nos remete a um período de mobilização do qual fazíamos parte, ao início de nossa militância no final da ditadura militar e início da “primavera alfonsinista” no movimento estudantil secundarista, que vinha de reorganizar os centros acadêmicos e participava de todas as lutas do movimento de direitos humanos e estudantis da época. Traz à lembrança de nossas próprias ocupações de escolas defendendo diretos democráticos mínimos, de namorar e dar-se conta de que ela tinha um irmão mais velho desaparecido e do lindo ódio que aprendemos a sentir pelos milicos e pela igreja cúmplice, que entregava as crianças filhas dos desaparecidos nascidos em cativeiro a famílias ocidentais e cristãs longe do ateísmo marxista de seus pais. Fui a uma das sessões do julgamento das juntas militares em tribunais, entrar na fila às 5h da manhã para pegar ingressos junto alguns colegas da escola, o Instituto Libre de Segunda Enseñanza (ILSE), que fica em frente aos Tribunais e inclusive aparece no filme, local onde também estudava o filho do fiscal Strassera, eu tinha apenas um ano a mais que ele.

Esta luta na defesa dos direitos humanos contra todas as tentativas de institucionalização, seja de Alfonsín no seu momento e dos Kirchner depois, continua em aberto na Argentina, e todo 24 de março (o dia do golpe) se realizam grandes manifestações de direitos humanos no país repudiando o golpe e exigindo Memoria, Verdade e Justiça.

30.000 companheiros detidos-desaparecidos presentes!!!


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